Depois de vários adiamentos, numa sessão marcada por reviravoltas, a Câmara dos Deputados finalmente votou, na noite de desta quarta-feira (11/12), o Projeto de Lei (PL) nº 3.261/2019, que altera o novo marco regulatório do saneamento, em segundo turno. Mas o que acabou aprovado, por 276 votos a 124, com uma abstenção, foi o PL 4.162/2019, com teor semelhante, porém ainda em primeiro turno. Ou seja, terá de ir ao Senado e voltar para apreciação da Casa.
A troca de textos no decorrer da sessão exigiu a apreciação dos destaques, que adentrou a noite, mas incorporou o texto do relator do PL 3.261/2019 na comissão especial, deputado Geninho Zuliani (DEM-SP). Na prática, os dois projetos ampliam a participação da iniciativa privada no setor de saneamento, permitindo a concorrência com estatais por meio de licitação.
A sessão começou com a oposição usando todos os mecanismos para obstruir a votação do PL. Os requerimentos de retirada do projeto e de encerramento de discussão para votação se sucederam desde às 15h40, quando o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), abriu a ordem do dia. Deputados da oposição subiram à tribuna criticando o PL, que chamaram de “privatização da água”, e convencendo os pares a votar por obstrução.
Os argumentos da oposição alertaram para a “entrega” da água para “as grandes corporações internacionais, que têm sede de tomar as riquezas do país para transformar a natureza em negócio”. Afonso Florence (PT-BA) alegou que todos os tipos de participação da iniciativa privada já existem. “São PPPs (parcerias público privadas), aquisições, licitações. A iniciativa privada já está no setor e não é o PL que vai aumentar sua participação. O que o PL quer é acabar com os contratos de programa para que as privadas possam aumentar tarifa nos mercados lucrativos e deixar os municípios não atrativos sem serviço”, alegou.
Os parlamentares favoráveis ao PL também se revezaram na tribuna. O deputado Vinícius Poit (Novo-SP) lembrou que a falta de tratamento de esgoto é responsável por muitas doenças. “Cada real investido em saneamento gera uma economia de R$ 4 na saúde”, destacou. A necessidade de o setor receber mais investimentos para universalizar os serviços, precários no país, foi a principal sustentação dos que defendiam a aprovação.
O deputado Geninho disse ter ouvido todos os lados interessados no marco legal, governadores, prefeitos, empresas estatais e privadas. “Nós construímos um texto que contemplou um prazo de transição para que as companhias estaduais possam se adequar ao novo marco regulatório, de 30 meses, com possibilidade de renovação por 30 anos. Por isso, peço que oposição retire a obstrução, para que o projeto possa tramitar”, disse. Não adiantou muito.
No meio da tramitação, ainda houve pedido para dar preferência ao PL 4.162/2019. O que ocorreu às 21h28. A troca aumenta a tramitação, pois precisa ser ir para o Senado e depois voltar para a Câmara, enquanto o 3.261, se aprovado, iria direto para o Senado em caráter terminativo.
O presidente da Associação Brasileira de Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), Percy Soares Neto, disse que essa troca de PLs preocupa o setor. “Em função do prazo, porque estende a discussão no Congresso e atrasa ainda mais o início de um novo modelo de saneamento, que é o que vai trazer investimento em mais serviços para a população”, disse. “Aumenta o risco de mais mudanças. O texto está maduro.”
A advogada especialista em Direito Público do Cascione Pulino Boulos Advogados Carolina Caiado considerou a aprovação muito positiva, apesar de algumas ressalvas. “O texto aprovado trata do mesmo tema. O serviço é tradicionalmente prestados por companhias estaduais, mas a competência do setor é dos municípios que podem fazer suas próprias licitações. Isso já provocou muita judicialização por conta da titularidade do serviço. O que existe hoje são contratos, chamados de programa, sem licitação entre municípios que não tem o serviço com as estatais”, explicou.
Segundo ela, os dois PLs transferem a Agência Nacional de Águas (ANA) a função de padronizar as normas. “Isso também é questionável do ponto de vista técnico, porque se é de interesse local, por que colocar uma agência nacional? Embora muitos municípios nem tenham pessoal preparado nem órgão de fiscalização para fazer esse trabalho”, avaliou.
O ponto mais polêmico, tanto do 3.261 quanto do 4.162, é o fim dos contratos de programa que são feitos sem licitação e deixa aos municípios a responsabilidade de retomarem os serviços ou licitarem para concorrência. Segundo o deputado Geninho, foi dado um prazo de transição para as estatais, de 30 meses, para que possam renovar os contratos por até 30 anos, antes de se adequarem ao novo marco legal.
“O novo marco estabelece metas de universalização no texto de lei, atualizando uma série de cláusulas, como por exemplo exigir a conexão de todos os domicílios na rede de esgoto”, explicou Carolina.
Para a especialista, as companhias públicas vão se manter no mercado, porque são muito grandes. “Podem até ter dificuldade de cumprir as metas, mas os indicadores serão cobrados ao longo do tempo. Antes, as estatais reinavam no mercado, agora terão de melhorar a eficiência para competir no mercado”, explicou.
“O Brasil tem 35 milhões de brasileiros sem acesso à água, 100 milhões sem coleta de esgoto e do que é coletado, apenas 45% é tratado. Há um grande mercado, urgência para suprir, e investidores estrangeiros interessado.O novo marco vai trazer maior segurança jurídica”, assinalou.
Repercussão no plenário
O deputado Edmilson Rodrigues (PSol-PA) lamentou que os recursos que não são liberados para as companhias estaduais de saneamento, por instituições como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), vão para a iniciativa privada. “Sendo que ela poderá cobrar o que quiser de tarifa do consumidor. Isso é absurdo”, esbravejou.
O petista Waldenor Pereira (BA) observou que quase 80% dos municípios da Bahia que possuem população de até 20 mil habitantes serão penalizados com a ausência de investimentos, com prejuízo no fornecimento de água potável, com a possibilidade de esgotamento sanitário financiado pelo poder público. “Eles ficarão à mercê da própria sorte, ao léu, porque as grandes corporações não terão interesse”, disse.
O saneamento é o maior retrato da desigualdade do país, afirmou Ivan Valente (Psol-SP). “As empresas querem lucro, não me venham com discurso cínico de que as crianças vão morrer por falta de saneamento. Essa discussão merecia ser mais ampla, por isso queremos a retirada do PL”, disse.
O deputado Evair Vieira de Melo (PP-ES) rechaçou a colocação. “Nós fizemos várias audiências públicas. O PL foi amplamente discutido, com todos os interessados. Os municípios não vão perder autonomia, nem as empresas estaduais, a titularidade”, comentou. O PP votou para encerrar a discussão e colocar o PL em votação. O corporativismo não pode vencer a saúde dos brasileiros, destacou Giovanni Cherini (PL-RS), ao negar a retirada do PL da pauta pelo partido.
Saiba mais
A legislação é considerada por especialistas a mais relevante para a população pobre do Brasil, que não tem acesso à água e tampouco a tratamento de esgoto. Se aprovado, o PL vai destravar a participação de empresas privadas no setor e ampliar os investimentos no país, que destina a metade do que deveria para universalizar o serviço até 2030.
Hoje, as estimativas dão conta de que 83,3% da população viva em domicílios ligados à rede de abastecimento. Porém, apesar de existir a ligação, nem sempre a água está na torneira. Ao mesmo tempo, mais de 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada. Quanto ao tratamento de esgoto, 51,9% da população vive em domicílios conectados à rede de coleta, ou seja 48% dos brasileiros, ou mais de 100 milhões de pessoas, não são atendidas pelo tratamento sanitário. Além disso, 55% do volume de esgoto coletado não é tratado, com efeitos perversos na saúde dos mais pobres, sobretudo as crianças.