Jornal Estado de Minas

O que dizia a polêmica proposta sobre Unidades Básicas de Saúde, que acabou revogada por Bolsonaro

Um decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro na segunda-feira (26/10) deixou em polvorosa o setor de saúde pública primária e despertou temores quanto à possibilidade privatização de serviços das Unidades Básicas de Saúde (UBS). Na tarde desta quarta-feira (28), após repercussão negativa, Bolsonaro anunciou a revogação da medida.





 

O decreto, publicado na terça-feira no Diário Oficial da União, dizia que "fica qualificada, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), a política de fomento ao setor de atenção primária à saúde, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, Distrito Federal e municípios".

 

As UBS são a porta de entrada do SUS (Sistema Único de Saúde), cuja gratuidade à população é prevista no artigo 196 da Constituição Federal, que diz que "a saúde é direito de todos e dever do Estado".

 

O decreto do governo foi assinado por Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, sem haver nenhuma menção ao Ministério da Saúde ou ao papel dos municípios, que gerem as UBS.

 

Nesta quarta-feira, para conter as reações negativas ao texto, a Secretaria-Geral da Presidência da República chegou a afirmar que a medida ainda depende de "estudos técnicos" que "podem oferecer opções variadas de tratamento da questão".





 

E a secretária especial de PPI do governo, Martha Seiller, afirmou à CNN Brasil que as parcerias eventualmente derivadas do decreto manteriam "esse sistema público e gratuito para 100% da população. (...) O que tem é uma vontade muito grande de usar as melhores práticas de atração de investimentos privados para prestar serviços melhores".

 

Por volta das 17h40 desta quarta. o presidente anunciou, por meio das redes sociais, que o decreto havia sido revogado. Bolsonaro argumentou que em nenhum momento cogitou privatizar o SUS. "O espírito do Decreto 10.530, já revogado, visava o término dessas obras (em unidades de saúde), bem como permitir aos usuários buscar a rede privada com despesas pagas pela União", escreveu.

 

"Em havendo entendimento futuro dos benefícios propostos pelo Decreto o mesmo poderá ser reeditado", acrescentou Bolsonaro.

'Arbitrariedade'

Decreto sobre as Unidades Básicas de Saúde foi assinado por Bolsonaro e pelo ministro Paulo Guedes (foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)

 

O decreto, considerado de teor vago, despertou duras críticas.





 

O presidente do Conselho Nacional de Saúde (ligado ao Ministério da Saúde), Fernando Pigatto, afirmou em vídeo que se trata de uma "arbitrariedade com a intenção de privatizar as unidades básicas de saúde".

 

Na Câmara dos Deputados, ao menos cinco projetos de Decreto Legislativo chegaram a ser apresentados para suspender os efeitos do texto assinado pelo presidente. Um deles foi apresentado pela deputada Maria do Rosário (PT-RS), que argumentou que "a gestão privada na saúde transforma o que é um direito em um privilégio para poucos, aqueles que podem pagar".

 

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), que reúne as secretarias estaduais, debateu o tema em assembleia nesta quarta. O presidente do órgão, Carlos Eduardo Lula, que é secretário de Saúde do Maranhão, afirmou pelo Twitter que "não permitiremos nenhum retrocesso na saúde".





 

Em nota enviada à BBC News Brasil, o Conass afirmou que o decreto deixava "sérias dúvidas quanto a seus reais propósitos. Preparado sem debate, o texto mistura aspectos distintos, como construção, modernização e operação das UBS. Por força de lei, decisões relativas à gestão do SUS não são tomadas unilateralmente. Elas devem ser fruto de consenso entre os níveis federal, estadual e municipal, sob pena de absoluta nulidade. (...) O decreto apresentado não trata de um modelo de governança, mas é uma imposição de um modelo de negócio".

Parcerias público-privadas já existem na saúde

Por si só, o texto do decreto não permite concluir que haveria a privatização da atenção primária pública, mas, por ser tão vago, deixa margens para brechas - muitas das quais podem não necessariamente resultar na melhora do serviço prestado ao público. A avaliação é de Ana Maria Malik, coordenadora do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão da Saúde da FGV-SP.

 

"O mais preocupante é que a Saúde não foi ouvida até o momento", afirma Malik à BBC News Brasil.

Vale lembrar que o uso de parcerias público-privadas já é feito na saúde pública brasileira. O exemplo principal é o do Hospital do Subúrbio, em Salvador, considerado o primeiro a testar o modelo no país - e sob um governo petista, o de Jaques Wagner, em 2010.





 

A gestão do hospital estadual ficou sob concessão de um consórcio privado por meio de um leilão realizado na BM&F Bovespa. "O Estado construiu a infraestrutura física e o consórcio aparelhou, equipou, mobiliou e administra o hospital", informa o governo baiano.

 

O modelo baiano é considerado bem-sucedido e recebeu prêmios internacionais, mas Ana Maria Malik lembra que foram necessários termos aditivos (ou seja, mais gastos do Estado) para cobrir custos que não estavam inicialmente previstos em contrato.

 

O próprio Conass destaca, em seu site, que "esse tipo de parceria (público-privada) tem crescido nos últimos anos e está concentrado em áreas cujo financiamento não pode ser integralmente custeado pelo Estado, seja pela complexidade crescente, seja pelo alto investimento de capital financeiro".





 

No entanto, os exemplos existentes até agora se concentram em hospitais, e não em unidades básicas de saúde, como previa o decreto presidencial desta semana.

'Distorção da agenda'

Um grande desafio ao conceder a administração da saúde à iniciativa privada, afirma Malik, é elaborar contratos que sejam cuidadosos em proteger o interesse do cidadão usuário do serviço, com definições claras de atribuições dos entes privados e supervisão atenta - para garantir não só a gratuidade do serviço, mas "o tipo de cuidado que o usuário vai receber e do que ele será privado de receber".

 

"Não pode ser só para se livrar (da gestão das unidades de saúde) ou para reduzir custos. Não se trata de gastar menos, porque a gente já gasta menos do que deveria na saúde. É tentar gastar melhor", diz à BBC News Brasil.

 

Um estudo de outubro de 2019 do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) estima que os gastos com saúde em 2060 precisarão chegar a 12,8% do PIB (Produto Interno Bruto, ou as riquezas produzidas pelo país), contra 9,1% que foram em 2015, segundo dados do IBGE.





 

Na opinião de Ana Maria Malik, da FGV-SP, para além do aumento do financiamento, uma questão primordial da saúde básica continua sendo uma série de gargalos que se acumulam.

 

"Não se trata de ter ou não uma PPP, mas sim de resolver os gargalos - de acesso (ao sistema de saúde), de ênfase na saúde (preventiva) e não só na doença, na oferta de assistência de boa qualidade, na rede de suporte ao paciente. (...) Se isso vai melhorar ou piorar com uma PPP, vai depender da gestão."

 

Um grupo de pesquisadoras da Fiocruz argumenta, em artigo, que as parcerias público privadas "deverão desempenhar um papel cada vez mais relevante, despontando como uma importante alternativa" em projetos públicos.

 

No entanto, opinam as quatro autoras, "especialmente para a saúde pública, as PPPs nem sempre serão uma boa alternativa, uma vez que pode haver distorção da agenda que define as necessidades de saúde, favorecendo os interesses das empresas".





 

Elas afirmam que "os órgãos públicos podem se beneficiar da colaboração com o setor privado em áreas em que há falta de especialização, tais como desenvolvimento de pesquisas e tecnologias. Mesmo nesses casos, os papéis de cada instituição devem ser bem definidos, para que não haja conflito de interesses.

 

Isso pode ser um desafio quando se trata da formulação de políticas públicas e regulatórias. (...). Envolver-se com o setor privado, sem comprometer a integridade das ações governamentais, exige ampla discussão por parte dos atores da saúde pública, por motivos claros de conflito das visões e escopos entre corporações e saúde pública."


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