Um levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) fomentou a discussão sobre a mobilidade urbana no Brasil. Durante a pandemia, entre março de 2020 e julho de 2021, ao menos 14 Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) foram abertas em Câmaras Municipais por todo o país com o objetivo de investigar ilegalidades nos sistemas de transporte público.
Em Belo Horizonte, um processo de investigação foi criado pela Câmara dos Vereadores em maio deste ano. A CPI investiga o processo licitatório, aberto em 2008, do transporte público da capital mineira.
Segundo a pesquisa, o legislativo de Teresina (PI) também abriu uma Comissão Parlamentar para apurar as licitações do setor, o processo está em andamento. Em Palmas (TO) e Campo Grande (MS) as assinaturas para abertura da investigação já foram recolhidas, Já em Porto Alegre (RS) foi instalada uma Comissão Especial na Câmara Municipal para discutir a situação do transporte coletivo.
"A piora dos serviços foi acompanhada de propostas de aumentos abusivos de tarifa ou subsídios pelas prefeituras, o que levou muitas câmaras municipais a criarem CPIs a fim de investigar os custos e lucros das empresas concessionárias no período"
Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade do Idec
Além das capitais, as comissões também estão em funcionamento em Blumenau (SC); Campos dos Goytacazes e Nova Friburgo (RJ); Conselheiro Lafaiete (MG); Ponta Grossa (PR) e São José dos Pinhais (PR); Mauá, São José do Rio Preto e Valinhos (SP). As cidades de Presidente Prudente (SP), Uberlândia (MG) e Umuarama (PR) já concluíram suas respectivas CPIs sobre transporte no período de pandemia.
Algumas das CPIs já encerradas encontraram irregularidades mas, até o momento, não foram implementadas medidas pelo poder Executivo para resolver os problemas. No caso de Belo Horizonte, a análise de documentos apontou erros estruturais no contrato de concessão e desencadeou a criação de outra comissão que dará diretrizes para que sejam feitas correções.
Em Presidente Prudente (SP), a situação foi a mesma, sendo que o relatório final da CPI recomendou a rescisão do contrato com a empresa concessionária. A cidade segue enfrentando problemas e nomeou um interventor para lidar com a situação do transporte coletivo.
A crise do transporte público
Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade do Idec, explica que o serviço já vinha sendo objeto de questionamento social há vários anos. Ele relembra as séries de manifestações em São Paulo (2013), Rio de Janeiro (2018) e Niterói (2013), que geraram uma movimentação popular em defesa do transporte público.
Em junho de 2013, por exemplo, a série de manifestações pautadas pelo aumento das passagens de ônibus tomou grandes proporções. Com início na capital paulista, em poucos dias o movimento tomou as ruas de todas as capitais do país e de centenas de cidades do interior.
Para Calabria, o problema já era latente na gestão pública brasileira. Entretanto, com a pandemia, os problemas se aprofundaram ainda mais. A evidente crise na saúde pública abriu os olhos da população para outros setores.
“A piora dos serviços foi acompanhada de propostas de aumentos abusivos de tarifa ou subsídios pelas prefeituras, o que levou muitas câmaras municipais a criarem CPIs a fim de investigar os custos e lucros das empresas concessionárias no período”, ressalta Calabria.
“A piora dos serviços foi acompanhada de propostas de aumentos abusivos de tarifa ou subsídios pelas prefeituras, o que levou muitas câmaras municipais a criarem CPIs a fim de investigar os custos e lucros das empresas concessionárias no período”, ressalta Calabria.
Segundo ele, em geral, os principais fatos que motivam a abertura de CPIs são a falta de transparência e irregularidades sobre o cálculo das tarifas, além do descumprimento de itens do contrato de concessão.
Outro fator de peso para a abertura das investigações foi a queda no número de usuários do transporte público. Em janeiro deste ano, o aplicativo de mobilidade Moovit divulgou um levantamento que apontou uma redução de 36% dos passageiros de dez regiões metropolitanas brasileiras. Os dados foram apurados com 13 mil usuários durante o mês de novembro do ano passado
Nos últimos 25 anos, houve uma redução contínua no número médio de passageiros por dia, embora os custos tenham subido em ritmo até maior do que a inflação. Segundo dados coletados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a média diária de usuários de ônibus era de 631 mil em outubro de 1995 e caiu a 343 mil em outubro de 2019. O número considera nove capitais: Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
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Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade do Idec
Se antes a redução de passageiros já era uma realidade a ser enfrentada, a pandemia acentuou e acelerou a redução de usuários no setor e diminuiu a arrecadação das empresas. Em várias cidades, companhias de ônibus exigiram aumentos de tarifa ou abandonaram as operações, obrigando as prefeituras a assumirem o serviço em caráter emergencial. Além de uma onda de greves nas empresas que, tampouco, cumpriram suas obrigações trabalhistas.
Como chegamos até aqui?
Para o Idec, o número elevado de CPIs revela o tamanho do problema que o setor de transporte público enfrenta, já que o processo de abertura de uma comissão em geral é demorado e polêmico.
“Elas mostram ainda que há uma percepção da sociedade para o problema e a tentativa de indicação de soluções pelo Legislativo. Mas as prefeituras raramente corrigem as irregularidades”, comenta Calabria.
O coordenador enfatiza, ainda, a falta de interesse pelo bem social na administração de algumas cidades. “O poder público mantém práticas de trocas de favores com as empresas de ônibus, rifando os interesses da população”, compartilha.
O sistema público de transporte no país é baseado somente na tarifa do usuário. Além disso, A a remuneração das empresas é calculada sobre o número de passageiros transportados e não sobre o custo real da operação do sistema. Segundo ele, um dos maiores problemas no transporte público está neste ponto: a forma de financiamento do sistema.
“Esse é um problema nacional e estrutural, que não pode mais ser pensado por cada cidade separadamente, mas sim por uma política nacional de transportes”, diz Calabria.
Para a entidade, o ideal seria rever esses contratos de concessão, contemplando outras fontes de financiamento e refazendo a fórmula de cálculo da tarifa, com maior transparência e prevalecendo o interesse público.
No Brasil, foi aprovado pelo Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 3364/20, que previa um aporte de R$ 4 bilhões para sistemas de transportes em cidades acima de 200 mil habitantes. Entretanto, a medida foi vetada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem Partido) em dezembro do ano passado.