O Tribunal de Contas da União (TCU) recomendou, nesta quarta-feira (10/6), a aprovação, com 14 ressalvas e sete alertas, do parecer prévio sobre as contas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) relativas ao exercício financeiro de 2019. Quem tem a prerrogativa de aprovar a contabilidade do governo é o Congresso Nacional. Apesar de o relator do processo, ministro Bruno Dantas, apontar sete irregularidades, seis impropriedades e uma distorção, seu voto orientou pela aprovação, no que foi acompanhado pelos demais ministros da Corte de contas. Algumas contribuições foram acatadas, como a recomendação sobre financiamento da Educação e a possibilidade do Ministério da Infraestrutura proceder estudos para concessão multimodal.
Ao iniciar seu discurso, Dantas deu alguns recados, remetendo às dificuldades vividas pelo povo inglês sob o jugo do tirano João Sem Terra. “Todas as nossas cartas republicanas, sem exceção, consagram o equilíbrio, a harmonia, a independência e a cooperação mútua dos Poderes constituídos, dentro de um sólido modelo de freios e contrapesos que funciona como anteparo do Estado de Direito contra eventuais fantasias arbitrárias de algum governante”, disse. “A democracia brasileira pode ser jovem, mas seu conceito não é recente e nem é efêmera sua construção. O abalo dos alicerces de nosso Estado de Direito Democrático não é um mero recuo à década de sessenta do século passado. É um recuo de oito séculos, ao período medieval”, acrescentou.
“Aprender com as lições do passado, cumprir as obrigações do presente e apontar o melhor caminho para o futuro é o que nos cabe fazer. Por tudo isso tenho tranquilidade em afirmar que os Poderes constituídos encontrarão o justo ponto de equilíbrio para reduzir as iniquidades e promover o bem-estar de nossa sofrida população”, assinalou.
Em relação à política fiscal, Dantas destacou a meta de resultado primário fixada pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2019, que previa deficit primário de R$ 142,5 bilhões e, ao fim do exercício, ficou em R$ 78,7 bilhões, “cenário mais favorável que o estabelecido”. O relatório apontou a evolução do endividamento público. “Em 2019, a dívida pública cresceu 9,59%, já a dívida líquida do setor público subiu de 54,1% do PIB (Produto Interno Bruto) em dezembro de 2018 para 55,7% ao final de 2019”, disse Dantas. Ele assinalou, ainda, que despesas obrigatórias representam a maior parcela: 88,7% em 2019.
Outra ressalva, segundo o ministro Dantas, foi que, em 2019, pela primeira vez desde a Constituição Federal, a União se valeu de autorização excepcional do Congresso Nacional para realizar operações de crédito em montantes superiores às despesas de capital. “A medida legislativa foi necessária porque, após os cálculos e compensações aplicáveis, verificou-se que a União apurou receitas de operações de crédito de R$ 1 trilhão e incorreu em despesas de capital de R$ 871,6 bilhões, o que conduziu a R$ 185,3 bilhões de insuficiência para atendimento à regra de ouro, que impede emissão de dívida para pagar despesas correntes. “Com os gastos vultosos que o Estado está precisando incorrer em razão da COVID-19, a situação se agravou bastante. Segundo as atualizações mais recentes da STN (Secretaria do Tesouro Nacional), a insuficiência de recursos para atender à regra de ouro em 2020 ficará em cerca de R$ 250 bilhões.”
Irregularidades
Dantas apontou várias irregularidades. Entre elas, segundo ele, o Congresso Nacional havia destinado originalmente R$ 637,9 bilhões ao custeio de benefícios previdenciários, dotação suficiente para cobrir as despesas incorridas em 2019 de R$ 630,4 bilhões. “Ocorre que esse valor foi reduzido a R$ 628,9 bilhões ao final do exercício, gerando uma insuficiência equivalente ao valor executado à conta do orçamento de 2020. As dotações referentes ao custeio de benefícios previdenciários canceladas nos últimos quarenta dias do exercício de 2019 foram redirecionadas ao pagamento de outras despesas”, alertou.
Segundo Dantas, o relatório de contas de governo tem como um dos pressupostos a existência de processos em curso no tribunal sobre os múltiplos temas tratados. “Certamente tem processo sobre o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e a ressalva sobre o custeio de benefícios previdenciários pode gerar responsabilização para os gestores que deram espaço para que o episódio ocorresse”, disse. Na prática, o Poder Executivo extrapolou em R$ 1,48 bilhão a autorização orçamentária de 2019, visto que a despesa pertence ao exercício encerrado, mas foi arcada com recursos de 2020.
“Na mesma linha, constatou-se a assunção de compromissos com organismos internacionais em montante superior às respectivas dotações. Para 2019, a dotação foi R$ 561,3 milhões inferior às obrigações do exercício (R$ 2,879 bilhões). Como parte (R$ 680,8 milhões) foi destinada ao custeio de outros passivos, cerca de R$ 1,2 bilhão de obrigações de 2019 ficaram sem o devido suporte orçamentário ao fim do exercício”, destacou. Somando os dois casos identificados, a insuficiência alcançou cerca de R$ 2 bilhões em 2019.
Questionado sobre a semelhança entre o que ocorreu com as contas do governo em 2019, que empurrou gastos para serem cobertos em 2020, e prática semelhante em 2014, quando houve pedaladas fiscais que levaram a reprovação da contabilidade do governo de Dilma Rousseff, Dantas explicou: “Cada conta é prestada por seus gestores, mas as contas do presidente são avaliadas pela macrogestão. Em 2014, houve o completo do governo em uma política de transgressão, pedaladas nos três bancos públicos e vários ministérios."
Segundo ele, o que ocorreu em 2014 não pode ser comparado com a transgressão que está ensejando uma ressalva nas contas de 2019. "Agora, foi identificada numa única autarquia, em volume nove vezes menor, por um período inferior a 30 dias. Em 2014, foram oito, nove, 10 meses de pedaladas”, comparou.
Uma terceira irregularidade, segundo o ministro, foi relativa ao aporte de R$ 7,6 bilhões na Emgepron. São permitidos aportes desde que para aumento de capital para não comprometer necessidade de investimento em estatais. “Capitalizaram a empresa para aquisição de corvetas para Marinha. Finalidade outra senão transferir recursos para compra de corvetas para Marinha. O tribunal não nega interesse público, mas não há evidências de aumento da capacidade instalada da Emgepron. Serviu apenas para fortalecer o caixa da empresa. Em regra, o gasto caberia à Marinha”, explicou.
Se o aporte fosse feito pela Marinha poderia ser computado na regra de teto de gastos. “As capitalizações não impactaram, mas mostram uma medida de escape do teto de gastos, visando despesa pública por meio de estatal. Ou seja, foram R$ 7,6 bilhões não colocados como despesa corrente”, afirmou Dantas.
Verba publicitária
O ministro destacou decisões questionáveis em relação a distribuição de publicidade pela Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom). Citou a retirada da Folha de São Paulo, por “suposta perseguição”, com “critérios pouco técnicos”. “São usados também para perseguir grupos que estão em oposição ao governo”, disse. Lembrou a intimidação ao jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, e a ameaça a não renovação da concessão da Rede Globo. “Interferências indevidas da Secom”, classificou Dantas.
“Houve redução da ordem de 28% com publicidade, por outro lado, chama a atenção que alguns canais de comunicação foram mais privilegiados do que outros, sem que houvesse justificativa para tanto”, disse. “Com frequência, há risco de desvio de finalidade de agentes estatais em possível ofensa e ameaça aos princípios do Estado Democrático de Direito, caso sejam combalidos alguns dos seus sustentáculos, como a liberdade de expressão e de imprensa”, ressaltou.
“Por certo, esse assunto não se esgotará aqui, devendo toda a sociedade e este Tribunal ficarem vigilantes, atentos e zelosos pela regularidade, legitimidade e economicidade dos gastos públicos com comunicação social do Governo Federal, visando a garantir a isonomia de tratamento entre os veículos, a imprensa livre e o compromisso com a verdade.” Dantas afirmou que o TCU sugeriu uma regra de transparência, para que a Secom encontre uma fórmula, com urgência, de listar todos os veículos que recebem dinheiro público, mesmo por meio de algoritmo ou via ferramentas.
Reconhecimento
O ministro relator Bruno Dantas afirmou que, por dever de Justiça, deve reconhecer avanços na auditabilidade da União pela atual gestão do Ministério da Economia. “Também não posso deixar de registrar o empenho do presidente Jair Bolsonaro, que de forma rápida assinou decreto aprovando o parecer vinculante da Advocacia-Geral da União para que a Receita Federal abrisse seus dados à auditoria do TCU”, ressaltou.
Segundo Dantas, agora o tribunal tem condições de concluir que as demonstrações contábeis da União representam adequadamente a posição patrimonial consolidada em 31 de dezembro de 2019. “É o reconhecimento deste relator ao esforço feito pelo governo para superar o impasse entre o TCU e a Receita Federal”, reiterou.
Acompanharam a sessão, o presidente Jair Bolsonaro, os ministros Paulo Guedes (Economia), Bento Albuquerque (Minas e Energia), Wagner Rosário (Controladoria-Geral da União), Gilmar Mendes (Supremo Tribunal Federal) e o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, entre outras autoridades.