O discurso da “nova política”, que tem como principal premissa o rompimento com alguns vícios do processo de administração do país, contribuiu para que, em 2018, o Brasil tivesse uma das maiores reformulações na Praça dos Três Poderes desde a redemocratização. Se baseando no apelo de parte da sociedade para um maior rigor contra articulações por cargos e barganha, 243 deputados, 46 senadores e o presidente da República, Jair Bolsonaro, receberam os votos de confiança da população após prometerem um jeito diferente de se fazer política. Contudo, isso ficou no papel.
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Apoiadores de Bolsonaro se revoltam após reunião com Toffoli, Alcolumbre e indicado ao STFBolsonaro se irrita com críticas à indicação de Kassio Marques ao STFPrograma de Michelle Bolsonaro repassou dinheiro a ONG contra aborto Redes sociais e ministros já encarnam projeto de reeleição de BolsonaroMetade dos escolhidos está no primeiro mandato: José Medeiros (Podemos-MT), Luiz Lima (PSL-RJ), Greyce Elias (Avante-MG), Gustinho Ribeiro (Solidariedade-SE), Marreca Filho (Patriota-MA), Capitão Alberto Neto (Republicanos-AM) e Carla Dickson (Pros-RN). Completam a lista Evair Vieira de Melo (PP-ES), Aluisio Mendes (PSC-MA), Maurício Dziedricki (PTB-RS), Giovani Cherini (PL-RS), Joaquim Passarinho (PSD-PA), Paulo Azi (DEM-BA) e Lucio Mosquini (MDB-RO). Eles serão conduzidos pelo líder do governo na Casa, Ricardo Barros (PP-PR).
O deputado tem sido peça chave para tentar melhorar a relação de Bolsonaro com o Parlamento. Em 2019, o chefe do Executivo não se interessava tanto em participar das discussões com o Congresso, mas agora é extremamente aberto a diálogos. Boa parte dessa mudança aconteceu depois de o presidente tirar o novato Major Vitor Hugo (PSL-GO) do posto de liderança, em agosto, e promover Barros, um velho conhecido da política. No seu sexto mandato na Câmara, ele já foi líder do governo de Fernando Henrique Cardoso e vice-líder dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Além disso, foi ministro da Saúde durante o mandato de Michel Temer.
A mudança no comportamento do presidente, que acabou influenciando deputados e senadores a se renderem ao método mais convencional de se fazer política, é avaliada por alguns parlamentares como um desrespeito ao eleitorado. “Quem perde de verdade é o povo brasileiro, que acreditou em um projeto específico. Foi um verdadeiro estelionato eleitoral. O Bolsonaro não é mais o Bolsonaro que foi no primeiro ano, o toma-lá-dá-cá é explícito. Hoje, o presidente costura um tapete de dia, e desmancha de noite. Cada vez mais ficam evidenciados os atos de proteção do presidente a ele mesmo e aos seus aliados”, opina o líder do PSL no Senado, Major Olímpio (SP).
“O erro do presidente foi, durante a campanha, sabendo que não poderia cumprir essa promessa, se comprometer a acabar com os vícios da política, uma vez que ele enfrentaria um sistema repleto de distorções. O que define a nova política não é o discurso. Levantar a bandeira da nova política qualquer um pode fazer. A questão é na prática”, acrescenta o deputado Fábio Trad (PSD-MS).
Alerta
Os congressistas acreditam que Bolsonaro é apenas um entre os vários casos no país de candidatos que são eleitos sob a bandeira da nova política, mas que nunca apresentam algo realmente diferente depois de assumirem o cargo. Outro exemplo é o do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), que foi afastado do posto por suspeitas de desvios em recursos para a saúde. Caso as acusações sejam confirmadas, ele será mais um governador fluminense envolvido em escândalo de corrupção, assim como Moreira Franco, Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho, Luiz Fernando Pezão e Sérgio Cabral.Fábio Trad destaca que esses exemplos de governantes que mudam a postura ou o discurso depois de eleitos devem servir de alerta para os brasileiros, sobretudo para o pleito municipal deste ano. “É importante que os eleitores passem a ter uma certa experiência para não serem induzidos a erro com tanta facilidade, procurando saber o comportamento pregresso do candidato, os seus valores e o que ele sempre defendeu na vida. A população tem a vantagem de poder corrigir, porque as eleições são periódicas”, diz.
Na avaliação do presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, a população brasileira já passa por um processo de depuração do sistema político, mas reforça que o eleitorado precisa ficar atento ao perfil dos candidatos para não continuar sendo vítima do falso discurso apresentado na propaganda eleitoral. “Percebo que a população está “criando anticorpos” contra o comportamento político. De todo modo, é fundamental que a sociedade entenda que precisa de representantes sérios, com passado limpo, que prezem pela cidadania e que apresentem propostas concretas para a realidade municipal.”
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Para alguns analistas, as eleições deste ano podem ser um espelho de 2018: vence o candidato que promete mudanças, mas assume o eleito que recorre às velhas práticas. “Quem entra, vai precisar fazer uma coligação para passar as pautas que necessita. O que chamam de velha política, na verdade, é política. É negociar, é ter diálogo. O problema é a forma como é feita. O pessoal da nova política conseguiu acabar com o termo. Tudo virou corrupção. Chamam de velha política quando, na verdade, é a política sendo ela mesma”, analisa o cientista político, Ivan Ervolino.Criador da startup de inteligência política Sigalei, Ervolino reforça que, nos municípios, o discurso da nova política estará em alta, mas que as falas dificilmente serão colocadas em prática. “Esse termo “nova política” cola bem. Será usada novamente como já foi em outras eleições antes de Bolsonaro. É um problema tanto municipal, quanto federal. É difícil não compor com uma base já estabelecida da política brasileira. Por isso que, na prática, essa narrativa desmorona. Ou o eleito se submete a algum grupo político já existente com algum tipo de negociação, ou fica paralisado. É o que estamos vendo com Bolsonaro, fazendo o jogo da composição política”, observa.
Encontro irrita apoiadores
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se reuniu, no sábado, com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, o presidente do Senado Federal, Davi Alcolumbre (Dem-AP), e o indicado a substituir Celso de Mello na suprema corte, Kassio Marques. O encontro, que não estava na agenda oficial das autoridades, ocorreu na casa de Toffoli, em Brasília. O encontro indignou apoiadores de Bolsonaro. Parte do grupo tem protestado nas redes contra a indicação de Kassio ao STF. No Twitter, a hashtag #BolsonaroTraidor ganhou corpo após a reunião.
Por volta das 12h40 de ontem, o termo era o terceiro colocado na lista de assuntos mais comentados pelos usuários brasileiros da rede. Em Minas Gerais, a hashtag ocupava a liderança. Influenciadores ligados à direita questionam a indicação de Kássio, que tem bom trânsito com políticos do Centrão, grupo formado por deputados e senadores que monopolizam as discussões no Congresso. O Centrão se aproximou de Bolsonaro recentemente. Para parte dos simpatizantes bolsonaristas, o perfil de Kassio não é tão conservador quanto o esperado.
Em diversas ocasiões, o presidente manifestou a intenção de indicar, ao STF, um ministro “terrivelmente evangélico”. Na última quinta-feira), ele reiterou o desejo, mas prometeu escolher um nome do tipo na próxima oportunidade, em 2021. O próximo a sair é Marco Aurélio Mello, que completará 75 anos – idade máxima para o cargo – em julho do ano que vem.
“O primeiro pré-requisito é ser evangélico. Depois, vai ter que tomar Tubaína comigo. Meu compromisso é com o evangélico. Tenho um tremendo respeito, pois são 30% de evangélicos no país. Quando, no passado, alguém falava sobre a presença de mulher e negro no STF, ninguém falava nada. Mas não é só porque é evangélico. Ele tem de ter conhecimento de causa também, transitar em Brasília, conhecer gente do Supremo, do Parlamento”, garantiu, durante sua live semanal.
No Twitter, circula um vídeo em que Bolsonaro promete “combater o establishment”. As imagens, contudo, são seguidas por trechos de reportagens que listam diversas indicações de políticos do Centrão a ministérios e cargos governamentais. A hastag tem sido impulsionada pelo movimento Vem pra Rua, que apoiou o ex-capitão na eleição de 2018. No sábado, Bolsonaro chegou a ser chamado de “petista”.
Histórico A indicação de Kassio ao STF foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) na quinta. A oficialização dele no posto, contudo, depende da aprovação do Senado Federal. Para isso, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e o plenário da Casa precisam dar aval oficial ao nome. Atualmente, o magistrado é desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), na capital federal. (Guilherme Peixoto)