Uma pandemia é um assunto de saúde pública. Como tal, deveria ser tratada sempre como prioridade, unindo estratégias que tenham como objetivo comum salvar vidas. No Brasil de 2020, no entanto, ciência e política travam duro embate nos bastidores das ações de enfrentamento da COVID-19. Na batalha entre o risco absoluto da doença e os valores relativos do jogo político, são os números que salvam a sociedade da névoa ideológica que pode dificultar a visão dos fatos.
A epidemiologia é, talvez, a mais exata das ciências médicas, sendo possível dizer sem medo que, enquanto intensivistas salvam vidas na linha de frente, individualmente, é a matemática que evita as mortes em massa. Nos bastidores da pandemia, são os cálculos que nos protegem.
Quando vamos atravessar uma rua e há um carro vindo, lá longe, nosso cérebro só toma a decisão estratégica de caminhar quando, intuitivamente, calcula a velocidade do carro e cruza esse dado com a velocidade necessária para aquela travessia. É assim que sabemos se devemos esperar, caminhar ou mesmo correr até o outro lado. Se víssemos um carro se aproximando e, imediatamente, nossa visão dele fosse interrompida, não haveria como deduzir a velocidade do automóvel e, também imediatamente, saberíamos não haver segurança para atravessar.
O mesmo ocorre em uma epidemia. O acesso ao número de infectados e mortos é fundamental para cruzar com dados como a taxa de exposição (ou de isolamento) e determinar, por exemplo, a velocidade de transmissão da doença em determinada região. Então, cruzando esses dados com a taxa de ocupação dos leitos nos hospitais e (mais números) com o tempo médio de internação de um paciente daquela doença é possível saber se haverá leitos para todos que adoecerem. É assim que se avalia, por exemplo, o risco de flexibilizar a quarentena. Matemática pura.
Os números absolutos, sua evolução, a velocidade de propagação e a letalidade de uma doença, mais que um retrato do presente, determinam ações e estratégias capazes de promover um futuro mais seguro para todos.
De volta ao exemplo do pedestre, pense como seria atravessar a rua se, ao terceiro passo, houvesse uma mudança brusca na velocidade do automóvel ou nas características da faixa de travessia – mudando subitamente de asfalto para lama. Prosseguir seria arriscado, pois simplesmente não há mais como prever nada.
A decisão do governo federal de alterar os parâmetros de registro e divulgação das vítimas do novo coronavírus é como mudar as regras no meio de uma partida. Além de invalidar todas as estratégias vigentes, elevando subitamente o risco, a alteração interrompe a sequência que desenha a história da doença no país. Esse ‘desenho’ serve de parâmetro para modelos matemáticos que podem antever os passos do vírus e salvar milhares de vidas. Sobreviver fica mais difícil. Para todos.