Jornal Estado de Minas

PANDEMIA

Mandetta: ''Passei a considerar Bolsonaro como parte da doença''


Filho de um médico, o ortopedista e ex-deputado Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) conta que escutou do pai o conselho que citou em entrevista coletiva no Ministério da Saúde alguns dias antes de ser demitido, em 16 de abril: "Médico não abandona o paciente". Para registrar as suas diretrizes e o trabalho de sua equipe no início do combate à pandemia do COVID-19 no país, em sintonia com as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e em desacordo com a visão do presidente Jair Bolsonaro, ele lança nesta sexta-feira, 25, o livro Um paciente chamado Brasil – os bastidores da luta contra o coronavírus (Objetiva), que chega às livrarias e está disponível também em e-book.



No livro, o ex-ministro afirma que Bolsonaro optou pelo “caminho da negação”, ao minimizar o impacto do coronavírus no sistema de saúde do país. Conta que, por isso, causava mal-estar a sua insistência em apresentar os cenários mais sombrios ao presidente, além da defesa de medidas restritivas de circulação, como fizeram governadores e prefeitos. "Era como se eu representasse o carteiro que o presidente queria matar porque levava notícia ruim", compara.

Além de críticas à OMS por buscar “soluções políticas” no início da pandemia e de reconstituir as divergências que culminaram com a sua demissão, Mandetta revela pressões do Planalto para demissões de técnicos no Ministério da Saúde, e narra os embates que teve com o ministro da Economia, Paulo Guedes, “afeito aos números, mas que não conhece povo”. O mais áspero deles, durante reunião para definição de reajuste do preço dos remédios, foi encerrado pelo vice-presidente da República. “Mourão deu um tapa na mesa e gritou: ‘Vamos parar com isso!’. Bolsonaro assistia a tudo calado, de olhos arregalados”, conta no livro o ex-ministro.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista de Luiz Henrique Mandetta ao Estado de Minas e ao Portal Uai.

O livro descreve o encontro de duas crises: uma sanitária, outra política. Como a necessidade de gestão da crise política prejudicou a gestão da crise sanitária?
São as ordens dos fatores que alteram o produto, no caso da política e da saúde. Elas não são ciências exatas. São ciências que mudam ao sabor da opinião pública, ao sabor dos fatos e das ocorrências. O que tínhamos era a percepção de uma enorme crise sanitária, um número muito grande possível de vítimas, as informações técnicas que tínhamos; e tínhamos claramente uma posição política de difícil contorno por parte do presidente. Então o que a gente fez foi construir com o Congresso Nacional, STF, TCU, Ministério Público Federal e, principalmente, com a sociedade, um espaço para a política de saúde para que as pessoas pudessem construir as suas barreiras de defesa em suas casas com as informações que nós dávamos.



Poderia dar um exemplo?
O governo federal queria uma fala ufanista, “vamos todos enfrentar, vamos vencer, brasileiros unidos”. E não era essa a mensagem. A mensagem era de preocupação com o contágio. E, se fosse logo de cara para aquela direção que o presidente queria, teríamos tido centenas de episódios iguais aos de Manaus, onde houve crise até no sistema funerário. O tempo que nós ganhamos por meio da política, já sabendo que a permanência (no Ministério da Saúde) seria difícil, foi extremamente importante para que a crise sanitária pudesse ter um mínimo de governança, de pertencimento da sociedade para que pudesse amenizar um pouco – ainda que distante do que queríamos – o impacto da crise política.

Qual foi o primeiro momento que o senhor percebeu que o presidente encararia os efeitos do vírus de uma forma diferente que a abordagem científica, inclusive negando a gravidade da pandemia?
O momento em que isso ficou muito claro foi aquele em que o presidente faz a viagem para os Estados Unidos. Explico para eles que, na Flórida, os casos estavam acelerados, alerto para terem cuidado e mecanismos de bioproteção, de biossegurança. Mas ele vai, se encontra com o presidente Trump. Eles fazem jantar em Mar-a-Lago, confraternizam, o avião presidencial volta de lá e naquela comitiva, logo na sequência, aparecem uma série de casos, inclusive o secretário de comunicação, Fábio Wanjgarten é o primeiro que cai doente.

E o presidente volta de lá, ele e Trump com visão muito similar da doença. Trump coloca o Mike Pence (vice-presidente) e tira do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), o órgão americano equivalente para doenças infecciosas. Passa sensação de que ele tem uma solução, uma bala de prata, e introduz a cloroquina. O presidente volta com a cloroquina, tratando o assunto como uma coisa menor, e começa a se cercar de pessoas que falavam o que ele queria ouvir e adota sistematicamente a posição de confrontar todas as orientações da saúde.





O senhor teve medo de se contaminar em algum momento, nos encontros presenciais de ser contaminado por alguns dos assessores ou ministros, inclusive pelo próprio presidente?
Eu tinha receio porque eles não usavam... Eu insisti muito para ter um frasco de álcool gel na antessala do presidente, que é um homem de muito contato físico. Lembro-me da posse da então secretária de Cultura, Regina Duarte, onde se fez tudo o que não se deveria fazer: aglomeração, fotos... As pessoas abraçavam, falavam no ouvido. E eu, já naquela época, mantendo a distância.

O meio político tinha, não sei se um meme, se cumprimentavam batendo um no pé do outro e achavam graça com a situação. Eu sempre guardei o distanciamento, tomei precauções, levava o álcool em gel. Quando começaram os casos dentro do Palácio, organizaram o álcool em gel. Mas realmente o modo de convivência que tínhamos no Ministério da Saúde, tínhamos um plano, quem assumiria em caso de doença. Tínhamos canecas próprias, cadeiras próprias, obedecíamos a uma lógica de biossegurança. No Planalto, não. Demoraram muito tempo até a introduzir isso. Eu tinha mais receio porque muitos dos pares eram pessoas de mais de 60 anos, tínhamos receio no STF, grupo de risco expressivo, a todos externávamos essa preocupação de se blindarem.

O senhor revela no livro que, pouco antes do início da pandemia, recebeu uma ordem do Planalto para trocar quatro secretários, incluindo o secretário-executivo, João Gabbardo. Ao questionar o presidente Jair Bolsonaro sobre o motivo da mudança, ele teria dito que era preciso colocar “gente nossa” no ministério. Quais eram os perfis dos escolhidos? De onde vieram as indicações e onde eles foram aproveitados? 
Os quatro nomes vinham do Rio de Janeiro, eu nunca soube quem fez as indicações. O único cargo no Ministério que veio antes do Rio tinha sido sugestão do Flávio Bolsonaro. Esse assunto da troca de pessoal eu consegui desviar, dizendo: ‘vamos resolver primeiro a crise sanitária’. Foi assustador porque foram em cima, por exemplo, da Política de Informática, que era o DataSus, da Secretaria Nacional de Atenção Primária e de Atenção Especializada, além da secretaria Executiva.





Se você soma os orçamentos da Atenção Especializada e da Atenção Básica, praticamente tem a totalidade do orçamento do Ministério da Saúde. Então, seja lá quem foi que sugeriu os quatro nomes e que plantou para o presidente que esses quatro nomes teriam de vir no lugar dos outros, deve tê-lo feito sabendo muito bem o que queria. Estavam mirando exatamente o orçamento do Ministério da Saúde. Como não prosperou, eu não procurei saber a origem.

Fica evidente na leitura do livro que o mineiro Wanderson de Oliveira, o secretário responsável pela Vigilância da Saúde, era um dos mais pressionados. E, em pelo menos um dos momentos do combate à pandemia, o senhor cede a uma pressão política do Planalto em detrimento de uma decisão técnica. O senhor se arrepende dessa atitude?
Conversei muito com o Wanderson, porque além de ser um técnico maravilhoso, se tornou mais do que colaborador, fomos para o campo da amizade pessoal. Quando ele toma essa medida, disse a ele: “Vamos dar um passo atrás para poder dar dois para a frente”. Era uma crise sobre determinado navio que havia ancorado na costa do Recife, com pacientes contaminados. Ele aproveitou a mesma portaria do navio, para estender a todos os outros navios. E a ponderação que havia do outro lado, era de que havia muitos navios na costa brasileira, com brasileiros a bordo e que teríamos que atracá-los para descer os brasileiros ou teriam de ficar procurando um porto no mundo para desembarcar.

Mas o fato é que o presidente da Anvisa é o almirante e a Vigilância Sanitária do Ministério sempre entra em choque com a Anvisa. O Wanderson creditava aquilo a um movimento da Anvisa contra a Vigilância Sanitária. Depois que a gente distensionou isso, logo na outra semana fizemos na rotina e conseguimos fazer a parte técnica. Depois ele entendeu: essas medidas que tinham alto impacto tínhamos de pactuar em nosso núcleo duro para não acontecer de sermos pegos. Como ele fez a nota às duas da manhã, e sozinho, na outra semana fizemos em colegiado e ficou tudo bem. Mas ele ficou aborrecido no outro dia. E demos a ordem para os navios encostarem, descerem, organizamos quando tinha estrangeiro para que as embaixadas retirassem, colocassem num avião e fossem embora e fomos o último país para fechar para a chegada de navios em nossos portos.





O senhor tem sido muito criticado nas redes sociais por ter recomendado, no início da pandemia, que os que apresentassem os primeiros sintomas ficassem em casa e somente procurassem os hospitais em caso de falta de ar. O senhor se arrepende dessa orientação? 
No início era muito claro o que fizemos: não tínhamos equipamento de proteção individual para lançar mão de nosso exército de agentes comunitários de saúde na atenção primária, que seria a grande porta de entrada das doenças no nosso sistema de saúde. Criamos a telemedicina – 136 – como grande tronco de entrada. E no caso do principal sintoma – qualquer tipo de tosse ou dificuldade para respirar – que se procurasse a unidade hospitalar. O que houve, a posteriori, foi que introduziram um protocolo de cloroquina. Defendem a tese de um tratamento de orientar as pessoas para ir à unidade de saúde e pegar a receita da cloroquina depois dos primeiros sintomas. Acontece que a cloroquina continua sem eficácia demonstrada cientificamente.

A doença continua evoluindo bem em 80% das pessoas que contraem o vírus. Desses 20% têm algum tipo de manifestação mais grave – 15% evoluem bem com algum tipo de suporte respiratório (ou seja quase 90% da população total) e 5% precisam de UTI, que são os mais graves, com ou sem cloroquina. A história natural da doença é uma história típica das viroses. A cloroquina vai ficar nesse debate até o dia em que a ciência elucidar completamente.

Em live nas redes sociais no início do mês, o presidente Bolsonaro insinuou que o senhor incentivou a compra de respiradores superfaturados. O senhor tem a consciência tranquila sobre todos os atos que assinou à frente do Ministério?
Com certeza, tranquila. Padre Antônio Vieira já dizia: “Se tudo o que fizeres pela pátria ela ainda lhe for ingrata, não tereis feito mais do que a sua obrigação e ela o que de costume”. A mão que afaga é a mesma que apedreja. Ele deve estar com algum tipo de preocupação, pois não tem uma semana que ele não me cite sobre alguma coisa e eu permaneço como cidadão. Estou torcendo para que ele vá bem como presidente e para que o país vá bem.





O relato em seu livro sobre a tensão entre o senhor e Bolsonaro durante a pandemia passa a impressão de que o presidente não demonstrava empatia pelos “mais fracos”, aqueles que seriam mais afetados ou teriam maior probabilidade de morrer com a doença. Este comportamento do presidente o surpreendeu?
Eu acho que, quando a gente mostra a gravidade dos casos, principalmente com o número de vítimas que poderiam ocorrer em todo o território nacional – não seria uma coisa localizada – e o que prevaleceu foi a lógica política, de embates com governadores e prefeitos, do que a lógica humanista, a lógica humana. A gente se surpreende, sim. Já vi parlamentares dentro do Legislativo terem comportamentos agressivos, mas chega um momento em que você tem de analisar as consequências de seus atos. Ele (o presidente) analisou e optou por este caminho. Você se depara com algo concreto, real. Quando um fato se apresenta e você testemunha, realmente você fica abismado com a reação.

O senhor, então, ficou chocado?
Entendo que o adjetivo mais apropriado não é choque, pois choque transmite uma sensação de não ter reação. Eu fiquei impressionado e procurei enfrentar em nome desse paciente chamado Brasil. Passe a considerar que ele era parte da doença, que ele era parte do quadro de vírus que chegou dentro do Brasil.

O senhor revela no livro que trabalhava com diferentes estimativas a respeito do número de óbitos, formuladas por integrantes de sua equipe. Uma delas, do epidemiologista Julio Croda, que depois deixou a sua equipe, era a mais pessimista e calculava 180 mil mortes se nada fosse feito. A do secretário Wanderson de Oliveira dizia que, se o Brasil adotasse todas as medidas necessárias, teria entre 60 e 80 mil mortes. Qual era o número que o senhor trabalhava? 
Tivemos naquela época países que não fizeram nada e tiveram tragédias; tínhamos países que tinham feito como a Nova Zelândia, um enfrentamento absoluto e praticamente fechado o país. Sabendo das dificuldades do Brasil, eu ficava no intermediário, entre o Wanderson e o Croda. Achava que, se nós fizéssemos o enfrentamento duro no início e a população se apropriasse das medidas de prevenção, ficaríamos mais próximos dos números do Wanderson. E achava que, se o Brasil deixasse o barco correr como queria o presidente, ultrapassaríamos muito mais os números do Croda.





Eu era da turma dos 150 (mil mortos), se nós fôssemos no caminho mais frouxo. Mas se fizéssemos a marcação caso a caso, tivéssemos capacidade de testagem, tivéssemos capacidade de atendimento, seríamos mais próximos ao Croda. Era o nosso desafio. Nunca falei esses números em público em respeito. O presidente meio que entregou o jogo no primeiro tempo que tem gol na saída. Ele olhou os números e falou: “Não, não, não, não quero isso não. Eu quero a economia. Vamos dar essa cloroquina, que esse povo vá trabalhar, que a gente ultrapasse isso logo”.

Então o senhor chegou a apresentar esses números para o presidente?
Sim. Entreguei o documento também por escrito.

Qual a estimativa que o senhor faz para o fim do ano?
Estamos chegando a 140 mil. Se surgir a vacina, não sabemos quando teremos a linha de corte. Mas acho que vai chegar mais próximo ao cenário do Júlio Croda em ensaio matemático.

Então mais de 60 mil brasileiros poderiam ainda estar vivos se o enfrentamento tivesse sido feito adequadamente?
Eu não posso fazer um exercício de como seria se nós lá tivéssemos continuado. Se não pode curar, temos de controlar a doença. E era para isso que íamos, a partir do momento que tivéssemos as armas, partir para um controle intenso. E se você não pode curar nem controlar, que pelo menos você conforte, que esteja do lado da família, que esteja junto do paciente.



O Ministério da Saúde buscava uma cura, apostava no controle e era solidário: estava ao lado das pessoas. Passamos a uma outra situação: nem há cura – ou pseudocuras com medicamentos sem eficiência científica – a proposta é de não controlar e de não confortar, porque nunca houve solidariedade por parte do governo com as centenas de milhares de famílias que perderam os seus entes. Com certeza, teríamos feito diferente. Entraríamos muito fortes na atenção primária e cada vez mais forte na regulamentação. Se teríamos um resultado melhor, só o tempo diria. Acho que sim.

Por que o presidente Bolsonaro faz questão de divulgar a cloroquina, embora pesquisas científicas tenham alertado para os efeitos colaterais e contraindicações do medicamento, que podem colocar em perigo a vida de muitas pessoas com problemas cardíacos?
Se você ler A Peste, de (Albert) Camus, ou a história das epidemias, você vai ver que sempre há quem alega ter o remédio. Faz parte da natureza humana. O ser humano quer acreditar que tem uma solução. Como você tem uma virose que 80% das pessoas ou têm formas leves – e nem sabem que tiveram a doença – descobrem no exame. Minha filha tem 27 anos e teve essa doença há duas semanas. Tomou novalgina, sarou. Então, se tem uma doença que cura por si mesma, – a cada dez, oito vão se curar – é muito tentador para esse pessoal achar que tem uma solução. Agora quando se faz o estudo do duplo cego – em que você dá para 100 pacientes o remédio e, para outros cem, você dá farinha, com a mesma embalagem, para ver o efeito placebo – e o resultado é igual, é uma das coisas mais fáceis de esclarecer se funciona ou não. Como foi feito e não demonstrou nenhuma eficácia.

O senhor tomaria a cloroquina?
Eu tomaria o que meu médico me prescrevesse. Se fosse cloroquina, eu ia querer saber onde ele aprendeu, o que leu e por que estava me apresentando. A única coisa que sei hoje sobre a cloroquina refere-se aos três pilares: a defesa da vida, a defesa do SUS e a defesa da ciência. Na ciência, ela cai. Dar um medicamento que já é arritmogênico sem ter o benefício claro, explicitado, do ponto de vista da saúde, é um erro muito primário. Tanto que o ministro que me sucede (Nelson Teich) se depara com os mesmos artigos e diz: “Eu não posso assinar”. Então passa-se para essa solução militar (o general Eduardo Pazuello), que não questiona nada de saúde, fala: “Cumpro a regra, me dá aqui que eu assino.” Para nós da saúde o que vale é o risco- benefício. Hoje, eu não tomo. Porque não tem benefício perto do risco que ela causa.



No final do mês de agosto, depois do registro de mais de 100 mil mortos no país, alguns médicos participaram do evento “O Brasil vencendo a COVID-19” no Palácio do Planalto, com a presença do presidente e de ministros. Eles agradeceram ao presidente pelo envio da cloroquina para os seus pacientes. Como o senhor avalia a classe médica que abraça e defende a cloroquina dessa forma?
Essas pessoas têm os seus seguidores, gostam de tratar. A gente vê muita coisa na medicina que é feita à margem da evidência científica diariamente. Esta é uma delas. O que podemos fazer é lamentar, porque a nossa profissão é baseada e é um dos pilares do Iluminismo, ela é um dos pilares do século da razão, em que a verdade científica deve ser a grande bússola das tomadas de decisão, principalmente nessas que lidam com a vida. E historicamente, desde sempre, isso foi uma luta das sociedades em relação às profissões. Por isso existem os conselhos profissionais que deveriam estar alertando e zelando pela parte ética profissional.

Se o Conselho Federal de Medicina, que é a autarquia federal, criada em 1956 se não me engano, por JK, que era exatamente para esse tipo de questão que envolve a prática médica e a liberdade de prescrição e o zelo profissional, que ela pudesse ser muito clara. O Conselho deixou isso dúbio. Falou: “O médico é soberano. Se ele prescrever qualquer coisa deve ser entregue de acordo com a sua prescrição. Não temos nenhum protocolo”. Quando ele retirou, deu margem para que cada um faça. E o Brasil faz assim: cada cidade faz, cada prefeito faz do jeito que acha que tem de fazer, cada médico faz do jeito que acha que tem de fazer, pela ausência do Ministério da Saúde, das notas técnicas, para servir como bússola, como guia.



Ele que deveria estar pegando agora, como tínhamos organizado na Secretaria de Ciência e Tecnologia e Incorporação de Insumos, que fazia a meta-análise diária no mundo inteiro para falar: “tal medicamento está se impondo”. Havia várias outras drogas sendo testadas no mundo inteiro, porque a doença nova faz com que as substâncias existentes sejam testadas. A cloroquina veio no meio disso e ela foi pinçada como uma que cabia.



O Brasil é autossuficiente, a Fiocruz produz cloroquina para nossos pacientes com malária, temos facilidade de produção. Então, ela calhou. Ela é barata, encontrada em qualquer tipo de sal, de fácil produção. Acho que ela reuniu todas essas características e serviu a esse jogo, entre uma zona cinzenta – o Conselho Federal de Medicina – e a vontade política de falar: “Olha, a minha parte em saúde eu dou essa caixinha aqui. Você toma e vai ficar tudo bem”. E então cai na estatística. Se a grande maioria já vai ficar bem de qualquer jeito, que se credite o sucesso a isso. Agora levar os médicos ao Palácio para discutir essas coisas é simplesmente parte da cena política.

Então os médicos que receitam a cloroquina e aceitaram ir ao Palácio do Planalto defender o uso da medicação fazem parte dessa cena política?
O máximo que posso dizer é que, eu como médico, da maneira como aprendi com os meus mestres é que não se faz medicina de orelhada. O achismo é o caminho mais perto do erro. O primeiro princípio de Hipócrates é que você não pode ser mais nocivo do que a condição que trouxe o doente até você. Você tem de calcular o risco-benefício. E infelizmente até agora nenhum deles demonstrou o risco-benefício. Se teve gente de idade que tomou o medicamento, teve arritmia e desenvolveu piora no quadro clínico, o tempo vai dizer. E o bom da ciência é isso, ela consegue demonstrar isso no tempo. Então o tempo para a ciência é uma joia preciosa. Estão olhando muito a questão da vacina, mas tem muita pesquisa procurando a verdade por detrás dessas drogas. No momento certo ela aparecerá.

Seis meses depois do início do combate à pandemia, o que o senhor mudaria em suas ações a partir das novas descobertas sobre a COVID-19?
Primeiro, a constatação de que o vírus não é pesado, é muito competente. No início da semana saiu uma nota técnica dizendo que o vírus pode ser transmitido por aerossol, que pode estar no ar, ou seja não se transmite só por gotículas.  Essa era uma informação preciosa para a montagem de cenários porque ela é diretamente proporcional ao tempo que ele chegaria aqui. Em segundo, se eu soubesse que a China iria fechar a exportação – e que 94% dos equipamentos estão centrados na China – teríamos começado logo a recuperação de nossa indústria de produção de máscaras, ventiladores e respiradores, para não passar pelo desespero de tentar conseguir os equipamentos de proteção individual.



Chegou a hora que passamos por cima da Anvisa, que só admitia máscara descartável, e fizemos uma orientação direta do Ministério da Saúde para que as máscaras de pano pudessem ser adotadas. Eu gostaria de ter começado essa orientação mais cedo também. Teria começado mais cedo a montagem de estruturas de testagem dentro das comunidades em áreas de exclusão, de favelas, onde é difícil entrar com carro. Agora, para isso, você tem de ter o auxílio de todos remando para o mesmo lado.

Quando o senhor vai responder às insinuações que o presidente Bolsonaro têm feito em relação à sua conduta no Ministério da Saúde?
No momento em que tivermos as mesmas condições a gente faz esse debate. Não adianta hoje. O presidente tem toda a estrutura e força da Presidência da República. A gente olha, anota num caderninho e aguarda o dia em que vai poder ter esse diálogo público com ele.

Num debate entre candidatos a presidente em 2022, por exemplo, seria a oportunidade?
Política é destino.

O senhor cita, na abertura do livro, a “eterna luta da vida contra a morte”. Quem está ganhando essa batalha no Brasil?
Acho que a vida vai ganhar. Como sempre até hoje, a humanidade ganhou, a gente ganha através da ciência. E quando a vacina chegar, ela será através da ciência, que é a maneira mais elegante de enfrentar. Agora líderes populistas e nacionalistas demonstraram que não sabem enfrentar uma doença grave e contagiosa como esta. 

Poderia definir, com um adjetivo, a postura do presidente Bolsonaro diante da pandemia?
Equivocado. Ele é um grande equívoco. 

O senhor dorme com a consciência tranquila?
Tranquila. A gente deu o máximo que podia pelo Brasil. Aquele período que a gente segurou foi extremamente importante para o SUS dar uma estruturada e para a sociedade poder se organizar. Onde vou, encontro gente que me diz: “escutei você no rádio, na televisão”. Foi muito importante ter falado para essas pessoas a verdade.