Brasília – Dias depois de vetar a inclusão dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU), a chamada “agenda 2030”, nas diretrizes do Plano Plurianual (PPA) da União para o período de 2020 a 2023, o presidente Jair Bolsonaro teceu críticas sobre o documento, ao alegar que o texto defende temas como aborto e ideologia de gênero, qual chamou de “nefasta”.
“Dentre as 'metas' da agenda 2030, estão a nefasta ideologia de gênero e o aborto, sob o disfarce de 'direitos sexuais e reprodutivos'”, escreveu o presidente, na sua conta oficial do Twitter. Contudo, na agenda feita pela ONU, não há menção à palavra ideologia. De qualquer forma, a meta de número 5 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável versa sobre “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.
A expressão ideologia de gênero remete à ideia de que ninguém nasce homem ou mulher, portanto, cabe a cada ser humano decidir a própria orientação sexual ao longo da vida. Para os que acreditam nesse pensamento, gêneros são construções sociais.
Na meta de número 5, a ONU frisa que, para cumprir o objetivo, é importante atender a uma lista com nove tópicos, entre eles, o de acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte e o de garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública.
Além disso, há o que estabelece ser necessário assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, com a disponibilização de serviços “acessíveis, aceitáveis e de alta qualidade”, como aborto seguro, e assistência pós-aborto nos casos permitidos por lei, entre outros.
Apesar da crítica de Bolsonaro, no Brasil, o aborto é permitido em situações específicas. O acesso ao procedimento médico só pode ser permitido em casos de estupro, de risco de morte para a mãe e o bebê ou de fetos com anencefalia (ausência de cérebro).
As declarações de Bolsonaro incomodaram membros do Congresso Nacional. O presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, Helder Salomão (PT-ES), avaliou como “lamentável” a postura do presidente e considerou “um retrocesso o Brasil se negar a discutir 17 objetivos que visam tornar a humanidade melhor”.
“É claro que, ao aderir a este movimento de construir 17 objetivos para toda a humanidade, não temos que concordar com todos. Mas, negá-los significa negar a possibilidade da construção não só de um país melhor, mas de um planeta melhor”, disse o deputado, ao Estado de Minas. “Esse esforço não pode ser de apenas uma nação. Tem que ser um esforço de todas, ou, pelo menos, das principais nações do mundo, como é o Brasil. Bolsonaro se nega a debater temas tão importantes usando um discurso rasteiro, batendo na tecla de que se trata de um discurso ideológico, como se o que ele defendesse não fosse uma ideologia”, acrescentou.
Salomão garantiu que o veto de Bolsonaro encontrará resistência no Congresso Nacional. Assim que tiver início o ano legislativo, em 1º de fevereiro, o Parlamento terá de promover sessão conjunta para deliberar sobre a derrubada imposta pelo presidente — para reverter a medida. O veto tem de receber os votos da maioria da Câmara (257 deputados) e do Senado (41 senadores).
“Certamente, vamos trabalhar para derrubar. É um veto injustificável, que coloca o Brasil na contramão do que se discute na ONU. Enquanto a maioria das nações trabalha em uma direção, o Brasil e o presidente dão um mau exemplo ao estabelecerem esse veto”, frisou o deputado.
Contrafluxo Seguindo o pensamento de Salomão, o coordenador do Grupo de Pesquisa Preconceito, Vulnerabilidade e Processos Psicossociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Ângelo Brandelli, disse ser ruim que o Brasil “esteja indo no contrafluxo das outras nações desenvolvidas que mantêm essa agenda e a seguem para que seja implementada”.
“Esse documento contém princípios que foram pactuados por uma série de assembleias, eventos e conferências internacionais. Os objetivos relativos ao gênero, em particular, foram pactuados em várias portarias em que o Brasil tomou uma posição de liderança, inclusive. Portanto, é muito ruim que o presidente dê essa declaração, pois vai contra um histórico de proposições positivas que o Brasil fazia e de compromissos que o país assinou”, comentou.
Segundo Brandelli, o veto dos objetivos no PPA foi mobilizado justamente devido à questão relativa à gênero. “É a discussão que tem sido feita desde o inicio do governo, sobre ideologia de gênero. Mas, na verdade, não existe como não se ter um olhar ideológico. A ideologia é a lente que usamos para enxergar a realidade”, analisou. “Mas, qualquer pessoa que entrar em contato com essa agenda vai perceber que são objetivos e metas considerados mínimos para uma sociedade que gostaria de se dizer desenvolvida”, acrescentou.
OS OBJETIVOS
» Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte
» Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos
» Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas
» Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado
» Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública
» Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos
» Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso à propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços financeiros, herança e os recursos naturais
Ataque à imprensa
O ano mudou, mas o presidente Jair Bolsonaro (PSL) mantém postura de ataque à imprensa. Ele declarou ontem que deseja “começar bem” 2020, sem dar entrevistas. O chefe do Executivo não parou para falar com repórteres quando saiu do Palácio da Alvorada para cumprimentar o público, e ao ser chamado pela imprensa respondeu: “Eu quero começar bem o ano”. As declarações do mandatário na virada para 2020 ficaram restritas à sua página do Twitter, onde especulações sobre o futuro do governo ficaram entre os assuntos mais citados. A hashtag #BolsonaromaisFORTEem2020 esteve entre os termos mais citados no Twitter na virada de 31 de dezembro, em terceiro lugar no ranking. Na quarta posição, #BolsonaroVaiCairem2020 era o desejo de críticos ao governo do capitão. Pela mesma rede social, o chefe do Executivo desejou “que o Brasil possa continuar seguindo o caminho da prosperidade e que este seja um ano tão vitorioso para o povo brasileiro quanto foi 2019”. A publicação foi feita no Twitter nos primeiros minutos de 1° janeiro de 2020. “Estaremos, juntos, trabalhando noite e dia, para mudar o destino de nossa nação”, afirmou o presidente, que desejou um “feliz e abençoado 2020”.