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Estado de Minas REALIDADE X FICÇÃO

As guerras de Bolsonaro

Como na obra 1984, de George Orwell, o presidente se mantem em estado permanente de conflito contra adversários, muitas vezes, imaginários


22/06/2020 04:00 - atualizado 20/07/2020 21:37

O presidente Jair Bolsonaro disse, pelas redes sociais, que Fabrício Queiroz estava em Atibaia para tratamento médico e acabou desmentindo seu advogado(foto: FACEBOOK/REPRODUÇÃO)
O presidente Jair Bolsonaro disse, pelas redes sociais, que Fabrício Queiroz estava em Atibaia para tratamento médico e acabou desmentindo seu advogado (foto: FACEBOOK/REPRODUÇÃO)


Desde mais ou menos aquela época, a guerra fora literalmente contínua, embora, a rigor, não tivesse sido o tempo todo a mesma guerra”. Quem leu o livro 1984, publicado em 1949 pelo inglês George Orwell, certamente se espanta com a quantidade de coincidências entre a obra ficcional e a realidade política brasileira contemporânea.

O presidente Jair Bolsonaro vive em constante conflito. Essa é primeira das coincidências entre o mundo real do Brasil e a Oceânia fictícia de Orwell. O estilo beligerante do presidente chama a atenção. Porém, não surpreende, já que durante toda a sua carreira política, Bolsonaro se destacou pela agressividade.

Muitas vezes é necessário que um membro do Núcleo do Partido saiba que este ou aquele item do noticiário de guerra é fictício, e acontece com frequência estar ciente de que a guerra inteira é espúria e que ela ou não está acontecendo, ou está acontecendo por razões bem diferentes das declaradas”.

Aqui, outra correspondência entre a vida e a arte: o fato de o estado permanente de conflito alimentado por Bolsonaro nem sempre ser verídico ou contra inimigos reais. Muitos de seus alvos são seres abstratos e despersonificados, como ‘a esquerda’, ‘o comunismo’ e ‘a imprensa’. O presidente também trava batalhas fictícias, quando divulga informações sabidamente inverídicas, disseminadas para fomentar o pânico permanente em quem teme aqueles fantasmas ou para reforçar sua imagem de salvador entre fiéis apoiadores.

Com o início da pandemia de COVID-19, houve quem esperasse uma mudança de postura do presidente. Alguns almejavam um combate à doença com fulcro na ciência e nas recomendações de autoridades sanitárias. Engano. Com o agravamento da disseminação do coronavírus, agravaram-se, também, as guerras de Bolsonaro.

GUERRA CONTRA OS NÚMEROS

A batalha mais recente travada pelo governo Bolsonaro foi contra a transparência na divulgação dos números das vítimas da COVID-19 no Brasil e, em última instância até contra a matemática.

Depois de alterar a diagramação do site do Ministério da Saúde, tirando o destaque dos dados negativos – sobre mortos e contaminados –, o governo decidiu postergar para 22h o horário da divulgação do boletim epidemiológico diário (inicialmente divulgado às 18h) para evitar que os telejornais pudessem dar destaque ao balanço.

O ministério chegou a retirar do ar durante quase 24h a página virtual onde os dados são divulgados. Quando o site foi restabelecido, não informava mais os números acumulados de contaminados e mortos, as taxas de infecção e de letalidade, nem disponibilizava a ferramenta de download dos dados, fundamental para análise estatística e pesquisa científica.

Essas informações só voltaram a ser publicadas ‘na marra’, depois de uma ordem do Supremo Tribunal Federal.

A forma de contagem também foi alterada pelo governo, que, passou a contabilizar os óbitos ocorridos apenas no dia da divulgação dos dados, sem considerar mortes passadas que ainda pendiam de confirmação. Essas mortes anteriores, caso não entrassem no cálculo do dia da comprovação, ficariam em um ‘limbo’, causando confusão e uma falsa impressão de retração da epidemia.

Após críticas, iniciativas da imprensa para levantamento de dados por conta própria e, por fim, a determinação judicial do STF, o Ministério da Saúde voltou a divulgar os dados consolidados, como ocorre no resto do mundo.

GUERRA CONTRA A CIÊNCIA

No universo fictício de George Orwell, a ciência foi abolida. Sumiu dos livros, dicionários e do próprio idioma. “O método empírico de pensamento, em que todas as realizações científicas do passado se fundavam, opõe-se aos princípios mais fundamentais” do sistema de governo imposto no mundo criado pelo escritor.

No Brasil de Bolsonaro, não são raras as atitudes contrárias ao pensamento científico. Cortes no orçamento da educação, manifestantes universitários chamados pelo presidente de ‘idiotas úteis’, política armamentista contrária a estudos acadêmicos, canetadas para suprimir radares de trânsito num país onde acidentes automobilísticos matam mais de 30 mil pessoas por ano, entre outras ações baseadas no 'achismo'.

Fora a peculiar conduta do ministro da Educação, Abraham Weintraub, com seus erros de português em redes sociais, agressões a mães de opositores na internet e constantes ataques a universidades públicas, classificadas por ele como locais de ‘balbúrdia’ e consumo de drogas.

Exemplos claros da guerra de Bolsonaro contra a ciência não faltam. Durante a pandemia, o presidente fez passeios em Brasília, causou aglomerações, frequentou manifestações, raramente usou máscara e fez questão de ter contato físico com aliados políticos e apoiadores. 

O presidente ainda demitiu o ortopedista Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde por discordar do entendimento do médico sobre gestão da crise. Seu sucessor, o oncologista Nelson Teich, não foi demitido, mas se desligou voluntariamente após ser pressionado e desautorizado publicamente por Bolsonaro. Na última quinta-feira, o presidente disse que os dados oficiais sobre a pandemia divulgados na gestão de Mandetta eram ‘fictícios’ e que o ex-ministro teria dado uma ‘inflada’ nos números.

O Brasil está há mais de um mês com o general do Exército Eduardo Pazuello como ministro interino da saúde. Um profissional que ‘nem é médico’.

‘Nem é médico’ foi a forma com a qual Bolsonaro classificou, por mais de uma vez, o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor da Organização Mundial de Saúde, na tentativa de menosprezá-lo. Tedros realmente não é médico. Ele é biólogo, com mestrado em Imunologia e Doenças Infecciosas (Universidade de Londres) e doutorado em Filosofia e Saúde Comunitária (Universidade de Nottingham, Reino Unido). Foi ministro da Saúde e das Relações Exteriores da Etiópia, presidente do Conselho Executivo da União Africana, presidente do Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária, além de acumular outras diversas experiências ligadas à área da saúde.

Além de tentar desqualificar o superqualificado presidente da OMS, Bolsonaro ameaçou seguir os passos do presidente americano Donald Trump e romper relações com o órgão, alegando que a organização atua com ‘viés ideológico’.

No fim de abril, Bolsonaro publicou em sua página do Facebook uma lista de falsas “diretrizes para políticas educacionais” da OMS em que apareciam recomendações sobre masturbação e relações homossexuais para crianças de 0 a 6 anos. A publicação não citava a fonte dos tais ‘dados’ e foi apagada poucos minutos após a divulgação.

Curiosamente, em algumas oportunidades, Bolsonaro usou informações da OMS para tentar fundamentar seu discurso. No final de março, o presidente da República citou uma fala de Tedros Adhanom sobre a volta ao trabalho de informais e alegou que o chefe da OMS estaria “associado” ao seu posicionamento sobre o fim da quarentena. Contudo, Bolsonaro omitiu o trecho em que o diretor da entidade explica que é preciso que os governos dos países garantam assistência às pessoas que ficaram sem renda durante o isolamento social, recomendado pela própria OMS.

Bolsonaro também pegou carona em uma fala de Maria van Kerkhove, chefe do programa de emergências da entidade. Ela havia dito que a transmissão do coronavírus por pacientes assintomáticos era rara. Após a repercussão da fala de van Kerkhove, a OMS esclareceu que pessoas sem sintomas também transmitem a COVID-19, porém o índice de transmissibilidade pelos assintomáticos ainda é objeto de estudo.

GUERRA CONTRA OUTROS PODERES

“Não interessa se a guerra está de fato ocorrendo e, visto ser impossível uma vitória decisiva, não importa se a guerra vai bem ou mal. A única coisa necessária é que exista um estado de guerra”. Esse trecho de 1984 também se assemelha à política bolsonarista. Se não há contenda, o presidente a cria, apenas para manter o permanente estado de conflito.

Foi o que ocorreu em 16 de abril, quando Bolsonaro atacou, aparentemente de maneira imotivada, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Naquele dia, o governo havia sofrido uma grande perda: a queda do popular ministro Mandetta. Horas depois o anúncio da saída do chefe da pasta da Saúde, Bolsonaro destilou uma chuva de ataques a Rodrigo Maia. Maia, contudo, não mordeu a isca. Recusando-se a rebater as agressões, disse que Bolsonaro estava utilizando um “velho truque da política de tentar trocar o tema da pauta”.

Coincidentemente, em 22 de maio, data em que o ministro Celso de Mello, do STF, determinou a liberação da gravação da fatídica reunião ministerial de 22 de abril (em que o presidente e seus ministros protagonizaram uma série de atos indecorosos e ataques a outros poderes), Bolsonaro também usou os microfones para insultar adversários políticos e afrontar outros poderes da República. Nesse dia, ele declarou abertamente que não cumpriria eventual decisão judicial que determinasse que ele entregasse seu celular fosse entregue para perícia, conforme PDT, PSB e PV requereram ao STF.

Antes de desafiar Mello, Bolsonaro já havia provocado o também ministro Alexandre de Moraes e o próprio STF, após Moraes ter suspendido a nomeação de um indicado do presidente para o comando da Polícia Federal. “Chegamos no limite. Não tem mais conversa” e “não engoli ainda essa decisão do senhor Alexandre de Moraes” foram algumas das declarações públicas de Bolsonaro.

GUERRA CONTRA A IMPRENSA

“De nossa chamada imprensa livre é exigida a apresentação de uma cobertura ‘balanceada’, na qual toda ‘verdade’ é imediatamente neutralizada por outra igual e oposta. Todos os dias a opinião pública é alvo da história reescrita, da amnésia oficial e da mentira deslavada”, na Oceânia de 1984, local fictício onde se passa a história escrita por George Orwell.

No Brasil real, o revisionismo histórico buscando abrandar os crimes cometidos no passado pela ditadura militar, a divulgação de informações falsas como o ‘desabastecimento do Ceasa de Minas’ e as ‘recomendações da OMS sobre masturbação infantil’.

Fora os recorrentes arroubos de Jair Bolsonaro contra jornalistas e veículos de comunicação. Por limitações de tamanho, apenas algumas serão descritas  abaixo.

Isso é uma patifaria, TV Globo! É uma canalhice o que vocês fazem, TV Globo. Uma canalhice, fazer uma matéria dessas em um horário nobre, colocando sob suspeição que eu poderia ter participado da execução da Marielle Franco”. Em 29 de outubro e 2019, após matéria do Jornal Nacional que noticiava que o porteiro do condomínio onde mora presidente havia dito que Bolsonaro teria autorizado a entrada no local do PM Élcio Queiroz, acusado de dirigir o carro de onde partiram os tiros contra a vereadora carioca Marielle Franco, morta em 2018.

Você tem uma cara de homossexual terrível. Nem por isso eu te acuso de ser homossexual. Se bem que não é crime ser homossexual”. Em 20 de dezembro de 2019, a um repórter que lhe questionou o que deveria ocorrer com seu filho Flávio Bolsonaro caso se comprovasse que ele cometeu crimes.

Porra, rapaz, pergunta para sua mãe o comprovante que ela deu para o seu pai, tá certo? Pelo amor de Deus. Comprovante, querem comprovante de tudo”, na mesma coletiva.

Bananas. Em 15 de fevereiro de 2020, o presidente fez um gesto de banana a repórteres que o questionaram sobre uma reforma na biblioteca do Palácio do Planalto, feita para acomodar o gabinete de sua esposa, Michelle Bolsonaro.

Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim”. Em 18 de fevereiro de 2020, sobre a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo.

É ele que vai falar, não é vocês (jornalistas), não”. Em 31 de março, incitando um de seus apoiadores a hostilizar jornalistas que faziam a cobertura em frente ao Palácio da Alvorada.

Vão abandonar o povo? Nunca vi isso, a imprensa que não gosta do povo”. Na mesma ocasião, após os repórteres, impedidos de perguntar, abandonarem o local.

A bosta da Folha de S.Paulo diz que meu irmão foi expulso de um açougue em Registro, que estava comprando carne sem máscara”. Em 22 de abril, durante reunião ministerial.

Essa imprensa lixo chamada Globo. Ou melhor, lixo dá para ser reciclado. Globo nem lixo é, porque não pode ser reciclada”. Em 30 de abril de 2020, após a repercussão da fala “E daí?”, do próprio Bolsonaro, dita no dia em que o Brasil superou a China na quantidade de mortes pela COVID-19.

É uma manchete canalha e mentirosa e vocês da mídia, tenham vergonha cara. A grande parte publica patifaria”. Em 5 de maio de 2020, sobre matéria da Folha que noticiava a suposta interferência de Bolsonaro no comando da Polícia Federal.

Cala a boca, não perguntei nada”, no mesmo dia, ao ser questionado se realmente havia interferido no comando da PF.

GUERRA DE NARRATIVAS E FOGO ‘AMIGO’

Nesse momento fora anunciado que a Oceânia na realidade não estava em guerra com a Eurásia. A Oceânia estava em guerra com a Lestásia. A Eurásia era uma aliada. É óbvio que não houve nenhum reconhecimento de que algo mudara. Simplesmente tornou-se sabido, de maneira muito repentina e em toda parte ao mesmo tempo, que agora o inimigo era a Lestásia — e não a Eurásia”. Na obra 1984, o governo seguia em guerra permanente, oscilando de maneira confusa entre inimigos e aliados.

No Brasil, o ex-chefe da pasta da Justiça, Sergio Moro foi, após deixar o cargo foi imediatamente rebaixado da condição de ‘superministro’ a ‘Judas’ por Bolsonaro, seus filhos e simpatizantes.

O presidente também guerreou abertamente com governadores estaduais e prefeitos que determinaram medidas de isolamento social durante a pandemia de COVID-19. Contrário ao distanciamento, Bolsonaro não poupou quem adotou políticas contrárias ao seu pensamento. Os alvos preferidos foram os outrora aliados, governadores Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, e João Dória, de São Paulo.

PAZ, SÓ COM APOIADORES E O 'CENTRÃO'

A Oceânia entrara em guerra com a Lestásia! No momento seguinte houve uma comoção fenomenal. As bandeiras e os pôsteres que decoravam a praça estavam todos errados! Pelo menos metade deles ostentava os rostos errados. Sabotagem! Coisa dos agentes de Goldstein!”.

Os personagens da obra de George Orwell confiavam cegamente nas informações oficiais transmitidas pelo governo. Qualquer coisa que confrontasse ou questionasse o Partido e o Grande Irmão (ou o Big Brother) era tida como falsidade e traição da pátria.

O personagem onipresente, que tudo vê e tudo sabe, criado por George Orwell foi quem inspirou o nome de reality shows em vários países era idolatrado por seus fiéis. “O Grande Irmão é infalível e todo-poderoso. Todos os sucessos, todas as realizações, todas as vitórias, todas as experiências científicas, todo o conhecimento, toda a sabedoria, toda a felicidade, toda a virtude seriam um produto direto de sua liderança e inspiração”.

Idolatria é exatamente o que os mais ferrenhos apoiadores de Bolsonaro nutrem pelo ‘capitão’ reformado do Exército. O presidente é visto como salvador da pátria, exterminador da corrupção e cura para todos os males que assolam o Brasil desde o descobrimento.

Com ‘os seus’, Bolsonaro não guerreia. Pelo menos enquanto não há críticas a suas atitudes. Com os apoiadores, que sempre o aplaudem, riem de suas piadas e lhe declaram amor eterno, Bolsonaro é solícito, tira fotos, grava vídeos e pratica outra série de gentilezas.

Avesso ao contraditório, na última quarta, ele deixou falando sozinha a youtuber Cris Bernart, que se identificou como sua eleitora arrependida e criticou suas atitudes durante a pandemia. Diante da insistência da ex-apoiadora, ligada ao Movimento Brasil Livre (também ex-aliados de Bolsonaro), o presidente disparou: “Cobre seu governador e saia daqui”.

Por conveniência e em busca de apoio político, Bolsonaro foi obrigado também a não guerrear com os parlamentares do bloco do ‘Centrão’. Conhecidos por, tradicionalmente, fazerem alianças políticas em troca de cargos e benefícios, esses deputados e senadores estão cada vez mais próximos do presidente. Na maioria das vezes por iniciativa do próprio chefe do Executivo.

Bolsonaro, como afirmou várias vezes durante a campanha presidencial, é contra a ‘velha política’ e o ‘toma lá, dá cá’ praticado no Congresso Nacional. Assim como a Oceânia da obra de George Orwell está em guerra com a Lestásia e é aliada da Eurásia. Ou não.



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