Em poucos momentos da história recente do Brasil houve uma onda tão grande de angústias e apreensões como a que está em andamento agora. Devido à pandemia do novo coronavírus, muitos brasileiros lidam com o luto pela perda de entes queridos, enquanto outra parcela significativa da população sofre com a falta de renda ou de condições mínimas para subsistência. Paralelo aos dramas pessoais, é cada vez maior o descontentamento da sociedade com os agentes políticos pelas estratégias adotadas por eles para enfrentar a crise sanitária. Juntos, esses dois ingredientes – sensação de impotência e insatisfação generalizada – podem criar o clima perfeito para que, nos próximos anos, o país presencie uma leva de pulsantes manifestações populares.
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PM analisará vídeos para identificar provocadores em ato contra Bolsonaro em SPTensão: manifestação termina em violência em São PauloDoria diz que PM agiu pela integridade 'dos dois lados' na Avenida PaulistaCom desemprego a 14,4%, analistas veem piora com fim do auxílio emergencialDesemprego de 13,8% é recorde e pode piorarBolsonaro se irrita com apoiador que o questiona sobre desemprego; veja vídeoIndependentemente do retrato final que o novo coronavírus deixar no Brasil, seja pelo expressivo número de mortes ou pelo forte impacto na economia – ou por uma devastadora crise socioeconômica causada pela junção dos dois fatores –, é provável que, após o surto da COVID-19, a população ainda carregue efeitos colaterais por conta da pandemia, e será essa comoção coletiva o principal motor para que os brasileiros saiam às ruas para reivindicar algum direito ou promover protestos políticos.
“As manifestações ocorrem a partir das angústias vividas por cada um. Hoje, há muita ansiedade entre a população de qual será o desfecho da pandemia. De um lado, temos o público com medo das consequências em relação à saúde pública, por conta das mortes, e do outro temos aqueles que temem uma crise econômica, por não terem emprego. Para qualquer um dos lados, essa crise deixará reflexos psíquicos, que farão com que as pessoas se sintam pressionadas a sair para as ruas e protestar”, analisa o médico psiquiatra e professor colaborador da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB) Luan Diego Marques.
Marques lembra que, desde antes da crise da COVID-19, o Brasil já passava por situações socioeconômicas muito complexas. Segundo ele, a pandemia apenas deixou mais evidente a fragilidade do suporte que é oferecido à população pelo Estado. “A crise externalizou pontos muito críticos da falta de gestão pública do país. E como o brasileiro já carregava uma insatisfação antiga, a situação pandêmica só potencializou isso e será mais um combustível para alimentar revoltas políticas”, pontua.
Algumas dessas emoções já estão reverberando. Recentemente, houve uma série de atos em Brasília a favor do presidente Jair Bolsonaro e críticos à atuação do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF). Por outro lado, profissionais da saúde promoveram manifestações para lamentar o número de vítimas pelo novo coronavírus e reclamar da atuação do chefe do Palácio do Planalto diante da pandemia. Não à toa, desde o primeiro registro da COVID-19 em território nacional, no fim de fevereiro, o Brasil é um dos países do mundo que mais registraram protestos e motins, de acordo com o Projeto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos (Acled, na sigla em inglês), organização não governamental especializada em coleta de dados desagregados, análise e mapeamento de crises.
A ONG formulou um rastreador de desordens para analisar o impacto da pandemia nas violências políticas e protestos em todo o mundo. Segundo a instituição, “estratégias de governança opostas em resposta à pandemia levaram ao aumento das tensões e da violência no Brasil”. “As autoridades de saúde pediram isolamento social, e a maioria dos governadores estaduais respondeu com medidas para ficar em casa. No entanto, as tensões aumentaram à medida que o presidente Bolsonaro procura acabar com as medidas de isolamento social, criticando as medidas adotadas pelos governadores”, destaca a Acled.
Além disso, a organização alerta para uma tendência de mais manifestações visto que um pedido de cessar-fogo mundial para combater a COVID-19 feito em março pelo secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, não foi cumprido pelo Brasil. “Em geral, a chamada para um cessar-fogo global não teve o resultado desejado. Em países como México, Iraque, Moçambique e Brasil não apenas os atores do conflito falharam em tomar as medidas necessárias para atender à chamada, como muitos aumentaram as taxas de violência organizada.”
FRUSTRAÇÃO
Outro combustível para as manifestações pode ser a decepção do povo com os representantes políticos eleitos em 2018 para administrar o país, sobretudo o presidente Bolsonaro. Como há uma tendência de se tratar o mandatário de um país como herói nacional, o brasileiro ansiava por mudanças ao escolher o capitão reformado do Exército como chefe do Palácio do Planalto. No entanto, como algumas expectativas não foram atendidas, parte do seu eleitorado perdeu a esperança.
“O presidente tem recebido duras críticas acerca da condução do país durante a crise. Entre elas, destacam-se justamente a falta de habilidade política, a criação de dissenso sobre questões sensíveis à saúde e a inabilidade em se comunicar com a população. Soma-se a isso a forma drástica de saída dos ministros Luiz Henrique Mandetta, Sergio Moro e Nelson Teich do governo e os fatos envolvidos” diz o advogado e especialista em direito público Rodrigo Veiga.
Ele também destaca que “o povo, ao entregar seu voto ao governante, espera que ele acerte e conduza o país da melhor forma, não importando a situação” e que “se políticas públicas efetivas não forem adotadas, a chance de insatisfação popular certamente será aumentada e manifestações contrárias ao governo poderão ganhar amplitude”.
Dessa forma, fatalmente a conta do Brasil pós-pandemia cairá no colo de Bolsonaro, e a população poderá sair às ruas mesmo que a COVID-19 não seja completamente erradicada do país. “Tão certo quanto os reflexos da pandemia é a insatisfação de um povo que se sente desamparado. Os cidadãos têm compreensão quanto à necessidade de suportar certo grau de sofrimento. Aceitam determinadas perdas como resultantes da própria pandemia e escusam o governo por tais perdas. Contudo, a partir do momento em que a compreensão das perdas deixar de refletir efeito direto da pandemia e passar a demonstrar inabilidade do governo em contornar a situação, não será o risco à saúde que impedirá o povo de buscar ser ouvido mediante manifestações populares intensas”, destaca Veiga.
MAIS DIVISÃO
Além da possibilidade de mais manifestações, o Brasil pode ver uma polarização ainda maior entre a população, o que pode ser um risco. “Além do vírus, que se tornou inimigo, temos um outro inimigo que é a divisão estrutural da população, o que se torna mais grave para a construção de uma sociedade mais justa, solidária, equilibrada e estruturada. Se nós rompermos com a democracia, que é o ápice da qualidade de vida, geramos desequilíbrio para todos”, opina o filósofo Marcelo Veronez.
“A reivindicação de direitos vai surgir de forma muito forte. O que estamos vendo é que a pandemia está revelando que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e tem complicações muito sérias. Uma vez que a população sentir com profundidade a carência desses direitos, acredito que os protestos devem surgir em uma situação de pós-pandemia, ainda que haja um desequilíbrio sanitário”, acrescenta o doutor em direito constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Alexandre Bernardino.