Afinal de contas, Capitu traiu Bentinho? A dúvida provocada por Machado de Assis em 1899, quando foi lançado Dom Casmurro, até hoje desperta debates e teses literárias, com interpretações para todos os gostos. Um dos admiradores do romance é o ministro aposentado Celso de Mello, que deixou o Supremo Tribunal Federal (STF) em outubro, na véspera de completar 75 anos.
A obra fazia parte da biblioteca do antigo decano, formada por cerca de 12 mil livros que dominavam as paredes do seu gabinete na cobertura de um edifício anexo à sede da Corte. O acervo - que reúne revistas, livros jurídicos e a memória de 31 anos de atuação no tribunal - acaba de ganhar uma nova casa: Rua 15 de Novembro, 609, Tatuí (SP), endereço do escritório de dois amigos de Celso, os advogados criminalistas José Rubens do Amaral Lincoln e seu filho, Cícero do Amaral Lincoln.
Ao todo, 164 caixas foram transportadas de caminhão de Brasília para a cidade natal do ministro - o exemplar com a história de Capitu, no entanto, não foi para lá: ficou com Celso, em São Paulo, onde o ministro cumpre a quarentena em tempos de pandemia. Da biblioteca do STF, que fundamentou votos históricos em longas noites - e madrugadas - de trabalho, o magistrado guardou para si poucos livros, de alguns de seus autores favoritos: T.S. Eliot, Ezra Pound, Eça de Queirós, Samuel Johnson, Mário de Andrade, José Lins do Rego - e Machado.
Durante uma visita a Tatuí, nas férias do STF, Celso até participou, em um momento descontraído com amigos, de uma espécie de "julgamento" em torno da mulher de Bentinho. "Por incrível que pareça, as opiniões divergiam (sobre a traição da personagem), nunca se chegava a um ponto comum, mas essa é a intenção do autor. Continuamos ainda preocupados, em pleno século XXI, com a culpabilidade ou inocência de Capitu. Mais importante, porém, do que tentar definir a prática do adultério por Capitu é destacar, como observa Bruna Kalil Othero (escritora e pesquisadora), as construções estéticas brilhantes de Machado de Assis!", escreveu Celso de Mello ao Estadão, pedindo que as respostas fossem publicadas na íntegra.
"Helen Caldwell, tradutora de Machado de Assis para a língua inglesa, sugere a absolvição de Capitu, concluindo - tal como eu penso - ‘que o romance é escrito de tal forma a deixar a questão da culpa ou da inocência da heroína para decisão do leitor!’", acrescentou.
Memória
Dois meses depois da aposentadoria, a memória de Celso de Mello - definido como uma "bússola" pelos ex-colegas das sessões plenárias - permanece viva na Suprema Corte. O antigo decano doou ao tribunal a segunda edição de um livro de sua autoria, chamado Constituição Federal Anotada. O acervo da Corte também ganhou o mobiliário (mesa e cadeira) usado pelo ministro nas intermináveis jornadas de trabalho, embaladas ao som de música clássica em alto e bom som. Já a doação das 164 caixas de livros da sua biblioteca para Tatuí movimentou a pacata cidade do interior paulista de 120 mil habitantes. "Uma vida inteira está em cima deste caminhão", resumiu uma moradora ao ver a carga no meio da rua, conforme relato do jornal Integração, editado por José Reiner Fernandes, outro amigo do ex-ministro.
Segundo Cícero, o novo dono da biblioteca, a doação foi promessa de alguns anos atrás. Para acomodá-la no escritório, mais estantes foram providenciadas, mas as caixas continuam espalhadas por todos os cantos. "O conteúdo jurídico das obras mostra como se manter a democracia do País, nos orienta contra o autoritarismo e nos dá consciência de nos mantermos firmes", afirmou o criminalista. "Eu considero isso um patrimônio de Tatuí", disse o pai, Doutor Lincoln, que pagou do próprio bolso o transporte dos livros. Amigo de Celso há mais de meio século, o advogado já manifestou o desejo de transformar o local em uma espécie de memorial do ministro. "A ideia seria essa biblioteca ser preservada o máximo possível, em respeito a ele", afirmou.
No momento, Celso de Mello lê Cidade de Deus (De Civitate Dei), de Santo Agostinho, uma obra, que nas suas palavras, "exige meditação e suscita muitas reflexões". "É preciso ter fé no fato de que os livros representam um poderoso instrumento de resistência, sempre legítima, contra ensaios autoritários de poder, e de cuja leitura resultará a luz que iluminará os passos de nossa democracia e dissipará as práticas sombrias que buscam destruí-la", afirma. "A construção da ordem democrática e a preservação das liberdades fundamentais, que não podem ser destruídas pela ação intolerante dos epígonos do poder e de seus acólitos, têm nos livros um meio essencial a essa defesa e de enriquecimento do espírito. Foi com esse objetivo que doei a um jovem (e promissor) advogado de minha terra quase todo o acervo que reuni ao longo de décadas." As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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