"A CPI não vai trazer efeito algum", disse no início da semana o deputado Arthur Lira (PP-AL), eleito em fevereiro presidente da Câmara dos Deputados com o apoio do presidente Jair Bolsonaro.
"Neste momento, a CPI é um erro. A guerra está no meio. Como é que você vai apurar crime de guerra no meio da guerra? Como vai dizer qual é o certo?"
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Chefe de vacinas da Pfizer: 'Quando chegar sua vez, tome a que estiver disponível'CPI da Covid: 3 pontos sobre caso Covaxin e envolvimento dos irmãos MirandaCovid: Por que Brasil foi país que mais perdeu milionários com pandemiaMas a fala do político responsável por avaliar pedidos de impeachment no Congresso - mais de 100 já foram apresentados - pode ficar obsoleta a partir do novo foco adotado pela Comissão Parlamentar de Inquérito, que investiga irregularidades cometidas na gestão da pandemia do coronavírus no país.
Depois de semanas avaliando omissões e o comportamento do presidente em relação à pandemia, a CPI agora mira possíveis atos de corrupção envolvendo o alto escalão do governo Bolsonaro.
O estopim são suspeitas do MPF (Ministério Público Federal) e do TCU (Tribunal de Contas da União) sobre "interesses divorciados do interesse público" ou "impropriedades", respectivamente, na contratação da vacina indiana.
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Trata-se do imunizante mais caro já encomendado pelo governo brasileiro desde o início da pandemia, e também a negociação mais rápida entre vacinas autorizadas no Brasil.
O caso vem à tona poucas semanas depois de a CPI revelar que Bolsonaro e auxiliares deixaram de responder a 53 e-mails enviados pela farmacêutica Pfizer, que tentava desde meados do ano passado antecipar uma fatia das doses que hoje envia ao mundo inteiro para o Brasil.
"O último, datado de 2 de dezembro de 2020, é um e-mail desesperador da Pfizer pedindo algum tipo de informação porque eles queriam fornecer vacinas ao Brasil", escreveu o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da CPI.
Carlos Murillo, gerente-geral da Pfizer para a América Latina, informou à CPI que a farmacêutica precisou fazer 6 propostas até que o governo brasileiro decidisse firmar um acordo.
A suposta omissão do governo em relação à Pfizer se tornou um dos assuntos mais discutidos e buscados pelos brasileiros. Segundo a ferramenta Google Trends, as procuras por Pfizer aumentaram mais de 10 vezes entre meados de abril e meados de junho.
Agora, enquanto um interesse semelhante começa a despontar com a Covaxin, uma comparação entre as diferentes posturas adotadas pelo governo brasileiro em relação aos dois imunizantes ajuda a entender a dimensão do caso em discussão na CPI.
Veja, a seguir, como o tratamento dado às duas vacinas foi diferente no que diz respeito a agilidade, valores, uso de intermediários, aval da Anvisa e lobby no Congresso.
Velocidade
97 x 330.
O Brasil demorou 330 dias, ou 11 meses, para assinar um contrato com a Pfizer, um dos laboratórios mais conhecidos do planeta.
Segundo ranking publicado pelo jornal The New York Times em março, a vacina da Pfizer contra a covid-19 ocupava o topo entre as mais usadas em todo o mundo, sendo administrada até então em 68 países.
Já a Covaxin, produzida pela Bharat Biotech, é alvo de desinteresse no mercado internacional e foi vendida para apenas 14 países.
Ainda assim, o governo brasileiro precisou de 97 dias, ou pouco mais de 3 meses, para assinar um contrato com o laboratório, segundo documentos do TCU entregues à CPI.
A negociação com o laboratório indiano, portanto, foi 7 meses mais rápida que a com a farmacêutica norte-americana.
As tratativas com a Pfizer envolveram 53 e-mails não-respondidos, segundo a CPI. Já no caso da Covaxin, um documento entregue pelo Ministério da Saúde à CPI mostra que o governo enviou um memorando manifestando interesse oficial pela compra do imunizante apenas 21 dias após a primeira reunião técnica sobre a vacina.
Ainda para efeito de comparação, com a farmacêutica Johnson e Johnson, que produz a vacina Janssen, a negociação demorou 10 meses. Para a Coronavac, negociada pelo Butantan, o tempo necessário foi de 5 meses. Já no caso da AstraZeneca, negociada pela Fundação Oswaldo Cruz, foram 4 meses.
Preço
Além de ter sido negociada em tempo recorde, a Covaxin a vacina mais cara entre as contratadas pelo governo brasileiro.
Cada dose da vacina indiana, segundo o acordo firmado por Bolsonaro, custa US$ 15 (ou R$ 74, na cotação atual).
Já as doses da Pfizer foram negociadas em um primeiro contrato por US$ 10 (ou R$ 49, em valores atuais). Em uma segunda rodada de negociações, cada dose saiu por US$ 12 (R$ 59).
Todas as demais vacinas custam até US$ 10 - sendo a Astrazeneca, quando produzida na Fiocruz, a mais barata delas: US$ 3,16 por dose, ou R$ 15.
O contrato do governo Bolsonaro com os produtores da Covaxin é de R$ 1,6 bilhão e envolve a compra de 20 milhões de doses.
Na segunda-feira (24/06), o jornal O Estado de S. Paulo afirmou em reportagem que documentos do Ministério das Relações Exteriores mostravam que o governo comprou a vacina indiana Covaxin a um preço 1.000% maior do que o estimado seis meses antes pela fabricante.
Um telegrama enviado em agosto pela embaixada brasileira em Nova Délhi (Índia) ao Itamaraty informava que o imunizante produzido pela Bharat Biotech tinha o preço estimado em US$ 1,34 por dose. Em fevereiro, porém, o Ministério da Saúde concordou em pagar US$ 15 por unidade (R$ 80,70 na cotação da época).
A fabricante Bharat Biotech nega que tenha havido sobrepreço, informando que as doses do imunizante são vendidas ao exterior a valores que variam de US$ 15 a US$ 20. O valor é superior àquele cobrado do governo indiano (de US$ 2 a US$ 10), segundo a empresa, pois o país asiático investiu no desenvolvimento do produto.
A Precisa Medicamentos, que intermediou as negociações entre o governo brasileiro e a empresa indiana, afirma que a dose vendida ao governo brasileiro tem o mesmo preço praticado a outros 13 países que também já adotaram a Covaxin.
Intermediária
As investigações sobre possíveis irregularidades nos contratos do governo com o laboratório indiano Bharat Biotech corriam em sigilo até que veio à público o relato do chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde, Luís Ricardo Miranda, ao MPF.
Miranda disse ter sofrido "pressão incomum" para assinar o contrato com a empresa Precisa Medicamentos, uma empresa que intermediou o negócio entre o governo brasileiro e a Bharat Biotech para a compra da Covaxin.
No caso dos demais imunizantes comprados, o Brasil negociou diretamente com o laboratório fabricante, fosse com representantes no Brasil ou com as matrizes internacionais.
As tratativas com a Pfizer, por exemplo, aconteceram por meio da gerência de negócios da farmacêutica para a América Latina.
A Covaxin foi a única contratada em que uma empresa externa - no caso, a Precisa Medicamentos - surgiu para intermediar a negociação com o governo brasileiro.
A figura-chave da Precisa Medicamentos é o empresário Francisco Maximiano, que é sócio da empresa, bem como da Global Gestão em Saúde, uma fornecedora que é alvo de suspeitas prévias sobre irregularidades em contrato com o Ministério da Saúde.
Em 2017, quando o ministro da Saúde era o deputado federal Ricardo Barros (PP-RS), hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara, a Global Gestão em Saúde venceu um processo de compra emergencial para fornecer medicamentos à pasta, mas não entregou os remédios, mesmo tendo recebido o pagamento antecipado de R$ 19,9 milhões.
Em 2019, o Ministério Público Federal processou a empresa e o ex-ministro.
Segundo o MPF, a empresa ganhou o processo de compra mesmo sem atender a todos os requisitos, como ter registro para importação dos medicamentos na Anvisa.
Ainda não se sabe por que o governo Bolsonaro aceitou negociar com uma empresa comandada por um empresário investigado por suposta fraude.
Outro ponto único da negociação da Covaxin é uma terceira empresa, a Madison Biotech, com sede em Cingapura, apontada como destino para um pedido de pagamento antecipado de R$ 221 milhões para garantir a compra da vacina indiana.
Segundo o vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues, a Madison Biotech pode ser uma empresa de fachada, o que o governo nega.
Aval da Anvisa
Em 19 de março de 2021, dia em que o Brasil registrou 2,8 mil mortes pela covid-19 e alcançou a marca de 290 mil vítimas da doença, o governo brasileiro assinou seu primeiro contrato com a Pfizer, prevendo a entrega de 100 milhões de doses da vacina.
Este contrato foi assinado quase um mês depois de a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovar, em 23 de fevereiro, o registro do imunizante da Pfizer.
Diferente das duas aprovações para uso emergencial registradas até então (Coronavac e AstraZeneca), o registro da Pfizer foi o primeiro no país a ter caráter definitivo.
"Informo com grande satisfação que, após um período de análise de dezessete dias, a Gerência Geral de Medicamentos, da Segunda Diretoria, concedeu o primeiro registro de vacina contra a Covid 19, para uso amplo, nas Américas", disse então Antônio Barra Torres, presidente da Anvisa.
Mas a história com a Covaxin, novamente, foi diferente e o imunizante indiano teve seu contrato de aquisição assinado pelo Ministério da Saúde mais de três meses antes da autorização de uso emitida pela Anvisa.
Firmado com a intermediária Precisa Medicamentos, o contrato do governo Bolsonaro com a Covaxin foi assinado em 25 de fevereiro de 2021.
Mas a Anvisa ainda não havia dado aval para a vacina. Em 31 de março, mais de um mês após a assinatura do acordo, o pedido do governo para importar doses da vacina indiana foi rejeitado pela agência reguladora por falta de documentos.
O principal problema, segundo a Anvisa, era a falta de um certificado de Boas Práticas de Fabricação que seguisse pré-requisitos necessários no Brasil.
Após insistência do governo, a Anvisa aprovou o pedido de importação da Covaxin em 4 de junho. Ainda assim, apontou falta de dados sobre a efetividade do imunizante e permitiu a importação em caráter extraordinário e com ressalvas, autorizando que a Covaxin fosse aplicada em no máximo 1% da população brasileira.
"Nós sabemos que as vacinas são importantes, mas vacinas de qualidade, segurança e eficácia comprovada. Então, por isso é que há recomendação que esse uso seja controlado, que seja observado com muito cuidado os resultados que vão ser gerados, que as pessoas saibam o que existe e o que não existe dessas vacinas para que a gente possa ser muito transparente com quem eventualmente vá utilizá-las", disse gerente-geral de Medicamentos da Anvisa, Gustavo Mendes, no dia da autorização.
Lobby
Em depoimento à CPI em maio, Fabio Wajngarten, ex-secretário de Comunicação do Planalto, revelou que o governo ignorou por dois meses uma carta da Pfizer em que a farmacêutica oferecia milhões de doses de vacinas.
Em 7 de janeiro, a Pfizer divulgou uma nota informando que havia oferecido 70 milhões de imunizantes ao governo Bolsonaro - que recusou a proposta.
Já a Covaxin, além de ser a mais cara e a negociação de vacinas mais rápida do Brasil na pandemia, contou com o apoio explícito de figuras importantes do entorno do presidente.
Em 29 de abril, o deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo da Câmara, cobrou publicamente que a Anvisa acelerasse a aprovação do imunizante indiano.
Barros, que foi ministro da Saúde no governo de Michel Temer, é alvo de investigação na Justiça Federal por improbidade justamente no caso que envolve o sócio da intermediária da Covaxin no Brasil.
"Muitos bilhões de reais foram disponibilizados para o combate à Covid, vacinas compradas, contratadas, ainda com poucas vacinas autorizadas pela Anvisa e, portanto, atrasando o nosso cronograma de vacinação. Mas o governo fez e assinou os contratos. Nós temos 500 milhões de doses de vacinas contratadas. E contratará mais, porque, como estamos vendo a programação de entrega de vacinas não pôde ser cumprida porque não houve liberação da Anvisa nem da Covaxin, nem da Sputnik, nem de outras vacinas que estão lá com pedido de uso emergencial", disse o deputado no plenário da Câmara, em 29 de abril.
Em seu depoimento ao MPF sobre a suposta pressão para acelerar a compra da Covaxin, o pivô do caso, Luís Ricardo Miranda, afirmou que "superiores" no Ministério da Saúde o pressionaram a "pedir uma exceção da exceção" à Anvisa.
Ao jornal O Globo, Barros disse que o apoio se justifica porque "a Índia é uma das maiores produtoras de insumos de medicamentos e vacinas no mundo".
"A inclusão do órgão de saúde da Índia no artigo 16 da MP também foi motivo de emendas dos deputados Orlando Silva (Emenda 102) e Renildo Calheiros (Emenda 77), ambas protocoladas no dia 3 de fevereiro. Ressalta-se ainda que o artigo 16 passou a incluir mais de 10 Agências de Vigilância Sanitária ou órgãos semelhantes de diversos países, no texto original eram apenas cinco."
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