O protagonismo do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta no combate à pandemia de coronavírus, que incomodou o presidente Jair Bolsonaro e causou a sua demissão, não é caso único na história do Brasil.
Nas duas últimas décadas do século 20, os ministros Dilson Funaro, no governo Sarney, e Fernando Henrique Cardoso, na gestão de Itamar Franco, também foram protagonistas durante crises e tiveram popularidade igual ou maior do que a do próprio presidente.
Em 1956, depois da tentativa de alas militares e de partidos de oposição de dar um golpe para impedir a posse de Juscelino Kubitschek, o então ministro do Exército, marechal Henrique Lott, garantiu a ascensão do ex-governador de Minas à Presidência da República.
Há 115 anos, quando outra epidemia matava muitos brasileiros, o presidente Rodrigues Alves deu plenos poderes ao sanitarista Oswaldo Cruz, como diretor-geral de Saúde Pública, para tornar obrigatória a vacinação contra a varíola no Rio de Janeiro, a capital do país, o que, entre outras razões, deu início à Revolta da Vacina.
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Há 115 anos, quando outra epidemia matava muitos brasileiros, o presidente Rodrigues Alves deu plenos poderes ao sanitarista Oswaldo Cruz, como diretor-geral de Saúde Pública, para tornar obrigatória a vacinação contra a varíola no Rio de Janeiro, a capital do país, o que, entre outras razões, deu início à Revolta da Vacina.
O QUE DISSE O PRESIDENTE
"Algumas pessoas no meu governo estão se achando. De repente, viraram estrelas”
“Falam pelos cotovelos. TÊm provocações. Mas vai chegar a hora deles”
“O Mandetta já sabe que a gente está se bicando há algum tempo”
“Ele extrapolou. A minha caneta funciona. Não tenho medo de usar a caneta”
Jair Bolsonaro, PRESIDENTE
O QUE DISSE O EX-MINISTRO
"Em vez de postar dez fake news, poste duas. Já ajuda, porque dá um trabalho enorme tirar as fake news”
(Declaração de Mandetta foi considerada recado ao presidente e ao chamado “gabinete do ódio” comandado pelo filho dele Carlos Bolsonaro, acusados de divulgar fake news)
“A mão que afaga é a mesma que apedreja”
(Mandetta cita trecho do poema Versos íntimos, de Augusto dos Anjos, para ironizar Bolsonaro, que o nomeou e agora o critica publicamente)
“Li de novo O mito da caverna e continuo não entendendo”
(Mandetta ironiza Bolsonaro ao citar obra do filósofo grego Platão sobre um prisioneiro que escapa da realidade distorcida de uma caverna e conhece a luz – a ciência criticada pelo presidente)
“Ele tem mandato popular, e quem tem mandato popular fala, e quem não tem, como eu, trabalha”
LUIS CARLOS MANDETTA, EX-MINISTRO DA SAÚDE
1904 – cientista
OSWALDO CRUZ
O presidente da República, Rodrigues Alves, nomeou o médico sanitarista Oswaldo Cruz como diretor-geral de Saúde Pública (cargo correspondente hoje ao de ministro da Saúde) com poderes absolutos para comandar a campanha de saneamento da cidade, inclusive com vacinação obrigatória da população contra a varíola, que causava muitas mortes. A então capital federal tinha toneladas de lixos nas ruas e boa parte da população morava em cortiços. Além da varíola, febre amarela, peste bubônica, tuberculose, tifo e sífilis dizimavam a população. A aprovação da lei para vacinação obrigatória causou polêmica porque exigia da população comprovantes de vacinação para matrícula nas escolas, obtenção de empregos, viagens, hospedagens e casamentos e multa a quem resistisse a ser imunizado. Oswaldo Cruz chegou a ser cercado e ameaçado nas ruas. Em novembro de 1904, estourou a chamada Revolta da Vacina. O motim popular ocorreu entre os dias 10 e 16 e culminou com depredação do patrimônio público e confronto com forças policiais, deixando 30 mortos e dezenas de feridos. A insatisfação da população estimulou tentativa fracassada de golpe de Estado na madrugada do dia 15, organizada por militares ligados ao ex-presidente Floriano Peixoto e aos positivistas, com apoio de setores civis. No dia seguinte, a vacinação passou a ser facultativa. Com o passar dos anos, entretanto, ficou provado que Oswaldo Cruz tinha razão ao defender a vacinação em massa. Ele morreu em 1917, um ano antes de uma epidemia maior, a gripe espanhola, que matou o então presidente reeleito Rodrigues Alves e milhares de brasileiros.
1956 – MARECHAL Henrique LOTT
Depois do traumático suicídio do presidente Getúlio Vargas, em agosto de 1954, o Brasil estava outra vez em grave crise, com constantes ameaças de golpes militares. O vice-presidente Café Filho assumiu o governo, mas a instabilidade institucional era grande. Ele ficou apenas até novembro de 1955, quando se afastou alegando problemas de saúde. Assumiu então o governo o presidente da Câmara, Carlos Luz, que acabou deposto em 11 de novembro, em contragolpe ou golpe preventivo – por tentar impedir a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek – por seu próprio ministro da Guerra, Henrique Marechal Lott, que não havia votado em JK, mas era legalista e defendia o respeito ao resultado da urnas e a manutenção da democracia. As Forças Armadas estavam divididas. O vice-presidente do Senado, Nereu Ramos, assumiu então a Presidência da República. Para garantir a posse de JK e de seu vice, João Goulart, sob comando de Lott, foi aprovado estado de sítio no país e o impedimento de Carlos Luz, que pretendia reassumir o governo. Nereu Ramos fez a transição até a posse de JK, em 1956. Lott, fortalecido, continuou como ministro da Guerra no novo governo. Nunca um ministro teve tanto poder no Brasil.
1986 – economista
DILSON FUNARO
O senador José Sarney assumiu a Presidência da República em 21 abril de 1985, após a morte de Tancredo Neves. O Brasil vivia grave crise econômica e, em 1986, com inflação de 15% ao mês, foi lançado o Plano Cruzado, tendo à frente o ministro da Fazenda, Dilson Funaro. O cruzeiro foi substituído pelo cruzado, com o corte de três zeros na moeda. Foram congelados preços e salários, que aumentariam apenas se a inflação atingisse 20%. A população foi incentivada a fiscalizar os preços, a inflação e o emprego diminuíram, o poder aquisitivo aumentou. O sucesso inicial do Plano Cruzado deu notoriedade ao ministro, que passou a ser reconhecido nas ruas, com popularidade igual ou maior do que a do presidente. Mas logo surgiram outros problemas, começaram a faltar produtos e houve ágio num mercado paralelo. A inflação voltou a disparar, e também o preço de combustíveis, bebidas e carros. O governo esperou passar as eleições gerais de outubro, na qual o PMDB, partido oficial, conquistou a maioria das cadeiras no Congresso, e evitou medidas impopulares para lançar, em novembro de 1986, o Plano Cruzado 2, com novo congelamento de preços. Os velhos problemas voltaram e a economia entrou em colapso. Em maio de 1987, a inflação já ultrapassava 20% ao mês. O fracasso do plano provocou a queda do ministro da Fazenda, que morreu dois anos depois, vítima de câncer.
1994 – sociólogo
FERNANDO HENRIQUE
No fim de 1992, o vice-presidente Itamar Franco assumiu o governo depois do impeachment de Fernando Collor de Mello, que sucedeu a José Sarney, mas foi engolido pelas denúncias de corrupção envolvendo seu tesoureiro de campanha, Paulo César Farias, e pela perda de apoio no Congresso Nacional. O país sofria com outra grave crise institucional e, depois de várias tentativas com ministros para que conseguissem estabilizar a economia e controlar a hiperinflação, Itamar Franco transferiu o senador Fernando Henrique Cardoso do Ministério das Relações Exteriores para o Ministério da Fazenda. Foi lançado então o cruzeiro real para tentar estabilização da moeda. Mas, em junho de 1994, a inflação chegou a 47%. O novo titular e sua equipe econômica lançaram então o Plano Real, criando a Unidade Real de Valor (URV), com regras de conversão de valores monetários e desindexação da economia lastreada no dólar comercial, que culminou no real como moeda, em vigor até hoje. Houve também ajuste fiscal com arrocho orçamentário para controlar gastos e aumentar a arrecadação. O plano acabou com a hiperinflação e estabilizou a economia. O Fernando Henrique ganhou tanta notoriedade e popularidade que atropelou as pretensões eleitorais do próprio Itamar Franco e acabou sucedendo-o ao vencer as eleições de 1994. Cumpriu dois mandatos.
2020 – médico
LUIZ MANDETTA
Doze décadas depois de um auxiliar do presidente assumir o protagonismo no governo durante grave epidemia, a história se repete. Nomeado ministro da Saúde pelo presidente Jair Bolsonaro em 2019, o discreto deputado federal Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) ganhou popularidade ao conduzir as políticas públicas de combate à pandemia do novo coronavírus, que já matou 2 mil pessoas no país. A defesa do isolamento rigoroso, com fechamento de escolas e estabelecimentos comerciais para evitar a propagação da doença, acabou opondo Mandetta a Bolsonaro e levou à demissão do ministro ontem. O presidente defende isolamento parcial, apenas para pessoas na faixa de risco, como idosos e portadores de comorbidades, sob alegação de que a economia não pode parar totalmente ou a recessão será pior do que a prevista. A queda de braço entre ambos se tornou pública, com declarações sobre as divergências. Mandetta, por sua vez, colheu os louros da popularidade e, nos bastidores do governo, falava-se que o agora ex-ministro já pensava até em se lançar candidato à Presidência da República em 2022, se conseguisse grande êxito no combate à pandemia, o que, se for verdade, teria aumentado as desavenças com Bolsonaro, que pensa na reeleição. Verdade ou não, Mandetta está fora do jogo.