Jornal Estado de Minas

entrevista/Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal

Gilmar Mendes: 'Não devemos ter nenhuma saudade do regime militar'


Brasília – Para o ministro Gilmar Mendes, a democracia brasileira vive um experimentalismo. Ele acredita que os embates e as crises decorrentes do governo Bolsonaro representam as dores do processo democrático e resultam do natural confronto de divergências em busca das melhores soluções para o país. O Brasil, segundo Gilmar Mendes, passa por um momento de aprendizado, no qual testam-se os limites das instituições. Não significa, contudo, que o ministro do Supremo, de 64 anos, tolere arroubos autoritários, tampouco a nostalgia ao regime militar, que impôs graves danos às garantias individuais. “Não há saída fora da democracia”, decreta o ministro, que repudia o ambiente beligerante que se instalou nas redes sociais e por vezes é alimentado por integrantes da República.



Como colocar o país num clima mais ameno para tirá-lo da crise econômica e social?

O ano passado teve uma série de tumultos e desinteligências, mas optou-se pelo substancial. Houve consciência de todos os atores de que era importante o país voltar a crescer e a fazer ajustes. A reforma da Previdência era algo muito difícil, é difícil em todo lugar. Tinha sido difícil mesmo no governo Temer e isso serviu de um pouco de catarse, o debate que lá houve. Mas surpreendentemente (a reforma) caminhou relativamente fácil, considerando as dificuldades e até uma certa ausência do próprio governo como protagonista. Câmara e Senado trabalharam de maneira bastante autônoma e responsável. E, vamos dizer a verdade: as próprias corporações, que são muito fortes e representativas, entenderam que era preciso, por exemplo, estabelecer um limite de idade. Houve um consenso nesse sentido e o mercado avaliou bem, tanto é que a bolsa explodiu com os bons resultados.

Como avalia a manifestação prevista para o dia 15, na qual alguns vídeos falam em um movimento contra o Congresso e o STF?

A gente deve gastar energia com questões, de fato, substanciais. Se houvesse um projeto de reforma e de fato o Congresso não estivesse votando, então vamos fazer uma manifestação para que haja uma deliberação mais célere. Mas não faz sentido isso. O Congresso está deliberando de uma maneira madura como há muito não se via. O Congresso é um Parlamento extremamente forte. Ao longo dos anos, ele dependia muito da ação do Executivo. Estamos vendo nos últimos tempos, e já se via um ensaio disto no governo Temer, a ideia de uma certa parceria. Tanto é que o presidente Temer chegou a falar que estava inaugurando um certo semipresidencialismo. Já havia esse ensaio de corresponsabilidade política. Pelo menos, no ano que passou, Câmara e Senado tiveram um papel importante reconhecido por todos nós, pelos resultados. Vimos a fala do ministro Paulo Guedes em Davos, em que ele apresentou todas as reformas que foram votadas. Aquilo foi avaliado positivamente. E se a gente olhar, aquilo é mérito do Congresso. Evidentemente, está numa pauta também da economia, mas se vê que o Congresso foi parceiro institucional daquilo que foi bem avaliado em termos internacionais.

Pelo que o senhor diz, o Congresso está cumprindo o papel dele. Pode-se dizer o mesmo do Executivo?

Tenho a impressão de que há aqui um aprendizado que todos os governos têm que exercitar e desenvolver, talvez, um modelo. Qual será esse modelo? Uma Casa Civil mais forte? Uma Casa Civil que divide poderes com outras coordenações? Estaria o presidente muito sobrecarregado? Em suma, como se dividem as tarefas administrativas e as tarefas de coordenação política. Acho que tudo isso precisa ser devidamente definido. E temos visto que, nessa seara, tem havido mudanças constantes, explícitas e outras internas. Então, ainda há um modelo institucional in fieri rae, em formação. É natural. O presidente veio de um movimento novo, de um partido novo e fez um outro tipo de coligação para governar, ou seja, dispensou a ideia do presidencialismo de coalizão e buscou apoio nas bancadas temáticas. Então, me parece que esse é um aprendizado.



Há um prazo-limite para esse aprendizado?

Um ano é o período que o governo tem de lua de mel com o Congresso. Depois, isso pode se tornar mais tenso. O próprio presidente fez um redimensionamento, reestruturou a Casa Civil, então, tem que se esperar o resultado disto. 

É o momento de pacificar?   

Não podemos acender o isqueiro ou fósforo para saber se tem gasolina no tanque porque a gente já sabe a resposta. Então, acho que, se alguém apostar em disrupção, ruptura, certamente haverá resistência das instituições. Obviamente, temos um compromisso com a democracia.

Isso vale também para pedidos de impeachment que possam surgir?

O impeachment é uma bomba atômica em termos institucionais. No presidencialismo, existe para não ser usado. No nosso caso, já usamos duas vezes. Mas, em geral, você tem uma conjugação de fatores. Tem, de fato, a prática de um crime e tem condições de desmantelo do sistema econômico-político. Nos dois casos que tivemos, isso ocorreu, tanto no governo Collor, quanto no governo Dilma. No fundo a gente fez um tipo de parlamentarização do impeachment. Quer dizer, o presidente que perde apoio no Congresso e cria um quadro de não governabilidade passa a ser suscetível de impeachment. Não basta só o argumento do crime político, é preciso que haja condição econômica e política.



E não estamos nesse cenário…

Não se tem esse cenário. Tenho impressão até de que há um certo cansaço em relação a isso. Tendo em vista o elemento traumático que compõe o impeachment, a ruptura, o sentimento de vendeta que alimenta as forças políticas retiradas do poder. Tudo isso me parece que levou as forças políticas de hoje a terem consciência de que não é o melhor caminho. E isso não deveria nunca ser nem pauta política, isso é uma medida in extremis que, no nosso caso, em 30 anos, usamos já duas vezes. Portanto, de exceção, tornou-se quase uma regra.
 
Parte dos ataques feitos contra o Congresso e o STF decorrem da dificuldade do governo em fazer avançar suas propostas. Alega-se que não estão deixando o governo governar. Se o governo tem dificuldade de articulação política, atacar as instituições não é grave?

Isso que me parece que devemos esclarecer a opinião pública .Vejo, por exemplo, algumas pessoas dizendo ter saudades da ditadura militar. Fui aluno de universidade no período do governo militar. Vi a universidade invadida por militares. Não tenho saudade alguma. Tivemos ditadura sim, lamentável. Não devemos ter nenhuma saudade do regime militar. Aí falam assim ah, deveríamos ter o AI-5. Pra quê AI-5? Fecha habeas corpus, fecha Congresso, as pessoas passam a ser ameaçadas. E as Forças Armadas democráticas hoje estão a serviço disto? Quem defende esse tipo de ideia diz que as Forças Armadas serão sua milícia. Estão transformando as Forças Armadas em milícia de um eventual presidente da República. Não acredito que as Forças Armadas estejam a serviço desse tipo de projeto. Me parece que isso é uma grave injúria que cometem contra as nossas Forças Armadas. A mim me parece que isso é muito grave.

O ministro Celso de Mello disse que, se o presidente compartilhou o vídeo sobre a manifestação, ele não estaria à altura do cargo. O que o senhor acha?

Não vou discutir a nota do decano. O presidente foi eleito dentro de uma eleição disputada, normal. Tem título, portanto, para dirigir o país. Recebeu o mandato para isto. Isso não está em questão. Agora, a condição para todos nós exercermos a nossa função é o respeito à Constituição. E o respeito às instituições. Isso é fundamental.



Como o STF pode ajudar a equilibrar a relação entre os poderes?

O tribunal tem decidido uma série de questões. Ainda na semana passada, decidimos aquela questão da antecipação da prorrogação das concessões. É um projeto que vem sendo discutido desde o governo Dilma, passou pelo governo Temer e veio até o atual governo. É uma forma de tentar levantar recursos na área de infraestrutura, fundamental para o nosso desenvolvimento. É um processo complexo, a ministra Cármen Lúcia relatou que, sem ter feito audiência pública, teve mais de 39 audiências ouvindo todos os lados envolvidos, uma questão importantíssima que o tribunal pautou e decidiu. Deu segurança jurídica numa questão extremamente relevante. Os desinvestimentos da Petrobras, o tribunal também decidiu a tempo, pacificando essa temática que gerava tanta polêmica. A partir daí, o governo, sem ter que fazer privatização, pôde fazer esse desinvestimento.

Em relação às delações, muita gente tem dito que vai atrapalhar a Lava-Jato...

Não. Nada disso. O importante é fazer investigações com segurança. Veja: o Ministério Público arguiu a inconstitucionalidade da lei que permitiu policiais federais fazerem as delações. Nós mantivemos a possibilidade que a lei tinha criado. Agora há muitas imputações. Veja os dois casos mais notórios: o Palocci e o Sergio Cabral. Estão dizendo que são delações feitas pelo Google.

Todo mundo diz que o senhor solta demais. Como vê essa crítica?

Todas as minhas decisões, se vocês olharem, são poucas que não foram ao plenário ou à turma. Todas foram confirmadas. Portanto, não são decisões pessoais minhas. Acho que não há nenhum caso de repercussão que não tenha sido chancelada.  E são casos notórios que não era necessária a prisão ou parecia abusiva a prisão. Tipo de prisão espetáculo, ou que a pessoa não ia fugir ou que a instrução já estava concluída ou casos até de crimes famélicos. Ainda esses dias nós demos um habeas corpus num caso reincidente de uma pessoa que tinha furtado algumas moedas no valor de R$ 4,15. Veja isso acaba chegando aqui. Uma vez, conversando com uma colega de vocês e ela disse “por que vocês dão habeas corpus para ricos?”. Respondi que damos habeas corpus para ricos e pobres, mas vocês, jornalistas, só se interessam por ricos. Era uma brincadeira obviamente, mas é que o habeas corpos do rico chama a atenção. E as prisões hoje são home office do crime. Você leva uma pessoa que roubou uma bala e ele vira soldado do crime organizado. Temos de pensar a segurança de maneira holística.