O ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) sugeriu na noite desta segunda-feira, 19, "muito cuidado com a dose" da Lei do Abuso. Durante evento em Marília, no interior de São Paulo, Moro disse que "o projeto é interessante", mas fez uma ressalva.
"Certamente ninguém é favorável a abuso de poder, mas temos que tomar muito cuidado para evitar que, ainda que a lei seja bem intencionada, possa servir como uma censura à atuação de juízes independentes, de promotores independentes e de policiais corajosos que se arriscam no dia a dia para aplicar a lei e que não têm condições de, cada um deles, ser acompanhado por um advogado do lado para saber exatamente o que pode fazer, até onde pode ir."
Em Marília, Moro recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Unimar. Ele fez uma longa manifestação. Ao final, abordou a Lei do Abuso, que a Câmara aprovou na quarta-feira, 14, e que assombra juízes, promotores e policiais.
"Claro que é necessário coibir o abuso de poder, mas tem que tomar muito cuidado com a dose", enfatizou.
Ele ponderou que "o governo federal vai examinar com muito cuidado esse projeto de lei, com muito respeito ao Congresso".
O presidente Jair Bolsonaro tem até o dia 5 de setembro para decidir se veta o texto da Lei do Abuso, ou apenas alguns pontos nele contidos. Nesta segunda, 19, logo cedo, Bolsonaro recebeu Moro que sugeriu o corte de 9 pontos da lei.
À noite, já em Marília, na Unimar, o ministro abordou a Lei do Abuso e citou uma passagem histórica do jurista e diplomata Ruy Barbosa (1849/1923), no final do século XIX, envolvendo o caso do juiz do Rio Grande do Sul Alcides de Mendonça Lima e a soberania do Tribunal do Júri, no qual o voto do jurado é secreto.
"Naquela época, os Estados tinham competência para legislar sobre processo civil e processo penal", narrou o ministro em sua palestra. "Vários Estados editavam legislação própria. Uma lei editada por Júlio de Castilhos (presidente do Rio Grande do Sul por duas vezes), poderoso político do final do século XIX e começo do século XX, para regular o processo do júri, estabeleceu que os votos dos jurados não seriam sigilosos, mas dados em público."
"Bem, o grande problema do voto em público é que havia receio dos jurados", seguiu Moro. "Podiam mudar seus votos para ajustar à conveniência dos poderosos locais."
Segundo historiou o ministro da Justiça, o juiz Mendonça Lima, da Comarca de Porto Alegre, decidiu que a lei de Júlio de Castilhos era inconstitucional.
"Não iria aplicar a lei porque feria a soberania do Tribunal do Júri já que expunha jurados a ameaças e retaliações. Júlio de Castilhos oficiou ao então Superior Tribunal de Justiça, que seria o equivalente aos Tribunais de Justiça, pedindo que aquele juiz desidioso fosse processado por vários crimes, inclusive abuso de poder."
"O juiz foi condenado pelo Superior Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Houve um pedido de recurso, uma revisão criminal, na época, ao Supremo Tribunal Federal. Quem apresentou esse recurso foi nada mais, nada menos, que Ruy Barbosa. Ele assumiu a causa e produziu um texto jurídico dos mais importantes no Brasil sobre o júri e a independência do juiz."
"O que Ruy Barbosa dizia, no âmbito desse artigo, é que, de fato, a lei que retira o sigilo das votações do júri é inconstitucional, ou seja, o juiz estava com a razão. Mas argumentou que, ainda que assim não fosse, criminalizar o entendimento do juiz só porque ele adotou uma determinada interpretação da lei, significava criminalizar a atuação da magistratura. Daí veio a expressão que ficou célebre entre nós, o chamado crime de hermenêutica."
Segundo a narrativa de Moro, em 1896 o Supremo invalidou a condenação do juiz Alcides de Mendonça Lima. "Desde então, desconheço juiz ou magistrado processado por crime de hermenêutica."
"Como eu disse, não está nada decidido (sobre a Lei do Abuso), mas não podemos esquecer nesse exame de pensar na história, de pensar nesses grandes exemplos do passado, como Ruy Barbosa."
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