Brasília - Depois de um depoimento confuso do cabo da Polícia Militar de Minas Gerais Luiz Paulo Dominguetti, chamado até de “cavalo de Troia” por senadores independentes e de oposição na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID, a intenção agora é avançar sobre as negociações de aquisição de vacina, em especial da indiana Covaxin, sob suspeita de irregularidades."Agora, se abre cada vez mais a via da corrupção e do interesse financeiro, que pode explicar porque o Brasil fez coisas tão diferentes do resto do mundo"
Alessandro Vieira (Cidadania-SE), senador
O imunizante é produzido pelo laboratório indiano Bharat Biotech, representado no Brasil pela empresa Precisa Medicamentos. Em meio a denúncias, o governo federal suspendeu o contrato, que previa compra de 20 milhões de doses a R$ 1,6 bilhão, e aumentou ainda mais a suspeita dos senadores.
O depoimento de Luiz Dominguetti foi visto como algo que “tirou” a CPI do eixo em que estava, e a intenção é retornar. Ele apresentou relato considerado importante sobre suposto pedido de propina de US$ 1 por dose de vacina no Ministério da Saúde, mas acabou gerando tumulto na sessão quando apresentou áudio do deputado federal Luis Miranda (DEM-DF). Isso porque Miranda foi quem levou à CPI o depoimento mais importante, que atinge diretamente o presidente Jair Bolsonaro. Os parlamentares, entretanto, não invalidam a denúncia de Dominguetti.
Logo depois da sessão, senadores do chamado G7 (grupo de oposição ou independentes ao governo na CPI) se reuniram com o presidente Omar Aziz (PSD-AM), e o entendimento era de que o foco deveria voltar para a Covaxin e a negociação de outros imunizantes. A apuração da CPI já passou por várias etapas, como a observação da indicação de medicamentos sem eficácia comprovada contra COVID (cloroquina e ivermectina, por exemplo), gabinete paralelo que supostamente assessorava Bolsonaro com informações negacionistas, demora em negociação para compra de Coronavac e Pfizer.
Agora, o foco está nas negociações de vacinas, a fim de observar possíveis negócios escusos. A abertura de inquérito contra Bolsonaro por prevaricação reforçou o impacto da CPI. A suspeita sobre as negociações da Covaxin começou com a observação de um esforço maior do governo em adquirir este imunizante, enquanto outros foram deixados de lado (Janssen, Pfizer e Coronavac), ainda que estivessem mais avançados do ponto de vista do aval sanitário. Depois, telegramas do Itamaraty e da embaixada de Nova Dhéli começaram a surgir, mostrando movimento no sentido de agilizar a importação do imunizante indiano, mesmo com alertas da embaixada de que havia resistência a ele na Índia.
A situação se agravou quando foi divulgado o depoimento do servidor do Ministério da Saúde Luís Ricardo Miranda à Procuradoria da República do Distrito Federal, no qual ele relata “pressões anormais” de superiores para agilizar a importação da Covaxin. Luís Ricardo detalhou à CPI as pressões, e deu nomes. Também na CPI, o seu irmão, o deputado Luis Miranda, contou que ambos se reuniram com Bolsonaro para repassar as suspeitas sobre a negociação, que envolvia problemas em nota fiscal internacional (invoice). Bolsonaro, então, teria dito que a questão parecia ser “rolo” do líder do governo na Câmara Ricardo Barros (PP-PR) e disse que procuraria a Polícia Federal, o que não aconteceu. A PF só abriu inquérito na semana passada, depois que o contrato com a empresa foi suspenso.
Apesar das suspeitas sobre a Covaxin, o foco dos senadores não deve ficar apenas nela, segundo o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), suplente na CPI. “(A Covaxin) é um foco relevante. O governo não negocia, não contrata com a Pfizer e escolhe contratar com a Precisa ou negociar numa mesa de restaurante compra de vacina com a Davati (Medical Supply). Isso está documentado. Estamos na etapa da definição das motivações para essa tomada de decisão do presidente. Agora, se abre cada vez mais a via da corrupção e do interesse financeiro, e isso pode explicar porque o Brasil fez coisas tão diferentes do resto do mundo”, disse.
Líder da bancada feminina no Senado, Simone Tebet (MDB-MS) aposta que a Covaxin "vai esquentar os ânimos na CPI” nesta semana. "Temos não só indícios, temos muitos elementos de prova. Foi empenhado antes da lei estar em vigor, antes do contrato estar assinado. Um contrato ilegal que não tinha lei permitindo a assinatura. R$ 1,6 bilhão para a compra de uma vacina indiana que nós nem sabemos qual é, a Anvisa não tinha aprovado ainda", afirma Tebet. Segundo ele, o esquema não envolve apenas a cúpula do governo, "mas gente de dentro do Ministério da Saúde que, recentemente, foi exonerada".
Para avançar nas conexões, os senadores se debruçam em quebras de sigilo bancário, fiscal, telefônico e telemático e tentam observar as relações de um dos sócios da Precisa Medicamentos, Francisco Maximiano, visto como personagem central para entender as negociações do governo. A apuração deve seguir também outros imunizantes. A próxima da vez é a vacina russa Sputnik V, da União Química, que tem aparecido nos requerimentos dos senadores há algum tempo, mas sem aprofundamento. Em maio, por exemplo, foi aprovado um pedido de informação do Ministério da Saúde sobre as medidas relacionadas à aquisição dos imunizantes. A convocação do diretor de negócios internacionais da União Química, Rogério Rosso, foi aprovada ainda em abril, e agora os senadores devem começar a olhar mais efetivamente para o imunizante.
Fiscal do contrato vai depor amanhã
Brasília – A intenção dos senadores da CPI da COVID é ouvir amanhã a servidora Regina Célia Oliveira, fiscal do contrato com a Covaxin no Ministério da Saúde; na quarta-feira, o ex-diretor do Departamento de Logística Roberto Ferreira Dias; na quinta-feira, Carolina Palhares, diretora de Integridade do ministério. A diretoria em questão, segundo requerimento, enviou no ano passado ao Tribunal de Contas da União (TCU) “a informação sobre irregularidades na compra de kits de reagentes e insumos utilizados em testes de COVID”.
Na sexta-feira, será a vez da diligência para ouvir o ex-governador do Rio Wilson Witzel. O cronograma, no entanto, sempre pode mudar. Dessa vez, talvez não por vontade dos membros da CPI. Isso porque o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), entrou com mandado de segurança no STF para ser ouvido na quinta-feira, como marcado inicialmente. “Alego que estou sendo impedido de exercer minha ampla defesa por abuso de poder da CPI que ataca minha honra indevidamente”, disse.
Os senadores do G7, por outro lado, querem ouvir outras pessoas e obter alguns documentos antes da oitiva do parlamentar. Os governistas, entretanto, estão com pressa para que Barros deponha. Na última semana, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), e um dos filhos do presidente, Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), frisaram que a oitiva de Barros deveria ser logo marcada. Para o relator da CPI, Renan Calheiros, as dúvidas sobre Barros ficam ainda mais fortes por causa do silêncio de Bolsonaro a respeito. "A situação do Ricardo é delicada porque até agora o presidente da República não saiu em sua defesa", opina Calheiros.
Entre os senadores, o entendimento é de que não há condições de um parlamentar apenas “capitanear” sozinho uma possível atividade irregular de grande porte, envolvendo aquisição de vacinas no meio de uma pandemia. A avaliação é que outros deputados também podem ser apontados. Enquanto isso, o Palácio do Planalto se vê acuado em meio às suspeitas, que soma-se ao receio de que exista um áudio da conversa entre os irmãos Miranda e Bolsonaro. A avaliação é que é por este motivo que o presidente não tentou sequer desmentir o deputado federal ou fez ataques contra ele.
Questionado se via envolvimento do Centrão nas suspeitas, Alessandro Vieira pontuou que Barros representa o Centrão. “Esse tipo de esquema normalmente é um esquema de grupo, não é um esquema individual. E o histórico de operações de grande porte que a gente tem mostra isso; uma espécie de consórcio político. Mas a gente vai apurar isso com calma e vamos ver o que vai surgindo”, explicou.