O Ibama e a Fundação Nacional do Índio (Funai) publicaram uma instrução normativa conjunta nesta quarta-feira, 24, que abre espaço para a produção agrícola no interior de terras indígenas, e não apenas pelos índios, mas também por meio de associações com outros produtores não indígenas. Pela nova regra, só fica proibido o arrendamento puro e simples, ou seja, o aluguel da terra indígena para os produtores de fora.
Com a medida, governo Jair Bolsonaro avança, aos poucos, em sua pauta de explorar o interior das terras indígenas, apesar de o tema ser de competência do Legislativo, por exigir regulamentações previstas na Constituição Federal.
Na tarde desta quarta-feira, 24, o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP) protocolou na Câmara um projeto de decreto legislativo, no qual pede que os efeitos da instrução normativa sejam sustados. "A Instrução Normativa Conjunta n.º 1, de 22 de fevereiro de 2021 ataca frontalmente e desrespeita o direito ao usufruto exclusivo dos povos indígenas relativamente às suas terras tradicionais", afirma o parlamentar, no documento.
A instrução prevê que o processo de licenciamento ambiental das produções poderá ser feito pelos "próprios indígenas usufrutuários por meio de associações, organizações de composição mista de indígenas e não indígenas, cooperativas ou diretamente via comunidade indígena".
Segundo os órgãos que assinam a instrução, há "necessidade de construção de um normativo específico para estabelecer um rito específico entre Ibama e Funai para o licenciamento ambiental das atividades desenvolvidas pelos próprios indígenas, de forma isolada ou associativa".
O regramento prevê que a Funai terá 30 dias para manifestar em relação à legitimidade do empreendedor para propor o licenciamento ambiental dentro da terra indígena, prazo prorrogável pelo Ibama por até mais dez dias. O Ibama, ao verificar se a atividade ou o empreendimento é potencialmente causador de degradação significativa ao meio ambiente, definirá quais estudos ambientais serão exigidos.
O secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cleber César Buzatto, critica a decisão. "Consideramos que a Instrução Normativa em questão é uma armadilha do governo Bolsonaro contra os povos indígenas do Brasil, por permitir a exploração das terras indígenas por parte de pessoas alheias às terras e aos povos, favorecendo o alastramento dos interesses do agronegócio no interior das terras indígenas e o consequente aprisionamento destas a um modelo exploratório insustentável ambiental e socialmente", disse à reportagem.
Buzatto, que é advogado, também vê inconstitucionalidade no ato. "Avaliamos como inconstitucional a Instrução Normativa Conjunta, uma vez que ela ataca frontalmente e desrespeita o direito ao usufruto exclusivo dos povos indígenas relativamente às suas terras tradicionais."
A proibição legal de se explorar terras indígenas demarcadas não tem impedido que produtores fechem acordos com aldeias espalhadas por todo o País, avançando com o plantio de grãos e criação de gado sobre essas terras. Em dezembro de 2018, o Estadão fez um levantamento sobre as terras indígenas que eram alvos desse tipo de atividade irregular.
Segundo dados fornecidos à época pela Funai, por meio da Lei de Acesso à Informação, havia ao menos 22 terras indígenas do País com trechos arrendados para produtores, o que continua a ser proibido, mesmo pela nova instrução.
As negociações clandestinas entre produtores e indígenas incluem desde o pagamento de mensalidades para os índios, até a divisão da produção colhida ou vendida. Nessas 22 terras, havia mais de 48 mil índios convivendo com a exploração ilegal do solo. A área total arrendada aos produtores externos chegava a 3,1 milhões de hectares, um território equivalente a mais de cinco vezes o tamanho do Distrito Federal.
É no Tocantins que se encontra o maior caso dessas irregularidades. Na Ilha do Bananal, maior ilha fluvial do planeta, formada pelos rios Araguaia e Tocantins, lideranças de quase 4 mil indígenas de diversas etnias recebem mesadas para abrir suas terras a criadores de gado de corte. As margens da ilha de 1,3 milhão de hectares são cobiçadas pela qualidade do pasto, por conta do fluxo dos rios.
A região Sul do País é a que mais concentra as explorações ilegais. Das 22 terras indígenas com atividades irregulares, sete ficam no Rio Grande do Sul e uma no Paraná.
Em fevereiro de 2019, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, fizeram uma visita à Cooperativa Agropecuária dos Povos Indígenas Haliti-Paresis, Nambikwara e Manoki, no Mato Grosso. Salles, que usou cocar e apareceu em vídeo dançando com os índios, escreveu, na ocasião, que os índios "plantam e produzem com muita competência, demonstrando que podem se integrar ao agro sem perder suas origens e tradições".
Avaliação positiva
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que integra mais de 280 deputados, disse à reportagem que é favorável à instrução normativa. "A medida trata de licenciamento ambiental para atividades realizadas em terra já demarcadas e homologadas em busca da autossuficiência dos povos, com sustentabilidade e garantindo a dignidade da comunidade", declarou.
Segundo a FPA, "a norma vem para regulamentar uma prática já adotada, como exemplo de alguns casos realizados no Mato Grosso, com anuência do Ministério Público Federal".
A simplificação do processo de licenciamento ambiental, segundo a Frente, é "pauta prioritária" e a instrução "vai ao encontro das necessidades já identificadas no setor agropecuário brasileiro, bem como para as terras indígenas, de forma que garanta segurança jurídica ao processo de licenciamento".
A produção agrícola indígena, declarou a bancada ruralista, tem o "objetivo de garantir acesso à renda, tecnologia e assistência técnica aos produtores indígenas no país e a possibilidade desses mesmos indígenas explorarem economicamente suas terras com atividades como agricultura e pecuária".
Questionada sobre a legalidade de seu ato com o Ibama, a Funai declarou que "não coaduna com qualquer conduta ilícita".