Do gabinete no quinto andar do Supremo Tribunal Federal, a ministra Cármen Lúcia enxerga muito mais do que o Palácio do Planalto e parte do Congresso Nacional. Dali, onde despacha há mais de 14 anos, a jurista sentencia: “Somos uma sociedade machista e preconceituosa”. Da visão panorâmica da Praça dos Três Poderes e com a larga experiência na mais alta corte do país, da qual já foi presidente e primeira mulher a quebrar o rígido protocolo e usar calças e não saia nas sessões, ela adverte que os homens públicos devem dar exemplo e não, em hipótese alguma, estimular o preconceito. “Quem está num cargo público tem de ter cuidado muito maior com o que diz”, ensina.
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Não. Pode representar um ótimo momento para as mulheres terem um espaço de reflexão. Entender por que a situação está como está, e o que é preciso fazer para superar esse estado de tanta virulência, de tanto preconceito, de tanta crueldade contra as mulheres. É preciso a gente valer-se desses momentos. No turbilhão da vida, às vezes a gente não para pensar, para trocar com outras pessoas o que elas pensam. É certo que, sem um pensamento amadurecido, refletido, crítico sobre isso não teremos uma superação. Até porque, a gente acaba agindo ao sabor dos acontecimentos que se sucedem com uma rapidez muito impressionante.
Como a senhora classifica o momento exacerbado que vivemos, com tanta dificuldade de relacionamento entre os poderes?
As dificuldades vêm talvez do temperamento das pessoas que estão nos cargos. Talvez elas tenham que atentar cada vez mais ao que afirma a Constituição sobre a impessoalidade como princípio da administração pública. O artigo 37 dispõe que a administração pública tem como princípios a impessoalidade, a legalidade, a publicidade, a moralidade. A impessoalidade significa que agir como servidor, como agente público, impõe o dever de não trazer sua personalidade em primeiro plano sobre o interesse público. Vejo um momento em que é preciso ficar atento a isso, não deixar que isso se desfigure.
Tem sido assim hoje?
No caso dos poderes, a Constituição também é expressa quando diz que são independentes, mas têm de ser harmônicos; porque isso é que leva a uma sociedade justa, equilibrada e solidária. Está no preâmbulo da Constituição; não é sugestão, nem proposta. É a lei primária do Brasil. Tudo que for contra isso precisa ser cerceado. Vejo sempre com preocupação todo descumprimento de Constituição. Mas vejo com muito mais quando se acirram situações às quais precisamos ficar atentos para impedir qualquer coisa que vá além, que não possa ser refeito.
O Brasil está fechando os olhos para a Constituição? E os governantes?
O Brasil, não. Governantes e governados não podem deixar de cumprir a Constituição. A qualquer excesso, o próprio direito responde.
Quando um agente público ofende uma profissional de imprensa, mulher, não está afrontando a Constituição?
A Constituição, não. Ele estaria afrontando, se fosse o caso, outras leis, e a pessoa que se sentiu ofendida tem de tomar providência. É o que eu disse: é preciso tomar em conta o comportamento que nós todos, agentes públicos, precisamos cuidadosamente observar, porque é dever jurídico e dever da própria civilidade.
O comportamento de Jair Bolsonaro se enquadra no que a senhora diz?
Não vou dirigir a um ponto específico. Primeiro porque, sobre questão entre os poderes, fala pelo Supremo o presidente, que já se manifestou nos casos em que ele tem que se manifestar. O presidente fala pela instituição, e as instituições é que precisam estar afinadas e harmônicas. Em segundo lugar, porque nossa preocupação maior tem de estar voltada para todas as pessoas. Um comportamento que sobressaia é que tem de ser respondido. Tudo que é contra a imprensa não vale em uma democracia. Sem imprensa livre não há possibilidade de termos uma democracia forte. A imprensa é que dá voz e vez nos momentos em que as pessoas não têm voz e vez. No Brasil, vocês são exemplares. Para mim, se há profissionais que admiro é jornalista e comandante de voo (risos).
A senhora critica os partidos mais pragmáticos do que programáticos.
O partido político tem que ter programas para seguir, se adequar a eles, realizando um conjunto de ideias, valores e propostas do interesse do povo. No entanto o que gente vê é a presença de 36 partidos, 33 com representação no Congresso, 21 com representação no Senado, 76 pedidos de novos partidos no TSE. A pergunta é: há programas realmente muito diferentes?. Alguns são idênticos.
No seu voto sobre a censura, a senhora falou “cala a boca já morreu”. O que sentiu quando tentaram censurar Machado de Assis, Euclides da Cunha?
Acho tão fora de qualquer propósito, porque a Constituição é taxativa: não se admitirá censura em qualquer caso. Machado de Assis é universal. Honra nós, brasileiros, mas honra o pensamento humano. Sou incapaz até de entender a causa, mas sou capaz de entender as consequências se não tivesse imediatamente havido a reação, desde a Academia Brasileira de Letras, a todos os lugares. Censura é inconstitucional. Censura não vale. O ser humano tem a garantia da dignidade e a liberdade de pensamento. A liberdade de expressão de pensamento tem de ser garantida exatamente em benefício da manifestação de todas as formas de liberdades, mais ainda de expressão.
Acredita que a democracia está em risco?
Nunca acredito nisso. A democracia é um compromisso da sociedade brasileira. Eu que sou, na minha função, uma das responsáveis pelo cumprimento da Constituição – todo brasileiro o é – repito e acredito no que disse Ulysses Guimarães: essa Constituição viverá enquanto viver a democracia no Brasil. Descumprir a Constituição é trair o Brasil. Trair a Constituição é trair a democracia. A Constituição está em vigor e será aplicada permanentemente. Tenho certeza de que o Poder Judiciário tem dado demonstração de que nós não deixamos de fazer cumprir a Constituição e de dar resposta a qualquer descumprimento.