Ao trazer à luz o assessoramento paralelo que apresentava a Jair Bolsonaro dados negacionistas da pandemia e contrários à compra de vacinas para o acelerar combate à COVID-19, a CPI da COVID quer avançar na direção de descobrir quem financiou e ajudou a difundir ideias e tratamentos ineficazes contra a doença — por meio do uso de hidroxicloroquina, cloroquina e ivermectina —, mas amplamente defendidos pelo presidente da República e outras pessoas ligadas ao governo. Para seguir o caminho do dinheiro, o G7 (grupo de senadores de oposição e independentes) ouvirá representantes de empresas ligadas à produção dos medicamentos defendidos por Bolsonaro.
Um dos convocados é Renato Spallicci, presidente da Apsen Farmacêutica, principal fabricante de hidroxicloroquina no Brasil, cujo requerimento para que compareça e deponha foi aprovado ontem. O senador Rogério Carvalho (PT-SE) afirma que a empresa aumentou de forma significativa o faturamento durante a pandemia.
Apurar o enriquecimento de empresas produtoras de outros medicamentos também estão na mira. Por isso, também foi aprovado ontem o requerimento para a convocação do empresário José Alves Filho, representante de um laboratório que fabrica ivermectina. Os senadores querem, ainda, entender a relação de associações que atuaram na promoção do chamado “tratamento precoce” como solução e cura da COVID-19, como é o caso do Médicos pela Vida.
Reunião no Planalto
Integrantes desse grupo se reuniram com Bolsonaro, no Palácio do Planalto, conforme registrado em vídeo e fotos do Flickr do Palácio do Planalto, de 8 de setembro do ano passado. Nele, discute-se o uso da cloroquina no combate à COVID-19, com a presença do deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), apontado como um dos cardeais do chamado “gabinete paralelo”. Nesta reunião, inclusive, o virologista Paolo Zanotto sugere a formação do grupo como se fosse um “shadow cabinet” (gabinete das sombras).
Na sessão desta quarta-feira (9/6) da CPI da Pandemia, marcada por várias discussões acaloradas, o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), que integra a tropa de defesa do governo na comissão, questionou as convocações, incomodado: “Vocês não querem ver corrupção? Tudo bem”, disse. Foi rebatido pelo vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP): “Não, aqui na CPI tem também do Bolsonaro. Estamos encontrando, estamos encontrando. Tem umas histórias aí de cloroquina que vão vir aqui à tona. Calma!”
O senador Humberto Costa (PT-PE) defendeu mirar em páginas nas redes sociais de grupos que têm “um movimento negacionista que promoveu a desinformação”, como afirmou, à saída da sessão de ontem. “O que ganharam com isso? De quem saiu e para quem foi esse dinheiro empenhado?”, questionou.
No depoimento que prestou nesta quarta-feira (9/6) à CPI, Elcio Franco, ex-secretario-executivo do Ministério da Saúde na gestão do general Eduardo Pazuello, negou saber da existência desse gabinete paraleo. “Eu não sei o que o gabinete, esse gabinete paralelo tratava. Isso não chegava ao ministério”. Elcio negou, ainda, que Pazuello tenha solicitado a “aquisição de cloroquina para o ano de 2020 para o combate à COVID-19”.
O que é uma CPI?
As comissões parlamentares de inquérito (CPIs) são instrumentos usados por integrantes do Poder Legislativo (vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores) para investigar fato determinado de grande relevância ligado à vida econômica, social ou legal do país, de um estado ou de um município. Embora tenham poderes de Justiça e uma série de prerrogativas, comitês do tipo não podem estabelecer condenações a pessoas.
Para ser instalado no Senado Federal, uma CPI precisa do aval de, ao menos, 27 senadores; um terço dos 81 parlamentares. Na Câmara dos Deputados, também é preciso aval de ao menos uma terceira parte dos componentes (171 deputados).
Há a possibilidade de criar comissões parlamentares mistas de inquérito (CPMIs), compostas por senadores e deputados. Nesses casos, é preciso obter assinaturas de um terço dos integrantes das duas casas legislativas que compõem o Congresso Nacional.
O que a CPI da COVID investiga?
Instalada pelo Senado Federal em 27 de abril de 2021, após determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), a CPI da COVID trabalha para apurar possíveis falhas e omissões na atuação do governo federal no combate à pandemia do novo coronavírus. O repasse de recursos a estados e municípios também foi incluído na CPI e está na mira dos parlamentares.
O presidente do colegiado é Omar Aziz (PSD-AM). O alagoano Renan Calheiros (MDB) é o relator. O prazo inicial de trabalho são 90 dias, podendo esse período ser prorrogado por mais 90 dias.
Saiba como funciona uma CPI
Após a coleta de assinaturas, o pedido de CPI é apresentado ao presidente da respectiva casa Legislativa. O grupo é oficialmente criado após a leitura em sessão plenária do requerimento que justifica a abertura de inquérito. Os integrantes da comissão são definidos levando em consideração a proporcionalidade partidária — as legendas ou blocos parlamentares com mais representantes arrebatam mais assentos. As lideranças de cada agremiação são responsáveis por indicar os componentes.
Na primeira reunião do colegiado, os componentes elegem presidente e vice. Cabe ao presidente a tarefa de escolher o relator da CPI. O ocupante do posto é responsável por conduzir as investigações e apresentar o cronograma de trabalho. Ele precisa escrever o relatório final do inquérito, contendo as conclusões obtidas ao longo dos trabalhos.
Em determinados casos, o texto pode ter recomendações para evitar que as ilicitudes apuradas não voltem a ocorrer, como projetos de lei. O documento deve ser encaminhado a órgãos como o Ministério Público e a Advocacia-Geral da União (AGE), na esfera federal.
Conforme as investigações avançam, o relator começa a aprimorar a linha de investigação a ser seguida. No Congresso, sub-relatores podem ser designados para agilizar o processo.
As CPIs precisam terminar em prazo pré-fixado, embora possam ser prorrogadas por mais um período, se houver aval de parte dos parlamentares
O que a CPI pode fazer?
- chamar testemunhas para oitivas, com o compromisso de dizer a verdade
- convocar suspeitos para prestar depoimentos (há direito ao silêncio)
- executar prisões em caso de flagrante
- solicitar documentos e informações a órgãos ligados à administração pública
- convocar autoridades, como ministros de Estado — ou secretários, no caso de CPIs estaduais — para depor
- ir a qualquer ponto do país — ou do estado, no caso de CPIs criadas por assembleias legislativas — para audiências e diligências
- quebrar sigilos fiscais, bancários e de dados se houver fundamentação
- solicitar a colaboração de servidores de outros poderes
- elaborar relatório final contendo conclusões obtidas pela investigação e recomendações para evitar novas ocorrências como a apurada
- pedir buscas e apreensões (exceto a domicílios)
- solicitar o indiciamento de envolvidos nos casos apurados
O que a CPI não pode fazer?
Embora tenham poderes de Justiça, as CPIs não podem:
- julgar ou punir investigados
- autorizar grampos telefônicos
- solicitar prisões preventivas ou outras medidas cautelares
- declarar a indisponibilidade de bens
- autorizar buscas e apreensões em domicílios
- impedir que advogados de depoentes compareçam às oitivas e acessem
- documentos relativos à CPI
- determinar a apreensão de passaportes
A história das CPIs no Brasil
A primeira Constituição Federal a prever a possibilidade de CPI foi editada em 1934, mas dava tal prerrogativa apenas à Câmara dos Deputados. Treze anos depois, o Senado também passou a poder instaurar investigações. Em 1967, as CPMIs passaram a ser previstas.
Segundo a Câmara dos Deputados, a primeira CPI instalada pelo Legislativo federal brasileiro começou a funcionar em 1935, para investigar as condições de vida dos trabalhadores do campo e das cidades. No Senado, comitê similar foi criado em 1952, quando a preocupação era a situação da indústria de comércio e cimento.
As CPIs ganharam estofo e passaram a ser recorrentes a partir de 1988, quando nova Constituição foi redigida. O texto máximo da nação passou a atribuir poderes de Justiça a grupos investigativos formados por parlamentares.
CPIs famosas no Brasil
1975: CPI do Mobral (Senado) - investigar a atuação do sistema de alfabetização adotado pelo governo militar
1992: CPMI do Esquema PC Farias - culminou no impeachment de Fernando Collor
1992: CPMI do Esquema PC Farias - culminou no impeachment de Fernando Collor
1993: CPI dos Anões do Orçamento (Câmara) - apurou desvios do Orçamento da União
2000: CPIs do Futebol - (Senado e Câmara, separadamente) - relações entre CBF, clubes e patrocinadores
2001: CPI do Preço do Leite (Assembleia de MG e outros Legislativos estaduais, separadamente) - apurar os valores cobrados pelo produto e as diretrizes para a formulação dos valores
2005: CPMI dos Correios - investigar denúncias de corrupção na empresa estatal
2005: CPMI do Mensalão - apurar possíveis vantagens recebidas por parlamentares para votar a favor de projetos do governo
2006: CPI dos Bingos (Câmara) - apurar o uso de casas de jogo do bicho para crimes como lavagem de dinheiro
2006: CPI dos Sanguessugas (Câmara) - apurou possível desvio de verbas destinadas à Saúde
2015: CPI da Petrobras (Senado) - apurar possível corrupção na estatal de petróleo
2015: Nova CPI do Futebol (Senado) - Investigar a CBF e o comitê organizador da Copa do Mundo de 2014
2019: CPMI das Fake News - disseminação de notícias falsas na disputa eleitoral de 2018
2019: CPI de Brumadinho (Assembleia de MG) - apurar as responsabilidades pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão