Em meio à disparada de pessoas contaminadas e de óbitos decorrentes da pandemia do novo coronavírus, que já matou quase 40 mil brasileiros, chega a quase R$ 1,5 bilhão o valor de contratos investigados pelas polícias Federal e Civil e pelo Ministério Público nos estados, por indícios de fraudes em compras e contratos assinados para enfrentar a doença. A soma dos valores suspeitos – R$ 1,48 bilhão –, mais de 13 vezes superior ao rombo atribuído à máfia dos sanguessugas, nome dado ao esquema de compra superfaturada de ambulâncias, descoberto em 2006, que movimentou R$ 110 milhões.
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Morte de cacique da etnia Arara é o 2º óbito de indígena por coronavírus no XinguO colapso visto por dentro: médicos de Manaus falam da luta contra o coronavírusUma das principais investigações em andamento diz respeito à aquisição de 3 mil respiradores da China, feita por São Paulo. O governo paulista anunciou o pagamento de R$ 550 milhões pelos equipamentos, que viraram alvo do MP e do Tribunal de Contas do estado (TCE-SP). Depois, a gestão João Doria (PSDB) explicou que problemas com os fornecedores fizeram com que a encomenda fosse diminuída em mais da metade. Os novos termos preveem o repasse de 1.280 ventiladores ao custo total de R$ 261 milhões. Mesmo com a repactuação, inquéritos para averiguar o teor do acordo original continuam. Há contratos investigados também no Rio, Santa Catarina, Ceará, Amapá, Roraima, Pará, Maranhão, Acre e Rondônia.
Se a operação de R$ 550 milhões fosse mantida, cada equipamento teria sido vendido por cerca de R$ 183 mil. Nos termos mais recentes, cada unidade terá custo médio de quase R$ 204 mil. O valor do material importado é bem superior ao custo de 3,3 mil ventiladores adquiridos pelo governo federal junto à brasileira KTK Indústria e Comércio. Ao anunciar a negociação, em 20 de abril, o Ministério da Saúde disse ter gasto R$ 78 milhões.
A Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo informou que, dos 1.280 respiradores adquiridos, 283 já haviam chegado ao Brasil até o dia 2 deste mês. Segundo a pasta, a operação seguiu as regras dispostas na lei federal que trata dos acordos de emergência firmados em virtude da pandemia. Ainda conforme a SES-SP, caso as cláusulas contratuais sejam violadas, há previsão de devolução do dinheiro gasto, acrescido de multa de 10% do valor da operação.
CPI
Em Santa Catarina, até mesmo uma comissão parlamentar de inquérito foi aberta pela Assembleia Legislativa para investigar possível superfaturamento na compra de 200 respiradores artificiais que, em conjunto, custaram R$ 33 milhões. Após reportagem do site The Intercept, Ministério Público, Polícia Civil e o Tribunal de Contas do estado passaram a investigar eventuais irregularidades no contrato firmado entre a Secretaria de Estado de Saúde e a Veigamed, empresa responsável por fabricar os equipamentos.
Os respiradores foram adquiridos em 26 de março, com dispensa de licitação garantida por lei federal. Desde o início das investigações, o governador Carlos Moisés (PSL) perdeu dois secretários: Helton Zeferino, ex-chefe da Saúde estadual, e Douglas Borba, que ocupava a Casa Civil, pediram exoneração.
Rio de Janeiro
Investigações sobre irregularidades nos gastos para combater o coronavírus provocaram a queda também do então secretário de Saúde do Rio de Janeiro Edmar Santos. Um dos alvos dos mandados de busca e apreensão cumpridos pela Polícia Federal na semana passada foi o Palácio das Laranjeiras, sede do governo estadual e onde mora o governador Wilson Witzel (PSC). Os celulares dele e da esposa, Helena, foram levados pelos agentes.
O atraso na entrega de hospitais de campanha está no centro das apurações que envolvem o governo fluminense. Em maio, o site UOL revelou que a Iabas, organização social contratada para erguer as unidades, embora tivesse entregue apenas parte de um dos sete hospitais provisórios prometidos, já havia recebido R$ 256,5 milhões dos R$ 770 milhões orçados para custear seis meses de funcionamento das estruturas. Na semana passada, Witzel assinou decreto que afasta a Iabas da gestão do setor, que passou a ser de responsabilidade da Fundação Estadual de Saúde.
No Rio, também há suspeitas sobre respiradores que teriam sido comprados por valores acima da média do mercado. Poucos dias após ser afastado do posto de subsecretário estadual de Saúde, Gabriel Neves foi preso, acusado de compor grupo ligado a contratos para a compra do insumo, celebrados sem licitação. Segundo o MP, uma encomenda de 50 ventiladores custou R$ 9,9 milhões — pagos antecipadamente. Para o o MP, a movimentação pode ter sido superfaturada em R$ 4,9 milhões.
Legislação federal dispensa licitação
O estado de calamidade pública decretado pelo governo federal em virtude da pandemia deu origem a uma lei federal que permite, sem a necessidade de licitação, a compra de insumos para combate à doença. Santa Catarina fez valer a medida para adquirir os respiradores. O diretor-executivo da Transparência Brasil, Manoel Galdino, alerta: aquisições sem editais prévios devem ser feitas apenas em situações extremas. “Tudo precisa ser justificado. Não é porque há possibilidade de dispensar licitação que isso deve ser feito. A dispensa só deve ocorrer se for absolutamente necessária: em casos de urgência nos quais, por meios usuais, não for possível implementar determinada política pública em tempo hábil. Há muitos governos achando ser uma licença para fazer de qualquer jeito”, afirma.
Respirador faturado por loja de vinhos
O governo do Amazonas, estado onde o novo coronavírus provoca a maior taxa de mortalidade por 100 mil habitantes, também é investigado por suposta supervalorização no preço de respiradores. Emitida por uma loja de vinhos, a nota fiscal de 28 respiradores diz que a gestão de Wilson Lima (PSC) desembolsou R$ 2,9 milhões pela compra, feita em abril. À época, o Conselho Regional de Medicina do Amazonas (Cremam) alegou que os dois tipos de ventilador vendidos ao estado não eram adequados para tratar a COVID-19.
O Ministério Público de Contas estadual abriu inquérito. Assim como em Santa Catarina, os deputados estaduais amazonenses também instauraram CPI. O Tribunal de Contas local chegou a recomendar o afastamento da secretária de Saúde, Simone Papaiz, mas ela continua no cargo.
No Ceará, a Polícia Federal promoveu, na semana passada, uma operação que investiga a utilização pela Prefeitura de Fortaleza de R$ 34,7 milhões para a obtenção de respiradores. Foram cumpridos mandados de busca nas capitais cearense e paulista, onde está sediada a empresa envolvida na transação. Além de indícios de superfaturamento, o andamento da investigação leva a crer que o fornecedor escolhido não tem capacidade técnica e financeira para dar conta da encomenda. A PF suspeita de que os cofres de Fortaleza possam ter sido lesados em até R$ 25,4 milhões.
Em Roraima, a compra de 30 respiradores por R$ 6,4 milhões é alvo do MP de Contas local. Após o contrato vir à tona, o governador Antônio Denarium (PSL) demitiu o secretário de Saúde, Francisco Monteiro Neto. No Amapá, um rombo mais “modesto” foi identificado: operação feita por PF, MP Federal e Controladoria Geral da União constatou que máscaras foram superfaturadas em 220%. Dos cerca de R$ 930 mil gastos com a transação, pouco mais de R$ 639 mil poderiam ter sido poupados.
Ontem, a PF deflagrou operação que apura R$ 50,4 milhões gastos pelo governo do Pará para comprar respiradores. Outra investigação mira contrato de R$ 21 milhões, assinado pelo Executivo de Rondônia em troca de uma série de insumos hospitalares. No início da semana, a Prefeitura de São Luís virou alvo das autoridades por causa de máscaras com sobrepreço — ao custo total de R$ 3,1 milhões. O mesmo ocorre no Acre, onde 70 mil litros de álcool gel e 1 milhão de máscaras valeram R$ 7 milhões.
Muito dinheiro e pouco controle
O representante em solo brasileiro da Transparência Internacional – entidade que não tem ligação com a Transparência Brasil — Bruno Brandão, diz que o mundo atravessa a “tempestade perfeita” para o cometimento de ilícitos. “Nunca foram gastos tantos recursos públicos como agora. Ao mesmo tempo, por serem gastos emergenciais, os controles nunca foram tão relaxados como atualmente. Isso gera um contexto em que há altíssimo risco de corrupção”, afirma.
Por isso, destaca, a transparência é essencial para o enfrentamento da pandemia. “A elevação dos gastos públicos, agora, é justificada. É necessário gastar muito para dar a resposta ao problema, assim como gastar rápido, pois há emergência. Mas, ao mesmo tempo, é preciso gastar bem. Por isso a transparência conta tanto, para que sociedade, imprensa e órgãos de controle possam avaliar a qualidade a integridade dos gastos”, completa.
A Transparência Internacional divulgou, no último dia 21, um ranking sobre a lisura das contratações emergenciais feitas pelos estados brasileiros. Enquanto o Espírito Santo está no topo da tabela, São Paulo ocupa a última colocação. Segundo Bruno Brandão, o estado tem “problemas históricos” no diz respeito à pouca transparência. “Apesar de ter sido muito ativo nas respostas à pandemia, com muitos discursos do governador, São Paulo deixou muito a desejar ao apresentar informações sobre contratos e uso dos recursos públicos. As informações são disponibilizadas de maneira incompleta e inadequada”, avalia.
Na visão de Brandão, indícios de desvios podem prejudicar a forma como a população enxerga a pandemia. “A corrupção está se revelando em sua forma mais sórdida, que é no desvio de recursos que podem salvar vidas. Tirar dinheiro de respiradores é roubar de pessoas sem fôlego o equipamento que dá oxigênio a elas”, diz.
E Minas?
No ranking, Minas Gerais ocupa o 11º posto. De acordo com o representante da Transparência Internacional, o governo do estado procurou a entidade para obter orientações. “Apesar do resultado negativo inicial, houve resposta positiva no sentido da busca de informações para melhorar. Parece que há um empenho. Vamos cobrar”, avisa Brandão. A próxima atualização da classificação será divulgada no dia 24.
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