Ao contrário do que sustenta o presidente Jair Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal "cumpriu seu papel" ao determinar a abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a atuação do governo federal na pandemia. A avaliação é da cientista política e professora doutora da Universidade de São Paulo Maria Tereza Sadek. Estudiosa do sistema de justiça, ela defendeu o papel da Corte na atual crise de enfrentamento da covid-19. Maria Tereza lembra que o
STF só age se for provocado, o que tem ocorrido com frequência por causa da atuação dissonante entre os Poderes, a União, Estados e municípios. "O Judiciário tem sido provocado porque o governo não tem respeitado as medidas demonstradas pela ciência." Leia os principais trechos da entrevista ao Estadão a seguir:
Como a sra. avalia a atuação do Judiciário na manutenção das garantias constitucionais e democráticas no Brasil?
Vivemos um clima de muita incerteza. Veja a liminar do ministro Kassio Nunes Marques sobre a realização de missas e cultos presenciais. Sou capaz de apostar que, se não estivesse em jogo a aposentadoria do ministro Marco Aurélio (Mello), a discussão não teria tomado esse rumo. Muitas vezes é complicado entender a pauta e os argumentos se ficamos presos na letra da lei. É preciso olhar o contexto.
Por que teria sido diferente?
Marco Aurélio vai se aposentar e há vários candidatos ao posto. O presidente Bolsonaro já falou que queria um ministro "terrivelmente evangélico", e os discursos no julgamento (de André Mendonça, ministro da Advocacia-Geral da União, e Augusto Aras, procurador-geral da República) foram assim. Tinha um recado ali.
O Judiciário tem contribuído para esse clima de incerteza?
O Judiciário é mais um ator nesse grau de instabilidade e incerteza que vivemos. Deveria ser um fator de previsão, pois trabalha com as leis e a Constituição. Quando isso não ocorre, aumenta a instabilidade no País. Entretanto, hoje, todos os Poderes estão contribuindo para esse cenário.
A insegurança se aplica só ao STF ou a todo o Judiciário?
É do primeiro ao último grau. A insegurança jurídica é a ideia de uma roleta. Ou seja, a decisão sobre uma mesma questão pode variar de juiz para juiz. E isso cria áreas de incerteza.
Como resolver essa questão?
O Judiciário tem mecanismos para tomar decisões mais previsíveis. Por exemplo, a utilização da súmula vinculante (interpretação pacífica ou majoritária adotada por um tribunal a respeito de um tema específico), da reforma de 2004. A pergunta é: por que são tão poucas as súmulas vinculantes?
Luis Roberto Barroso invadiu as atribuições do Senado ao ordenar a abertura da CPI da Covid?
O ministro cumpriu seu papel, assim como o STF, que só age se provocado. Todos os requisitos constitucionais foram cumpridos para a instalação da CPI. Não houve "ativismo jurídico".
Decisões monocráticas recentes causaram grande repercussão. As liminares não deveriam ser exceção?
Sim. Quando o atual presidente assumiu (Luiz Fux), disse que mudaria essa estrutura, mas não conseguiu ainda. Cada um age voltado para os interesses aos quais está sujeito. Quando um ministro ou juiz não quer que determinada questão seja discutida, ele engaveta. A questão da colegialidade vem sendo desrespeitada há muito tempo. E as reviravoltas (decisões monocráticas revistas pelo plenário) aumentam a descrença na Justiça.
O STF tem cumprido adequadamente seu papel na pandemia?
Sobre o direito à saúde tem respondido, assim como na questão federativa. Mas vivemos uma situação tão pouco previsível que alguns obedecem e outros se acham no direito de não obedecer e até contestar. Todas as deficiências por parte do Executivo acabaram no Judiciário.
Se o governo federal tivesse dado prioridade a minimizar os efeitos da pandemia, certamente não teríamos tantos processos. O Judiciário só age por provocação. E tem sido provocado porque o governo não tem respeitado as medidas demonstradas pela ciência.
Há "ativismo jurídico" do STF?
Toda vez que se fala em ativismo é como se a instituição estivesse extrapolando os limites. Não é o caso nessa pandemia. O Supremo tem sido muito provocado. Quanto maior o grau de negacionismo, maior a probabilidade de se entrar com questões a serem resolvidas no Judiciário. E ele tem de responder.
No dia 14, o STF deve decidir sobre a anulação das condenações da 13ª Vara de Curitiba contra Lula na Lava Jato. Qual sua avaliação?
Não arrisco fazer previsões. Os ministros estão divididos, e a decisão provocará consequências, algumas desconhecidas, já que poderão afetar outros processos. Mas a Lava Jato, desde sua origem, provocou divisões entre os ministros. Não há como ignorar que toda a Lava Jato provocou impactos, bastaria observar as profundas alterações na arena politico-partidária decorrentes da última decisão da 2ª turma do STF (que considerou o ex-juiz Sérgio Moro suspeito no caso do triplex de Lula).
Era clara a divisão do tribunal antes da Lava Jato?
Desde sua origem, o STF nunca foi um colegiado marcado pela unanimidade. O que caracteriza os últimos tempos é o grau e a forma em que são explicitadas as divisões. Foram as questões criminais que provocaram esse grau de cisão. Ter divergência é normal em um colegiado, numa democracia. O que se supõe é que os embates ocorram obedecendo parâmetros de civilidade.
Quando o STF começou a ter uma atuação mais política?
A criação da TV Justiça foi uma variável importante, mas não a única. A Constituição de 1988 responde em grande parte por isso. A TV aumentou o grau de transparência, o que é positivo, e os ministros tornaram-se mais conhecidos da população. Por outro lado, a TV Justiça alimentou um grau de exposição e competição entre eles, e, segundo pesquisas, os votos ficaram mais longos.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.