Laudos feitos por peritos do Ministério Público (MP) da Bahia e do Rio questionam a versão de que o miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega, o capitão Adriano, foi morto após reagir à bala à prisão, no interior baiano, em fevereiro de 2020.
Segundo essa versão oficial, o ex-PM, que era suspeito de ligações com um "consórcio" de matadores de aluguel e uma milícia na zona oeste carioca, teria respondido com sete tiros à ordem para se render. Foi, então, abatido por dois disparos por policiais militares. Reportagem do Fantástico, da Rede Globo, exibida neste domingo, 28, põe em dúvida essas afirmações.
Baseado em duas necropsias, o resultado da análise diverge do inquérito da Polícia Civil da Bahia. A investigação concluiu que o acusado de chefiar o Escritório do Crime e também citado no caso das "rachadinhas" no gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) morreu em confronto.
A ex-mulher e a mãe de Adriano eram assessoras presumivelmente fantasmas do parlamentar, no suposto esquema para desviar salários para o próprio deputado, quando era deputado estadual. Por ele, Flávio foi denunciado à Justiça, com outras 16 pessoas, por peculato (desvio de dinheiro por servidor), organização criminosa, lavagem de dinheiro e apropriação indébita.
O inquérito policial concluído em agosto do ano passado também descartou qualquer hipótese de que Adriano tenha sido torturado antes de ser executado. Segundo a polícia baiana, um corte na cabeça usado para questionar se ele teria sofrido coronhadas de armas dos policiais seria, na verdade, um ferimento produzido após a queda dele já baleado. O ex-PM teria batido em algum objeto - que pode ser uma quina, por exemplo.
Em depoimento ao Fantástico, o perito e professor titular de Medicina Legal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Nelson Massini, disse que em três aspectos a versão dos policiais não bate com a da perícia.
"Há um disparo que entra tangencialmente pela lateral do tórax do abdômen, segue o trajeto sai daqui e reentra no corpo e é um tiro que provavelmente a vítima já estava deitada. Isso tem que ser esclarecido. Esse tiro, deveria entrar e sair numa posição paralela ao solo", diz o perito Nelson Massini, destacando que o trajeto do projétil é incompatível com a posição declarada dos atiradores e da vítima.
O outro ponto diz respeito à ausência de vestígios de pólvora nas mãos de Adriano. Massini afirma que é muito pouco provável que ele tenha dado sete tiros e nada tenha sido encontrado. "Foi feito um exame não apropriado que é um exame químico para verificação do resíduo de pólvora e não se usa mais. Hoje o exame é apropriado é uma microscopia de varredura. Isso fala a favor de que ele não atirou a princípio, mas é preciso justificar o porquê dessa negatividade", diz.
O perito trata ainda das lesões que o ex-policial tinha na região da cabeça. Massini diz que elas geraram reação vital, e teriam ocorrido enquanto o miliciano estava vivo, o que não foi explicado. "Em que momento isso foi feito? Por que, se você teve a oportunidade de se aproximar dele e dar essas pancadas na cabeça, por que não prender?".
A Secretaria de Segurança da Bahia disse ao Fantástico em nota que não recebeu os novos questionamentos feitos pelo Ministério Público da Bahia. Já o MP afirmou que já enviou as perguntas sobre o laudo de necropsia. A Secretaria não comentou a ação dos policiais militares que resultou na morte de Adriano da Nóbrega.
Condecorado por Flávio Bolsonaro
Quando estava preso, em 2005, Adriano recebeu, por iniciativa de Flávio Bolsonaro, a Medalha Tiradentes, mais alta condecoração da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Na semana passada o Ministério Público do Rio de Janeiro deflagrou a Operação Gárgula para desmantelar uma suposta organização criminosa responsável pela movimentação financeira e lavagem de dinheiro de Adriano.
O objetivo era cumprir mandados de prisão preventiva contra a viúva de Adriano, Julia Emilia Mello Lotufo, o soldado da PM Rodrigo Bitencourt Fernandes Pereira do Rego e Daniel Haddad Bittencourt Fernandes Leal.
A Justiça do Rio também determinou o sequestro do Haras Fazenda Modelo e de automóveis, além do bloqueio de R$ 8,4 milhões, correspondentes ao valor constatado em movimentações dos investigados. De acordo com o Fantástico, a quadrilha do miliciano tinha lucro de cerca de R$ 2 milhões por mês.
Ao todo, nove pessoas foram denunciadas à 1ª Vara Criminal Especializada da Capital por crimes de associação criminosa, agiotagem e lavagem de dinheiro,. Os acusados são integrantes da rede de apoio de Capitão Adriano, responsáveis por lavar o dinheiro obtido pelo miliciano.
Apontada como chefe da organização que geria o dinheiro de Adriano, a mulher dele, Julia, segue foragida. "A gente não tem informação de onde ela está, nem se está morta ou viva", disse ao programa o promotor Bruno Gangoni, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, o Gaeco.
Flávio Bolsonaro nega que houvesse "rachadinha" em seu gabinete. A condecoração a Adriano teria sido concedida em homenagem à sua atuação como policial, em uma época em que supostas ligações do suspeito com atividades criminosas não eram conhecidas.