A participação do general Eduardo Pazuello, ex-ministro na Saúde, em um ato político de apoio ao presidente Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro "colocou em xeque a disciplina do Exército", afirma a ministra do Superior Tribunal Militar (STM) Maria Elizabeth Rocha.
No domingo, Pazuello subiu em um caminhão de som ao lado do presidente, agradeceu o apoio do público e elogiou Bolsonaro — ambos estavam sem máscara, embora uma lei estadual estabeleça uso obrigatório da proteção no Rio de Janeiro.
Para a ministra, a atitude significou "várias transgressões" ao Regulamento Disciplinar do Exército, que proíbe o militar da ativa de se manifestar publicamente a respeito de assuntos de natureza político-partidária sem que esteja autorizado previamente.Segundo Elizabeth Rocha, cabe ao comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira, definir se Pazuello deve receber uma punição, que pode variar de advertência até uma prisão disciplinar, segundo as normas militares. Ela lembra, porém, que o presidente Jair Bolsonaro, como chefe supremo das Forças Armadas, tem o poder de reverter decisões de Nogueira.
"Seria muitíssimo complicado. Por isso, talvez uma passagem (de Pazuello) pra reserva seja o melhor caminho. Porque aí o general Pazuello, como todo cidadão civil, vai poder manifestar livremente as suas convicções ideológicas", defende Rocha.
"Sem dúvida alguma ele colocou em xeque a disciplina do Exército, porque ele se posicionou publicamente, sem estar autorizado, em assuntos de natureza político-partidária, quando ele subiu naquele carro e defendeu o governo", acrescenta ela.
Por outro lado, a ministra diz que a atitude do ex-ministro não chega a configurar um crime militar, o que manterá seu caso longe da alçada do STM. Já eventuais crimes cometidos por Pazuello enquanto comandou o Ministério da Saúde durante a pandemia de coronavírus estão sendo apurados pelo Ministério Público Federal e a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid. O general, que depôs à CPI na semana passada, deve ser novamente convocado após sua presença no ato político que provocou aglomeração no domingo.
Crítica da "politização das Forças Armadas", Elizabeth Rocha considera que Pazuello já devia ter saído da ativa desde que se tornou ministro. Ela ressalta que a proibição para a atuação política não é apenas uma norma disciplinar, mas está prevista na própria Constituição Federal.
"Um militar não pode, enquanto estiver na ativa, se filiar a partido político. E por que isso? Porque os militares detêm as armas da nação. Eles são investidos do monopólio da força legítima do Estado. O Estado os arma pra defender a pátria e a sociedade. Então, realmente, não é possível que discursos ideológicos, que discursos político-partidários, adentrem os quartéis, porque isso pode comprometer toda a cadeia de comando", explica Rocha.
"É evidente que (os militares) estão subordinados ao Presidente da República como chefe supremo. Mas ele é o chefe supremo das Forças Armadas sob o ponto de vista funcional, operacional, de defesa da pátria, e só. A questão política tem que ficar apartada desse discurso", diz ainda.
Apesar da grande repercussão em torno da participação de Pazuello no ato político, o comando do Exército e o Ministério da Defesa não se manifestaram publicamente sobre o caso ao longo de toda segunda-feira.
Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Bolsonaro telefonou para o ministro da Defesa, general Braga Netto, proibindo a divulgação de qualquer nota ou manifestação pública a respeito do caso.
Ainda de acordo com a reportagem, o Exército abriu um processo para apurar se houve transgressão disciplinar e Pazuello terá até quatro dias para manifestar sua defesa.
Ameaças à democracia?
Bolsonaro promoveu uma forte militarização da administração federal no seu governo, em patamares inéditos para o atual regime democrático. Um relatório do Tribunal de Contas da União do ano passado identificou mais de seis mil militares ocupando cargos civis, sendo cerca de metade deles composta por oficiais da ativa.
Generais ocupam alguns dos principais ministérios, como a Casa Civil (Luiz Eduardo Ramos), Defesa (Braga Netto) e o Gabinete de Segurança Institucional (Augusto Heleno).
Em momentos desafiadores para seu governo, com queda da sua popularidade, com frequência Bolsonaro apela para o apoio dos militares, falando em "meu Exército" ou "minhas Forças Armadas".
Para a ministra Elizabeth Rocha, esse cenário "não é saudável para a democracia".
"O poder civil deve prevalecer sobre o poder militar. Todos os regimes democráticos apoiam isso, e a criação do Ministério da Defesa (como um órgão civil acima das três forças) foi uma sinalização do presidente Fernando Henrique Cardoso nesse sentido", lembra ela.
"Mas isso não significa que o poder civil possa chamar os militares e se valer da atuação da força militar toda vez que ele se sinta fragilizado ou comprometido. A destinação das Forças Armadas não é defender os regimes políticos, é defender o Estado nacional", reforça.
Apesar dessa preocupação, a ministra diz que não considera que a democracia brasileira esteja hoje "ameaçada" pela politização das Forças Armadas.
Enquanto alguns analistas políticos temem o uso dos militares por Bolsonaro em caso, por exemplo, de o presidente contestar uma eventual derrota na sua tentativa de reeleição em 2022, Elizabeth Rocha diz que o contexto mundial atual é muito diferente do de 1964, quando ocorreu um golpe militar com apoio do governo dos Estados Unidos.
"Eu acho que a nossa democracia, apesar de todos os percalços, está consolidada. E também (não vejo ameaça) porque as contingências geopolíticas mundiais são completamente diferentes de 64, quando havia uma Guerra Fria e o mundo estava dividido em dois blocos de influência", afirma.
"Eu não acredito que o Joe Biden (presidente dos EUA) tenha interesse em reviver a operação Brother Sam (uso da Marinha americana para apoiar o golpe de 64). Então, esses riscos eu acho que realmente o Brasil não corre mais. Mas o fato é que essa promiscuidade do militar na política acaba por comprometer a independência, a imparcialidade e o profissionalismo na caserna", critica.
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O que é uma CPI?
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O que a CPI pode fazer?
- chamar testemunhas para oitivas, com o compromisso de dizer a verdade
- convocar suspeitos para prestar depoimentos (há direito ao silêncio)
- executar prisões em caso de flagrante
- solicitar documentos e informações a órgãos ligados à administração pública
- convocar autoridades, como ministros de Estado — ou secretários, no caso de CPIs estaduais — para depor
- ir a qualquer ponto do país — ou do estado, no caso de CPIs criadas por assembleias legislativas — para audiências e diligências
- quebrar sigilos fiscais, bancários e de dados se houver fundamentação
- solicitar a colaboração de servidores de outros poderes
- elaborar relatório final contendo conclusões obtidas pela investigação e recomendações para evitar novas ocorrências como a apurada
- pedir buscas e apreensões (exceto a domicílios)
- solicitar o indiciamento de envolvidos nos casos apurados
O que a CPI não pode fazer?
Embora tenham poderes de Justiça, as CPIs não podem:
- julgar ou punir investigados
- autorizar grampos telefônicos
- solicitar prisões preventivas ou outras medidas cautelares
- declarar a indisponibilidade de bens
- autorizar buscas e apreensões em domicílios
- impedir que advogados de depoentes compareçam às oitivas e acessem
- documentos relativos à CPI
- determinar a apreensão de passaportes
A história das CPIs no Brasil
CPIs famosas no Brasil
1992: CPMI do Esquema PC Farias - culminou no impeachment de Fernando Collor
1993: CPI dos Anões do Orçamento (Câmara) - apurou desvios do Orçamento da União
2000: CPIs do Futebol - (Senado e Câmara, separadamente) - relações entre CBF, clubes e patrocinadores
2001: CPI do Preço do Leite (Assembleia de MG e outros Legislativos estaduais, separadamente) - apurar os valores cobrados pelo produto e as diretrizes para a formulação dos valores
2005: CPMI dos Correios - investigar denúncias de corrupção na empresa estatal
2005: CPMI do Mensalão - apurar possíveis vantagens recebidas por parlamentares para votar a favor de projetos do governo
2006: CPI dos Bingos (Câmara) - apurar o uso de casas de jogo do bicho para crimes como lavagem de dinheiro
2006: CPI dos Sanguessugas (Câmara) - apurou possível desvio de verbas destinadas à Saúde
2015: CPI da Petrobras (Senado) - apurar possível corrupção na estatal de petróleo
2015: Nova CPI do Futebol (Senado) - Investigar a CBF e o comitê organizador da Copa do Mundo de 2014
2019: CPMI das Fake News - disseminação de notícias falsas na disputa eleitoral de 2018
2019: CPI de Brumadinho (Assembleia de MG) - apurar as responsabilidades pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão