Especialistas veem a notícia da ameaça direta à democracia feita pelo ministro da Defesa de Jair Bolsonaro, o general do Exército Walter Braga Netto, como um sintoma da fragilidade democrática do país. O militar negou, na manhã desta quinta-feira (22/7), por nota, que tenha avisado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que caso o Congresso não aprove o voto impresso, não haverá eleições em 2022. Mas, na mesma mensagem, defendeu a alteração do sistema eleitoral. Para estudiosos da Defesa e cientistas políticos, mesmo que o desmentido de Braga Netto seja verdadeiro, um golpe não está descartado.
Além disso, a simples notícia da ameaça direta da Defesa ao Congresso deveria ser suficiente para tornar insustentável a permanência do militar no cargo. É o que afirma o especialista em relações internacionais e ex-assessor da Assessoria de Defesa da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Juliano da Silva Cortinhas. "Eu parto do pressuposto de que houve o episódio. Nós vivemos em um momento de testes constantes à demo, e parece que esse foi mais um", opinou.
"E se nós tivéssemos uma declaração como essa, como repercutiria? O ministro da Defesa fez a declaração. O Lira, em vez de cobrar a demissão, resolveu dar um off para a imprensa. O que mostraria que ele é um chefe fraco. Se tivesse à altura do cargo, exigiria, sem divulgar o episódio, a demissão do ministro. O presidente pode demitir ministros quando bem entender. E ele (Lira) é fraco pois não defende a democracia, mas seus interesses e seu grupo. Acabamos de ter a recriação do ministério do Trabalho porque o Centrão exigiu, uma reforma, mas a demissão do ministro da Defesa também não ocorreu", destacou.
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Rosa pede que PGR se manifeste sobre abertura de inquérito contra Luís MirandaMourão: É lógico que vai ter eleição. Não somos república de bananaMourão diz que Brasil não é 'república de banana' e que haverá eleiçõesMaia sobre ameaça de Braga Netto: 'A história insiste em se repetir'Cortinhas lembra que já ocorreram demissões de ministros da Defesa por "declarações mal colocadas". Em 4 de agosto de 2011, Jobim entregou a carta de demissão à então presidente da República Dilma Rousseff (PT), após a imprensa divulgar críticas que o ministro teria feito a Gleisi Hoffmann, então chefe da Casa Civil, e Ideli Salvatti, do extinto Ministério das Relações Institucionais. E, em 4 de novembro de 2004, o ministro José Viegas Filho pediu demissão ao então presidente Lula após o Exército divulgar uma nota de conteúdo político sem consultá-lo.
"E, ao contrário do que ocorreu, o atual ministro certamente não será demitido, pois nossa democracia está muito enfraquecida. Se estivéssemos com uma democracia bem construída, ele deveria ser demitido independente de a notícia ser verdadeira ou não. Isso não ocorre porque estamos reféns das Forças Armadas. O ministro da Defesa não poderia ser militar se a democracia fosse sólida. Um pré-requisito para a democracia é o controle civil sobre as Forças Armadas. Se o ministro é militar, a democracia é débil, e nesse cenário, não podemos esperar que haja a demissão do atual ministro", criticou.
Para completar, Cortinhas diz que o Congresso, graças ao Centrão, que tem seus pleitos atendidos pelo governo federal, está "confortável", e também não deve interceder politicamente no episódio. "Basta olhar para o fundo eleitoral. Mesmo que Jair Bolsonaro vete o fundão, os valores finais devem ser muito elevados. Apenas menores que os atuais (R$ 5,7 bilhões para campanhas eleitorais). O orçamento aprovado, inclusive por meio de orçamento secreto, de outras práticas nunca vistas na história da República demonstra que o Congresso está em uma situação favorável. Nesse sentido, não há interesse em mudar o status quo", apontou.
Instabilidade institucional
De acordo com o cientista político e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Geraldo Tadeu, a suposta ameaça de Braga Netto à democracia revela "um clima de altíssima instabilidade institucional, política e até emocional no meio político". "Uma notícia dessas, anos atrás, passaria facilmente como fake news. Mas, hoje, passa a ter um grau de plausibilidade bastante grande, para fazer com que as pessoas se mobilizem em torno disso. Isso mostra a degradação institucional que estamos vivendo", disse.
Especialista em governo Bolsonaro, Tadeu destaca que a retórica golpista bolsonarista é constante, e o governo é parte integrante do movimento bolsonarista. "As manifestações de rua deles pedem fechamento do Congresso e são contra o STF, e o próprio Bolsonaro chama o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (Luiz Fux) de 'imbecil' e de 'idiota'. Isso faz parte essencial do movimento bolsonarista. E é incorporada pelos personagens de proa do governo Bolsonaro que é parte desse movimento", explicou.
O especialista lembrou ainda que também não houve punição ao ex-ministro da Saúde, também general do Exército, Eduardo Pazuello, por participar de uma manifestação política ao lado de Bolsonaro. "Há uma mistura bastante perigosa e deliberada do movimento bolsonarista, do governo bolsonarista com lideranças das Forças Armadas. Isso é deliberado para fazer as pessoas crerem que as Forças Armadas poderiam entrar em uma aventura golpista", destacou.
Para o cientista político, o Congresso Nacional segue "extremamente dependente do Poder Executivo" e tem pouco diálogo com a sociedade civil que representa. Isso deixa o governo Bolsonaro à vontade para seguir gerando crises. Ele alertou para o risco de um golpe, mas não nos modelos clássicos. "Os líderes do Congresso sabem disso. Sabem que são guardiões do estado democrático de direito. Não vejo a perspectiva de um golpe militar clássico. Tanques nas ruas. Isso é guerra fria", disse.
"Em um país aberto ao mercado internacional, globalizado, fazendo parte de um G8, seria um retrocesso muito grande. Mas é aquela coisa que explicam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que escreveram o livro 'Como as democracias morrem'. Você ocupa e desnatura as instituições. O Congresso continua funcionando, o Executivo também, mas estão degradadas por práticas antirrepublicanas, como é o caso de pressionar o Congresso por meios externos para que aprovem uma bandeira que é personalística", completou.
Por bandeira personalística, Tadeu fala no voto impresso. Na visão do cientista político, trata-se apenas de "uma disputa de poder entre E executivo, Legislativo e Judiciário". "Na prática, não altera nada. Só cria um monstro. Você bota fechadura na porta arrombada. Se houve fraude, você muda. Mas desde 1996, o sistema é plenamente auditável. A urna eletrônica é totalmente auditável. Os partidos políticos designam técnicos que conferem a programação e os votos. Tem resultado divulgado por urna, com auditoria permanente pelos partidos. Anos atrás o TSE abria prazo de um mês para hackers invadirem o sistema. Nunca conseguiram. É meramente uma disputa de poder para o Executivo dobrar o Judiciário e Legislativo, além de ser um gasto inútil", criticou.
"É uma cortina de fumaça para dizer que tem uma trama contra as eleições, contra Bolsonaro. 'Eles' não querem que Bolsonaro governe, um 'eles' que é uma coletividade oculta. Um conspiracionismo. O fundamental é que há um clima permanente de golpismo que torna esses boatos plenamente críveis", avaliou.
Suposta ameaça
Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abid), Alcides Costa Vaz destacou, por sua vez, que, caso a ameaça de Braga Neto ao Congresso e à democracia se confirme, será "a mais grave manifestação de uma liderança militar brasileira no que diz respeito a colocar em risco um componente central da prática democrática" desde o golpe militar 1964. "Não me lembro de nenhuma outra ameaça de forma tão direta", disse.
Ele é cuidadoso ao destacar que Braga Netto emitiu uma nota negando que tenha feito as ameaças. "Essa (ameaça), em se confirmando, é uma fala golpista. É como dizer que temos já uma resposta pronta (ao debate do voto impresso) que implica um risco direto a algo que é central ao estado democrático de direito, que é o sufrágio universal, eleições livres. Vamos até onde para buscar um equivalente? Teria que ser em 1964. Similar a isso é só 1964", lembrou.
Para Alcides, os militares talvez não tenham peso político o suficiente para impedir as eleições diante de possíveis reações de outras instituições, como Judiciário, Legislativo e outras instâncias do Executivo, como governadores e prefeitos. Ainda assim, a tentativa poderia abrir um quadro de conflito político e social. "Acho que isso abre um quadro de conflito político e social muito grave, com consequência até de violência política, que é a pior delas. As reações de parte da sociedade civil organizada, setores da classe política tenderão a se expressar nas ruas", apontou.
"Não digo que vai se expressar necessariamente de forma violenta. Mas quando a gente olha o retrospecto desse tipo de visão militar de impor suas visões, a gente vê com sentido repressivo. É tudo que não gostaríamos de ver e que imaginávamos ter deixado para trás. É um retrocesso com tudo que isso comporta. O espectro de um cenário de repressão e violência política é o pior deles. Mas, dentro do quadro de polarização, dizer que não é factível (que seja verdade a mensagem de Braga Netto a Lira)? Infelizmente, é factível", afirmou.