Na ausência de uma legislação específica que defina como crime a produção e o compartilhamento de fake news no cenário de pandemia do novo coronavírus e de ameaças à saúde coletiva, autoridades passaram a enquadrar casos à Lei de Contravenções Penais, de 1941, numa tentativa de coibir a disseminação de notícias falsas relacionadas à covid-19. O dispositivo já foi utilizado em ao menos três capitais.
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'Fake news é coisa de covarde', diz Maia sobre perfil falsoCPI das fake News é aprovada com foco na pandemiaEm semana de fake news de Bolsonaro, Mandetta reclama de mensagens inverídicas: ''Dá um trabalho enorme''Em Belo Horizonte, a polícia recorreu ao dispositivo ao investigar o homem que fez um vídeo na Ceasa denunciando um falso desabastecimento, em março. O conteúdo foi compartilhado pelo presidente Jair Bolsonaro, e depois apagado.
No Recife, em fevereiro, quando o município registrava apenas cinco casos suspeitos de covid-19 um cidadão apresentou-se nas redes como profissional da saúde e disse que a capital pernambucana tinha 61 infectados. A alegação inverídica preocupou a população, que passou a desconfiar da transparência dos gestores locais. Com base na lei de contravenções, o município pediu uma investigação policial, que comprovou a mentira.
Em Vitória, a polícia indiciou um homem que publicou vídeo no qual dizia estar infectado e que, prevendo um cenário de caos com a disseminação da doença, usaria sua arma para se defender. Mais tarde, quando a gravação já estava amplamente disseminada, ele descobriu que o resultado do exame era negativo.
O Ministério da Saúde tem manifestado, em coletivas, preocupação com o fenômeno de postagens que confundem a população. A Polícia Federal informou, no entanto, que até agora não foi acionada por órgãos federais da área da saúde a respeito de "possíveis práticas criminosas" ligadas à divulgação de fake news relacionadas à pandemia. À reportagem, o Supremo Tribunal Federal destacou, em nota, que integra o Painel de Checagem de Fake News.
Nas eleições de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que tem na sua composição ministros do STF, chegou a instalar um grupo para monitorar crimes nas redes, mas não apresentou resultados convincentes. Em março de 2019, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, abriu inquérito para apurar crimes nas redes contra ele e outros membros da instituição. No último dia 6, o ministro limitou-se a dizer que quem propaga notícia falsa sobre a covid-19 comete dolo.
Reprimir fake news com o aparato estatal, no entanto, não é recomendável, avaliam especialistas, por conta de riscos à liberdade de expressão. As principais medidas nesta crise têm sido tomadas por órgãos de imprensa e pelas gigantes de tecnologia. O procurador-geral do Recife, Rafael Figueiredo, reconhece que o efeito inibidor é baixo. "Embora seja uma punição de menor potencial, elas podem perder a primariedade penal, além de ter que gastar horas indo se explicar à Justiça", comentou, ao mencionar a lei de contravenções.
Se a punição para quem usa a tecnologia para oferecer riscos à saúde pública é branda, bastaria endurecê-la? Esse é um caminho problemático, afirmam especialistas. Caberia a deputados e senadores criar as leis, além de definir o que deveria ser considerado fake news ou não.
Subjetividade
A conceituação é mais complexa do que parece, uma vez que a desinformação possui várias nuances. O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), por exemplo, publicou um vídeo verdadeiro do médico Dráuzio Varella dando orientações sobre como encarar o novo coronavírus. Contudo, as explicações eram de janeiro, num cenário de alastramento completamente diferente, e foram publicadas como sendo atuais. O Twitter removeu a publicação. "Não adianta colocar uma proibição na lei e esperar que o Judiciário julgue todos os casos. O volume de posts torna inviável. Mesmo que fosse viável, não é boa ideia, dada a subjetividade, concentrar esse tipo de decisão nas mãos de poucas pessoas", afirmou o professor Ivar Hartmann, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV Direito Rio.
É o que também defende Sérgio Lütdke, coordenador do Projeto Comprova, iniciativa que reúne jornais brasileiros para combater a desinformação - e da qual o Estado também faz parte. "Qualquer atitude ou legislação que se imponha sobre a livre manifestação das pessoas pode ter consequências nefastas. Deve haver regulação de outras maneiras. Atitudes mais reativas tendem a ser melhores do que as que podem levar à censura."
Caso alguém se proponha a recomendar tratamentos falsos que prejudiquem a saúde dos que receberem a informação, há quem entenda haver margem para processos por lesão corporal ou mesmo tentativa de homicídio. "Temos alguns crimes que poderiam ser interpretados para englobar essas situações. Mas quando você precisa pegar a legislação penal e fazer interpretação grande em cima dela para punir, os tribunais não aceitam", avaliou o advogado Gustavo Arthur Coelho Lobo de Carvalho, especialista em Direito Constitucional e Administrativo. "A hipótese criminal tem que estar muito clara. Penalmente falando, a gente não está protegido." As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.