Quando o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, anunciou, em 14 de março do ano passado, que estava sendo aberto procedimento para apurar ataques e fake news contra a corte, não era possível imaginar a dimensão que as diligências tomariam mais de um ano e três meses depois. No entanto, algumas dúvidas já pairavam nos debates do mundo jurídico e críticas na imprensa: a ausência de delimitação sobre os alvos e objetivos da investigação.
Após identificar ameaças de atentados a bomba e assassinatos a tiros de ministros da Suprema Corte, o inquérito atingiu em cheio as bases do governo do presidente Jair Bolsonaro. As ações colocam a República na beira de uma crise política e podem ter impactos até mesmo em ações que pedem a cassação da chapa presidencial. No horizonte, não se desenha uma solução jurídica breve para o tema.
Eram as primeiras horas da manhã de quarta-feira (26), quando viaturas das Polícia Federal saíram às ruas em três unidades da Federação. Na mira, blogueiros com larga influência e milhares de seguidores nas redes sociais, com capacidade de pautar em poucos minutos os assuntos que ficam em alta entre milhões de pessoas, acusados de espalharem notícias falsas e atacar o Supremo.
Em outra linha de investigação, empresários de grandes redes do país tiveram computadores e celulares apreendidos. O objetivo é identificar como funciona e é financiado o esquema de propagação de mensagens deliberadas com alvos específicos. Deputados federais também foram alvo das ações. O apoio irrestrito ao governo e ao presidente da República é o elo comum de todos os investigados.
E justamente por atacar a base política e de disseminação social das informações do governo que o inquérito do Supremo entrou na mira do Poder Executivo. Horas após o cumprimento de 29 mandados de busca e apreensão em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, e da intimação de parlamentares, o Planalto convocou uma reunião com todos os ministros. O que poderia ser a realização de um gabinete de crise de emergência para discutir a pandemia de coronavírus era na verdade uma força-tarefa para discutir medidas para responder ao Poder Judiciário.
Após horas de conversa, o governo chegou ao consenso de que todos os ministros deveriam rebater as ações, mas sem citações diretas ao Supremo e seus ministros. A intenção é dar um recado para a corte de que as diligências incomodaram o governo, e na visão de quem frequenta o Palácio do Planalto, alcançou um limite de atribuições do Judiciário perante os interesses do Executivo.
Os ataques de integrantes do governo contra os magistrados criaram um consenso de apoio no Supremo. As ameaças de partir para rupturas ou objetivos autoritários passam a ideia da necessidade de proteger a democracia. As opiniões controversas em relação ao inquérito deram lugar à preocupação com as ferramentas disponíveis para lidar com novas crises, ataques ou com uma eventual escalada autoritária.
Ao decidir pela quebra de sigilo telefônico, bancário e de e-mail, o ministro Alexandre de Moraes autorizou que os dados colhidos retrocedam até o segundo semestre de 2018. Com isso, as autoridades podem ter acesso a conversas e transações financeiras que ocorreram durante as últimas eleições. Se ficar caracterizado que pessoas próximas ao presidente, ou apoiadores, financiaram correntes de fake news, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pode entender que o pleito ficou prejudicado e decidir anular a eleição presidencial, o que resultaria na perda de mandato do presidente Bolsonaro e do vice, Hamilton Mourão.
A análise do caso no TSE caiu na gestão do ministro Luís Roberto Barroso. Em entrevista ao Estado de Minas, Barroso declarou que vai pautar as ações de acordo com o pedido dos relatores. As ações que pedem a cassação da chapa vencedora das eleições estão sob relatoria do ministro Og Fernandes, que deu prazo até amanhã para que Bolsonaro e Mourão se manifestem sobre um pedido do PT para unir informações do inquérito das fake news com as ações que estão em seu gabinete.
DURABILIDADE
O fato é que o processo de investigação tem um longo caminho pela frente. Moraes tem novas informações que levam à participação de outras pessoas e até autoridades nos atos criminosos. Peritos da PF colhem provas nos materiais apreendidos para fundamentar novas ações.
O ministro Edson Fachin levou ao plenário do Supremo uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada pela Rede, e uma manifestação do procurador-geral da República, Augusto Aras, para que o inquérito seja suspenso. Em nova manifestação enviada à corte na sexta-feira, o partido mudou o teor dos pedidos e defendeu a manutenção das diligências.
O Ministério Público deve ser o destino dos autos assim que as investigações forem concluídas. Mesmo que o órgão se manifeste a favor da suspensão das diligências, o Supremo pode decidir por continuar. A investigação divide especialistas. As acusações são de que Dias Toffoli está usurpando sua competência ao abrir, de ofício, o processo investigatório, nomear Moraes para conduzi-lo e este, por sua vez, determinar diligências e até punições.
A decisão de Toffoli, no entanto, se baseia no artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (STF), que tem força de lei. Polêmico, o artigo permite a abertura de inquérito para crimes que ocorram na sede do STF, ou em suas dependências físicas. No entanto, um parágrafo único afirma que a mesma medida, ou seja, o presidente abrir investigação e nomear um de seus pares para presidir o procedimento, pode ser concretizada “nos demais casos”.
O QUE DIZEM OS ESPECIALISTAS
“O inquérito é de constitucionalidade duvidosa, pois ele se apoia em dispositivos do regimento interno que não se aplicam ao caso. O poder de revisão e de polícia do STF se refere aos eventos ocorridos dentro da corte, nas questões cíveis, administrativas e penais, e não tem abrangência externa. Há também aparente contrariedade aos princípios do juiz natural, da isonomia e do devido processo legal, infelizmente, dado que nenhum órgão poderia concentrar o poder de iniciar esse tipo de ato, conduzi-lo e julgá-lo.”
- Thiago Sorrentino, professor de direito do estado do Ibmec/DF
“Quando esse inquérito foi instaurado no ano passado, houve uma série de críticas de que seria inconstitucional, pois a corte não pode investigar, denunciar e julgar. Agora, o regimento interno abre precedente para que ocorra investigação por parte do Supremo mesmo que os fatos ocorram fora da sede do tribunal… O inquérito deve ser validado no plenário, mas acredito que alguns ministros vão entender que ele deve ser enviado à Procuradoria-Geral da República. O procurador-geral pode se manifestar pelo arquivamento, mas se o Supremo achar que tem materialidade suficiente, pode dar seguimento mesmo assim.”
- Vera Chemim, da Fundação Getulio Vargas (FGV), especialista em Supremo Tribunal Federal (STF)
Bolsonaro insiste em aglomerações
Contrariando as recomendações de autoridades sanitárias para a necessidade de isolamento social, o presidente Jair Bolsonaro foi ontem a uma lanchonete em Abadiânia, em Goiás, a cerca de 120 quilômetros de Brasília, para tomar o café da manhã. A presença do presidente provocou aglomerações.
Bolsonaro carregava consigo uma máscara, mas não a utilizou, enquanto trocava apertos de mão e posava para fotos com populares. O presidente ainda pegou uma criança no colo e conversou com pessoas também sem utilizar a máscara. O chefe do Executivo estava acompanhado do ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e do líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO).
Na sexta-feira, o Brasil registrou pelo quarto dia consecutivo mais de mil mortes por COVID-19 em 24 horas e passou a ocupar a quinta posição no ranking mundial de países com mais óbitos pela doença, ultrapassando a Espanha. Foram 1.124 mortes registradas entre quinta e sexta-feira, elevando o total de óbitos pela doença para 27.878 no país. Apenas os Estados Unidos apresentaram, até o momento, mais de três dias seguidos com óbitos superiores a mil entre um dia e outro.
Bolsonaro deixou o Palácio do Alvorada na manhã de ontem e se dirigiu à Base Aérea de Brasília, onde embarcou no helicóptero pouco depois das 9h. A agenda do presidente não informava nenhum compromisso oficial.
O líder do governo na Câmara, deputado Vitor Hugo (PSL-GO), publicou em sua conta no Twitter uma foto em que aparece junto a Bolsonaro e ao ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, todos a bordo de um helicóptero. “Indo pra Abadiânia-GO, com nosso presidente @jairbolsonaro, para conversar com a população”, escreveu o líder.
Bolsonaro chegou a abrir uma live na sua página no Facebook, em que aparece sem máscara, com um boné, no Comando de Operações Especiais do Exército de Goiânia, prestes a entrar em um dos carros oficiais da Presidência. Vitor Hugo também divulgou vídeo de Bolsonaro no local recebendo uma homenagem dos militares.