Jornal Estado de Minas

Churrasco no Alvorada

Bolsonaro e a crise política construída no Palácio do Planalto


Não bastasse a grande quantidade de mortes e doentes vítimas do novo coronavírus, que avança rapidamente e lota UTIs, o Brasil passa por seguidas crises políticas. Todos os dias, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) está no centro de polêmicas e embates.


Enquanto todos os países e líderes mundiais se previnem contra a doença, Bolsonaro desdenha. São declarações contundentes, muitas vezes seguidas de pedidos de desculpas ou da usual justificativa de que a imprensa “distorce” sua fala ou “tira de contexto”.

Nos últimos dois meses, desde o início da pandemia, Bolsonaro desdenha da gravidade da doença, desautoriza ou demite ministros, ataca os demais poderes da República, governadores e prefeitos e segue se negando a cumprir as medidas preventivas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde. E, hoje, em mais uma grave afronta, pretende fazer churrasco para 1,3 mil pessoas no Palácio da Alvorada, como ele mesmo anunciou.
 
Sempre que foi aos microfones, principalmente diante de sua claque diária no Palácio da Alvorada, Bolsonaro menosprezou a COVID-19. Em uma de suas primeiras manifestações públicas sobre o coronavírus, em 9 de março, em evento evangélico para brasileiros em Miami, ele disse que estaria “sendo superdimensionado o poder destruidor desse vírus”. E assim seguiu durante todo o mês.




 


No dia seguinte, ainda nos EUA, Bolsonaro disse que havia uma “pequena crise” e, mais uma vez, atribuiu responsabilidade aos veículos de comunicação: “No meu entender, muito mais fantasia a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propaga pelo mundo todo”.
 
Em 15 de março, quatro dias após a OMS ter declarado que o mundo vivia pandemia, Bolsonaro participou de manifestação de apoio ao governo em frente ao Palácio do Planalto. Vestindo camisa branca da Seleção Brasileira, fez contato físico com apoiadores, balançou bandeiras, tirou fotos com celulares alheios, para, no dia seguinte, afirmar em entrevista: “Fui realmente, apertei a mão de muita gente em frente ao palácio, aqui na Presidência de República, para demonstrar que estou com o povo”.

 

A presença de Bolsonaro em manifestações são recorrentes. Além da aglomeração de pessoas e de outros atos que desrespeitam o isolamento, o objetivo dos eventos também chamou a atenção. Em todos esses encontros era possível ver faixas e cartazes com os dizeres “Fora, Maia”, “AI-5”, “Fecha o Congresso”, “Fecha o STF” e “Intervenção militar já”.


 
Em outras ocasiões, o presidente fez passeios em Brasília, Cristalina (GO) e Porto Alegre, causando aglomerações. Bolsonaro foi flagrado apertando a mão de uma senhora logo após coçar o nariz e tendo crise de tosse enquanto discursava par apoiadores em Brasília. Apenas em um desses atos usou máscara. Ainda assim, o equipamento, por várias vezes ficava cobrindo o queixo ou o pescoço do presidente, que deixava nariz e boca descobertos.

FACADA E 'GRIPEZINHA'


A primeira morte causada pelo coronavírus no Brasil foi registrada em 17 de março. Três dias depois, em coletiva no Palácio do Planalto, o presidente ironizou a doença. “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”, declarou. Ainda em março, no dia 24, Bolsonaro fez um de seus vários pronunciamentos em cadeia de rádio e TV, que foi alvo de muitas críticas, pelo tom jocoso e negacionista. “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão”, disse, se referindo ao médico Drauzio Varella e à TV Globo.

 

Nos últimos dias de março, Bolsonaro afirmou que “o brasileiro tem que ser estudado”, pois “não pega nada” mesmo depois de pular “em esgoto”. E que deveria enfrentar o vírus “como homem”, já que “todos nós vamos morrer um dia”. Naquele dia, o Brasil já registrava 136 mortes causadas pela COVID-19.


 
Abril começou com o presidente zombando de quem estava com “medinho” de ser acometido pela doença e afirmando, sem apresentar nenhum fundamento, durante um evento por videoconferência com lideranças religiosas, que parecia estar “começando a ir embora a questão do vírus”. No mesmo mês, Bolsonaro fez duas de suas declarações que mais causaram perplexidade e revolta em vários setores da sociedade e da classe política.
 
No dia 20, ao ser questionado sobre as 2.575 mortes já contabilizadas no Brasil, respondeu: “Ô cara, eu não sou coveiro, tá?! Não sou coveiro”. Oito dias depois, o Brasil chegava a 5.017 óbitos, superando os números da China, país considerado marco zero da doença, e que tem, aproximadamente, 1,4 bilhão de habitantes. A fala de Bolsonaro foi ainda mais impactante. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre.”

DEMISSÃO DE MINISTROS


Nas vezes em que Bolsonaro não causou alvoroço falando sobre a crise causada pelo coronavírus, ditou a pauta do dia com ataques a governadores, prefeitos, ao Legislativo e ao Judiciário e até a seus próprios ministros. Em 16 de abril, após um longo cabo de guerra sobre cumprir as medidas de isolamento social – tese defendida pelo então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta – ou “voltar à normalidade”, discurso propagado por Bolsonaro, o governo sofreu importante baixa. Mandetta, que tinha 57% da confiança da população, segundo levantamento divulgado pelo Instituto Paraná Pesquisas em 9 de abril (contra 37,5% de pessoas que disseram confiar mais no presidente), foi demitido da pasta da Saúde.


 
Em 24 de abril, o então “superministro” da Justiça, Sergio Moro, anunciou sua saída do governo e despejou uma série de acusações a Bolsonaro. As declarações de Moro fizeram com que fosse aberto inquérito no Supremo Tribunal Federal contra o presidente, pela possível prática de crimes de responsabilidade e, também, dos crimes comuns de falsidade ideológica, prevaricação, advocacia administrativa e obstrução de Justiça.

 

Nesse intervalo, houve ainda a nomeação de Alexandre Ramagem – amigo de um dos filhos do presidente, o vereador do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro (Republicanos), investigado pela Polícia Federal por chefiar um esquema de divulgação de notícias falsas. A nomeação de Ramagem foi suspensa por Alexandre de Moraes, ministro do STF, ato que Bolsonaro “não engoliu”, segundo ele próprio afirmou. O presidente chegou a afirmar que as Forças Armadas estariam com ele, que havia chegado “ao limite” e que não teria “mais conversa”, dando uma espécie de ultimato ao STF.

Questionado por repórteres sobre os imbróglios políticos , Bolsonaro, por várias vezes, se negou a responder, até chegar ao extremo. “Cala a boca! Não perguntei nada”, disse o presidente no dia 5 de maio ao ser indagado por um jornalista sobre a troca de comando da Superintendência da PF do Rio.


 
Apesar de a pandemia ter saído da pauta do presidente, dando lugar aos atritos políticos, a doença continuou a se disseminar pelo país. No dia em que tentou silenciar o repórter, o número de mortes confirmadas no Brasil chegava a 7.921.

POLÊMICA DOS EXAMES


Afinal, Bolsonaro foi ou não contaminado pelo coronavírus? Durante uma entrevista à Rádio Guaíba em 30 de abril, o presidente deu respostas conflitantes para essa pergunta. Pouco depois de afirmar que “talvez já tenha pegado esse vírus no passado, talvez, talvez, e nem senti”, ele disse: “Vocês nunca me viram aqui rastejando, com coriza… eu não tive, pô! E não minto. E não minto”.
 



Fato é que o presidente se nega a entregar os resultados de seus exames, mesmo após ordens judiciais. Em 27 de abril (4.543 mortes), após ação judicial, Bolsonaro foi intimado a apresentar, em 48 horas, os resultados de seus exames de COVID-19. Entre recursos e outras estratégias da Advocacia-Geral da União – como entregar laudos médicos no lugar dos exames cobrados pela Justiça – o Tribunal Regional Federal da 3ª Região manteve a determinação de que o presidente deve exibir os documentos. A nova cartada da AGU foi recorrer ao Superior Tribunal de Justiça, que ontem à noite atendeu e vetou a apresentação pública dos testes.



CHURRASCO NO PALÁCIO


A pandemia avança, mas Bolsonaro faz confraternização. Ele confirmou diante de apoiadores e jornalistas que fará churrasco hoje para 1,3 mil pessoas no Palácio da Alvorada. A festa, que contraria as normas do Ministério da Saúde, pode se transformar numa “peladinha, que não vai ter bebida”, disse. “Setecentas pessoas confirmaram aqui. Oitocentas pessoas no churrasco… Espera aí, quem vai aqui? Novecentas pessoas no churrasco. Tem mais um pessoal de Taguatinga: 1.100 pessoas no churrasco! Está todo mundo convidado aqui: 1.300 pessoas no churrasco amanhã. Mas quem estiver amanhã aqui… Se tiver mil, a gente bota para dentro”, afirmou Bolsonaro ontem.

Outra medida contra o isolamento que ele anunciou será uma visita que fará à mãe, Olinda Bolsonaro, daqui a duas semanas. Pertencente ao grupo de risco do coronavírus, Olinda Bolsonaro tem 93 anos e mora em Eldorado, região do Vale do Ribeira, no interior de São Paulo.