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Estado de Minas

Governo prepara projeto para marco regulatório do saneamento

Representantes do setor temem que, com a privatização, cidades menores, favelas e periferias fiquem sem atendimento, caso as empresas se interessem apenas pelos municípios rentáveis


postado em 15/07/2019 06:00 / atualizado em 15/07/2019 07:57

Bairro da Região Norte de Belo Horizonte sem saneamento básico: praticamente metade da população brasileira não tem acesso à coleta de esgoto(foto: Tulio Santos/EM/D.A Press - 11/4/19)
Bairro da Região Norte de Belo Horizonte sem saneamento básico: praticamente metade da população brasileira não tem acesso à coleta de esgoto (foto: Tulio Santos/EM/D.A Press - 11/4/19)

Brasília – O fim da votação da reforma da Previdência abre espaço na agenda do Congresso para uma outra discussão polêmica que aguarda na fila: o marco regulatório do saneamento.

A Casa Civil da Presidência da República vai enviar à Câmara dos Deputados, nos próximos dias, um novo projeto de lei, em regime de urgência, para corrigir o PL 3.261/19, de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB), aprovado no plenário do Senado, e encaminhado à Câmara, no mês passado. Será o sétimo projeto sobre o tema a tramitar na Casa, e todos devem ser apensados à nova proposta.

A correção se refere a um vício de origem do PL do senador, que suprimiu do texto toda a parte que transfere para a Agência Nacional de Águas (ANA) a coordenação regulatória do setor. Isso porque a mudança requer a criação de novos cargos, prerrogativa exclusiva da presidência da República.

Entidades que representam o setor de saneamento comemoram o fato de que o tema será finalmente debatido no Congresso Nacional sem o rolo compressor do governo federal, que em duas tentativas malogradas tentou impor novas regras sem o devido debate com a sociedade, acusam as entidades, ao enviar duas medidas provisórias que caducaram: MP 844/18 e a MP 868/19.

Permanece, no entanto, a controvérsia em torno do tipo de contrato permitido aos municípios, já que o PL 3.261/19 incorporou boa parte das propostas das MPs caducadas, entre eles o que acaba com a possibilidade de os municípios contratarem as companhias estaduais de saneamento diretamente, sem licitação.

Atualmente as prefeituras, que possuem a titularidade da prestação dos serviços, têm três opções: manter uma autarquia, que é o caso de 25% prefeituras; contratar os serviços diretamente de uma empresa estatal, modalidade utilizada por 70% das cidades; ou optar por uma empresa privada, o que ocorre em 5% dos casos.

O objetivo do governo é aumentar os investimentos privados. Representantes do setor temem, porém, que as empresas se interessem apenas por municípios rentáveis, deixando sem atendimento os mais pobres.

Para reduzir o problema, o novo projeto da Casa Civil mantém a solução já prevista no PL de Jereissati: a criação de blocos de municípios para os editais de licitação. O objetivo é obrigar o investidor a assumir municípios grandes e rentáveis e pequenos e pouco atrativos.

Índices indignos


É quase consenso que as regras precisam ser atualizadas, já que, apesar das opções, os índices com relação a esgoto, por exemplo, são indignos. Praticamente metade da população não tem acesso à coleta de esgoto. Representantes do setor, porém, temem que as consequências de tratar um serviço essencial como negócios e não como política pública.

“Somos contra o direcionamento na prestação do serviço. O setor privado só quer o filé e não o osso. Defendemos que o município tenha a liberdade de decidir se terá uma autarquia municipal, se vai fazer um contrato com uma companhia estadual ou uma parceria público-privada. É preciso manter o respeito à liberdade de planejamento dos municípios”, diz Aparecido Hojaij, presidente da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae).

Para resolver o problema da falta de investimentos, ele sugere facilitar o acesso ao crédito e reduzir a burocracia para negócios. “Saneamento é política pública de desenvolvimento. Não se pode ficar refém do mercado. É preciso encontrar um outro modelo, como a criação de consórcios. O governo do estado pode criar microrregiões, que passam a ter poder concedente do serviço de saneamento”, sugere.

Para o presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (Abes), Roberval Tavares de Souza, o impacto positivo da mudança no marco regulatório é o fortalecimento da regulação e o aumento da segurança jurídica para os investimentos, além do aumento da competitividade. No entanto, além do fim dos contratos de programa com as companhias estaduais, ele aponta um outro problema das mudanças propostas: a alienação das ações de empresas estatais, ou seja, a possibilidade de privatizar essas companhias.

Reestatização


“Vender as empresas não resolve o problema. O dinheiro entra, paga salário atrasado nos estados e fica tudo igual no saneamento. Muitos países estão reestatizando os serviços privatizados. Aconteceu em cidades como Paris, Barcelona e outros. Além disso, com o fim do contrato de programa, a prefeitura fará licitação para empresa pública ou privada. Como será isso, se o foco da empresa pública é política pública e a privada é o lucro?”, questiona. “É preciso atender as favelas e periferias.”

Em 2017, o Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisas com sede na Holanda, em parceria com o Observatório Corporativo Europeu, divulgou um mapa das remunicipalizações dos serviços de saneamento em vários países. De acordo com o levantamento, desde o ano 2000 foram registrados 267 casos de municipalização ou reestatização de sistemas de água e esgoto, principalmente na Eurocopa. Entre as cidades que voltaram a oferecer serviços públicos estão Berlim (Alemanha), Paris (França), Budapeste (Hungria), Bamako (Mali), Buenos Aires (Argentina), Maputo (Moçambique) e La Paz (Bolívia).

O presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), Roberto Tavares, diz que o setor pede por modernização no marco regulatório há seis anos, mas é contra destruir o que existe, para construir algo incerto, sem a devida discussão. Para ele, não é preciso acabar com os contratos de programa para estimular investimentos privados.

“Temos a responsabilidade de atender 4 mil municípios, mais de 70% da população urbana brasileira. Se mudar e não der certo, como ficam essas pessoas. As maiores parcerias com o setor privado não vem dos 1,5 mil municípios que não têm nenhuma relação com as empresas estaduais. Não estão ali”, afirma.

Um estudo da ONG Trata Brasil, em parceria com a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon) mostra os ganhos econômicos e sociais gerados pela expansão dos serviços de água e esgoto e aponta perdas de até R$ 1,2 trilhão com a ausência da expansão dos serviços.

Mercado tem apetite


Uma vez destravado o nó regulatório do saneamento que afasta investidores, o mercado deve mostrar que há apetite para investir no setor. Especialistas garantem que há interessados entre empresas estrangeiras, fundos de investimentos e operadores nacionais. No entanto, o debate ainda não está maduro o suficiente e o principal entrave diz respeito ao problema federativo do Brasil. Isso porque, no que diz respeito à água e esgoto, as decisões envolvem 5.570 municípios.


Para o especialista em direito administrativo e regulatório do escritório Souto Correa Daniel Vila-Nova, a pauta saneamento ainda vai se renovar por um bom período. “A competência sobre o setor é municipal. Mas a região metropolitana, por exemplo, é instituída pelos estados. Então, sem uma solução federativa não se consegue avançar”, avalia.

Vila-Nova acredita que o modelo ainda é vacilante. “As propostas apresentam as ferramentas, mas o momento é de se desenhar uma cooperação federativa para dar confiança ao mercado. O setor privado teme entrar num setor sem saber de qual ente é a competência regulatória”, explica. O advogado exemplifica, comparando dois modelos: São Paulo e Rio de Janeiro. “Existem arranjos muito bons, como é o caso da Sabesp, que faz contrato de locação de ativos por meio do qual a iniciativa privada entra como investidora. Agora, no caso do Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal invalidou o modelo”, diz.

No entender de Miguel Neto, sócio do Miguel Neto Advogados, a única saída para retomada das obras de saneamento é a flexibilização do marco regulatório para entrada do setor privado. “Estados e municípios estão sem dinheiro. Além disso, as obras são enterradas e, politicamente, não têm visibilidade. Tanto que a prioridade dos governos nunca foi essa. Tem que passar para o setor privado, senão nunca vamos sair do lugar”, opina.

Neto lembra que a competência da água é municipal, mas muitas cidades fazem contratos ou parcerias público privadas (PPPs). “A questão é que o Judiciário, em algumas cidades, entende que água é bem vital, e obriga a religação mesmo que o cidadão não pague a conta. Isso desestimula investimento privado. Agora, com certeza, é um negócio com demanda. Há interesse, mas o marco regulatório precisa entrar na agenda das prioridades”, resume.
 

Investimento em queda

O investimento em saneamento, setor mais atrasado da infraestrutura brasileira, encolheu nos últimos anos. Dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostram queda de 7,8% nos aportes em 2017 na comparação com o ano anterior. Foram desembolsados R$ 10,9 bilhões em saneamento, menor valor investido nesta década e patamar 50,5% inferior à média de R$ 21,6 bilhões necessários para o Brasil universalizar os serviços até 2033, conforme meta prevista pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab). O quadro é ainda mais preocupante quando se observa a lenta evolução dos indicadores de abastecimento de água e coleta de esgoto. O acesso à água encanada está estagnado nos últimos três anos. O índice passou de 83%, em 2015, para 83,5%, em 2017. Já em relação às redes de esgoto, a coleta passou de 50,3% para 52,4% no mesmo período.


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