Arroz, feijão, óleo, leite e macarrão. Considerados itens de primeira necessidade contidos numa cesta básica, os produtos se transformaram em artigo de luxo na mesa dos brasileiros mais vulneráveis, diante do aumento da inflação na pandemia do coronavírus. Para a dona de casa Ana Paula Rego Silva, de 51 anos, moradora do Aglomerado da Serra, Centro-Sul de Belo Horizonte, levar R$ 100 ao supermercado era sinônimo de carrinho cheio e compras fartas. Com o aumento desenfreado dos preços, porém, ela consegue adquirir somente alguns produtos, que não matam a fome da família. Ela e milhões de brasileiros são testemunhas da crise econômica vivida pelo país. O presidente Jair Bolsonaro, entretanto, em conversa com apoiadores no Palácio da Alvorada, em Brasília, sugeriu aos brasileiros comprar fuzil.
A declaração veio em hora inoportuna, quando 61 milhões de brasileiros vivem à margem da pobreza e outros 19,3 milhões se encontram na extrema pobreza – de acordo com levantamento feito pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made-USP), com ênfase em dados de IBGE. Em Belo Horizonte, cerca de um terço da população vive nas camadas mais pobres, o que reflete o estrago feito pela pandemia da COVID-19.
Comprar um fuzil 762, sugerido pelo presidente, custaria de R$ 15 mil a R$ 20 mil em média. O dinheiro investido na arma seria suficiente para comprar 1,9 mil pacotes de feijão, que diminuiriam a fome de muitos brasileiros. O dinheiro gasto num fuzil também compraria ao menos 60 cestas básicas de R$ 250. Para conseguir comer bem, Ana Paula Rego Silva, por exemplo, conta com doações de cestas básicas feitas na comunidade, sobretudo o próprio feijão e o arroz, itens que tiveram inflação de 42,7% (campeão da lista) e 39,7% no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no início do mês. “Tudo está muito caro no geral. A gente sofre muito. Sempre temos de ficar contando se o dinheiro vai dar para pagar todas as despesas”, lamenta a dona de casa.
O arroz e o feijão chegam em boa hora para ela. “Hoje, já não compro feijão porque ganho na cesta. Mas, se fosse para comprar, seria muito complicado. Compro mais leite, que não vem na cesta. Tudo está muito com o preço absurdo”, completa. Ana Paula vê com perplexidade a declaração do presidente aos apoiadores ao comparar alimentação com armamento: “O idiota é ele e tudo o que ele fala. Nem sei o que o Bolsonaro está fazendo aqui”.
A estudante Paula Lourdes, de 23, também encara dificuldades para colocar em casa tudo o que precisa. Num supermercado da Serra, ela comprou apenas aveia, óleo, biscoito e pão. O restante é adquirido somente de vez em quando. Segundo ela, indignação é o sentimento mais evidente. "A gente vê o arroz a R$ 23 e o feijão a R$ 8. Isso custa muito para quem paga aluguel e outras despesas. Uma família de cinco pessoas não consegue sobreviver”, desabafa. “Tudo está subindo e o salário, que seria bom subir, não sobe nada. Com isso, deixamos de comprar muitas coisas por algum tempo. Como aqueles que ganham um salário conseguem sobreviver?”, completa.
A miséria de milhões de brasileiros é vista de perto por voluntários que dedicam boa parte do dia a dia para ajudar. Júlio Cézar Pereira, de 45, se dedica há quase três décadas a tentar minimizar a diferença entre ricos e pobres em BH. Um dos diretores da Central Única das Favelas (Cufa-MG), ele conta que a alimentação dos mais vulneráveis piorou muito por causa do aumento da inflação. “Para quem já trabalhava, o salário-mínimo nunca deu conta de cobrir toda cesta básica necessária para ter uma condição digna de sobrevivência. Mas muitos perderam emprego e outros já não tinham trabalho formal, o que dificultou a busca pelos produtos de primeira necessidade. Com a pandemia, a alimentação dos mais pobres piorou muito. Quase um terço da população de Belo Horizonte está sem o feijão com o arroz garantido”, conta o voluntário.
Tem família que, para dar R$ 10 num pacote de feijão, precisa comprometer outros gastos. Muitas vezes deixam de comer feijão para comprar um pacote de macarrão, outro de biscoito e um litro de leite. Imagine comprar um fuzil, que só estimularia a violência?”, critica Júlio.