Na contramão dos temores diante das ameaças de uma eventual ruptura golpista por parte do governo de Jair Bolsonaro, em meio aos preparativos para os atos governistas de 7 de setembro, o cientista político Christian Lynch acha que o tensionamento atual é mais uma tentativa de "blindagem" do presidente e de seus filhos do que uma estratégia real de golpe.
Até porque, segundo o acadêmico, as condições atuais são significativamente diferentes do que eram em 1964 - ano em que ocorreu o golpe militar e que, portanto, tem importância simbólica para o bolsonarismo.
"Ele (Bolsonaro) excita a base radical (...) e ao mesmo tempo incute nos inimigos a crença de que ele é capaz de dar o golpe. Explora-se uma fantasia do eterno retorno de 64, como se o Brasil fosse a mesma coisa (que nos anos 1960). (Mas) esse golpe é absolutamente impossível de acontecer", opina em entrevista à BBC News Brasil.
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Lynch é doutor em ciência política, professor no Iesp (Instituto de Estudos Sociais e Políticos) da UERJ, historiador e editor da revista acadêmica Insight Inteligência.
Com duras críticas ao governo Bolsonaro, ele conversou com a reportagem sobre o momento político atual no Brasil e no mundo e quais comparações históricas são, em sua opinião, factíveis ou não.
Leia os principais trechos da entrevista, divididos em tópicos:
'Espetáculo de confronto'
Para Lynch, caiu-se em uma espécie de armadilha ao achar-se que o governo, que vive baixa popularidade e relativo isolamento, seria capaz de promover uma ruptura institucional (ou um golpe) nas circunstâncias atuais, mesmo angariando um número representativo de apoiadores no 7 de setembro.
"Se você observar a conduta do Bolsonaro desde o início da carreira, ele sempre joga o jogo de simulação de poder, de subversão reacionária em defesa de uma imagem de bom governo associado ao regime militar e seus heróis (os militares, os PMs e os repressores). Ele se vende como alguém que está organizando um motim que nunca explode. O que interessa à família Bolsonaro é reiterar a política como espetáculo do confronto. A gente vê isso na Cultura, nas Relações Exteriores (com o ex-ministro Ernesto Araújo)", diz.
Ao mesmo tempo, prossegue Lynch, "são várias as atitudes não compatíveis com a ideia de que ele queira ou possa dar um golpe. Veja a reação de personagens graúdos da República, sejam auxiliares do Palácio do Planalto, sejam (ministros do Supremo) como Gilmar (Mendes) e (Luís Roberto) Barroso, ou de Pacheco (Rodrigo Pacheco, presidente do Senado) ou (o presidente da Câmara, Arthur) Lira: todos criticam o golpismo, mas sempre passam (a ideia) de que ninguém acredita naquilo ali - até porque eles têm contato com os generais e monitoram (a situação)."
Sobre os atos de 7 de setembro, Arthur Lira afirmou na quinta-feira (2/9) que "o único a perder" se houver tumultos nas manifestações será o próprio Bolsonaro.
'Um golpe absolutamente impossível'
O presidente da República, por sua vez, manteve o tom de ameaça, dizendo a apoiadores nos últimos dias que "não precisamos sair das quatro linhas da Constituição, mas podemos jogar fora dessas quatro linhas".
Para Lynch, isso é parte dessa estratégia de intimidação.
"Bolsonaro quer meter medo para impor os termos dele e tentar dizer 'olha o que eu vou fazer se vocês tentarem prender a minha família'. Ele está ganhando tempo e provando que tem força de barganhar, negociar", opina.
"Existe a exploração de um sistema de intimidação. Ele excita a base radical, faz com que eles acreditem no mito do golpe - o populismo reacionário explora o mito do líder do povo que vai conseguir restaurar o passado de ouro, que é uma fantasia do regime militar - e ao mesmo tempo incute nos inimigos a crença de que ele é capaz de dar o golpe. A intimidação gera esses dois efeitos em públicos diferentes."
"Você explora também uma fantasia do eterno retorno de 64. Como se o Brasil fosse a mesma coisa, o Exército fosse igual, como se estivéssemos no mesmo ponto e com a ideia um pouco fantasiosa de que é fácil dar um golpe, chamar as Forças Armadas e fechar o Congresso. Esse golpe é absolutamente impossível de acontecer. Em 64, metade do país ou mais era contra o governo (então não era um autogolpe), o Congresso queria o golpe."
Um cenário muito diferente do atual, diz Lynch, quando o Poder Executivo federal enfrenta fortes resistências no Congresso, na opinião pública e entre grande parte dos governadores estaduais.
Esse "blefe de que só Bolsonaro segura o povo", opina Lynch, seria uma espécie de tentativa de obter algum tipo de imunidade, anistia ou garantias para si e para seus filhos - uma vez que todos eles são investigados em diferentes inquéritos no Supremo Tribunal Federal, na Polícia Federal e na Justiça.
Um dos desdobramentos mais recentes diz respeito ao filho Carlos Bolsonaro, vereador no Rio que teve seu sigilo quebrado pela Justiça em meio a investigações de um suposto esquema de contratação de funcionários fantasmas em seu gabinete.
Como exemplo da preocupação do presidente da República com o destino de sua família, Lynch cita o exemplo da famosa reunião entre Bolsonaro e seus ministros, em 22 de abril de 2020, cujo teor foi tornado público por decisão do STF.
Naquela reunião, diz o cientista político, "Bolsonaro não (demonstra) nenhum interesse em nada do que está acontecendo nos assuntos administrativos (citados pelos ministros). Ele só entra para falar quando envolve a família dele. Queria intervir na PF do Rio e diz 'eu não vou esperar f**er minha família toda'.
Essa é a grande preocupação dele o tempo todo. (...) Ele vai usar os radicais para barganhar a imunidade dele e ir ganhando tempo. É o João Kleber da política (em referência ao apresentador de TV que tentava sempre demonstrar que seu programa estava prestes a fazer alguma grande revelação): 'vou dar golpe, mas não agora, depois dos comerciais'."
O perigo, diz Lynch, é esse tensionamento sair do controle, assim como aconteceu em 6 de janeiro nos EUA, com a invasão do Capitólio por parte de extremistas apoiadores de Donald Trump.
"Como a coisa está escalonando muito, eles (figuras centrais do poder, como Arthur Lira) estão advertindo que, se sair do controle, o jogo pode acabar para Bolsonaro, porque se acontecer algum incidente sério os custos podem ficar muito altos", opina Lynch.
A dificuldade maior, prossegue, "é que a eleição está muito longe (para manter esse jogo por mais um ano)."
Comparações históricas
"É cedo para dizer o que vai acontecer, mas a experiência no mundo indica que a gente não pode comparar (o cenário) com o passado brasileiro ipsis litteris . Há ciclos parecidos - estamos num ciclo conservador, como de 60 para 70 e na década de 30 -, mas que nunca se repetem igualmente do ponto de vista da anti-democracia", opina.
"O Estado Novo foi muito mais ditatorial do que o regime militar, e um regime autoritário hoje, se houvesse, seria mais frouxo do que foi o regime militar. Isso porque a sociedade muda, vai democratizando."
"Por exemplo, os governos que se pretendem autocráticos na Polônia ou na Hungria não são os governos do tempo do comunismo. (O presidente da Rússia Vladimir) Putin, por mais horroroso que seja, não é igual a Stálin ou ao czar Nicolau 2°. Porque tem um processo de equalização das condições; as pessoas vão ficando mais cultas e lidas, a sociedade fica mais plural, vem a tecnologia, e você não tem como impor uma ordem autocrática daquele tipo."
No Brasil, diz Lynch, "não é porque se tem uma imaginação do regime militar que tem como restaurar o regime militar. Assim como não dá para acreditar em uma revolução de esquerda que mudaria tudo do dia para a noite. Isso não significa que o imaginário não conte, mas essa inspiração não (é suficiente para) replicar o governo do passado."
'Ciclo de nacionalismo e populismo'
"A democracia tem muito mais (pilares) do que tinha no passado. Mas a gente também não pode imaginar que o futuro é ter sempre a mesma democracia que teve na Nova República. A gente não vai voltar para (o mesmo ambiente global de) 2010 se o Lula for eleito. A globalização como ideologia de que todo mundo vai se dar bem, de livre circulação de mercadorias, de (criação da) União Europeia, aquilo acabou. A gente entrou num ciclo de retração, de nacionalismo, num equivalente à década de 1930. Mas hoje Hitler não conseguiria fazer o que ele fez naquela época - a gente tem mudanças."
Lynch acha que o exemplo global mais próximo do cenário brasileiro atual é o dos EUA sob Donald Trump.
"Os EUA são mais como o Brasil: um país enorme, com muitas assimetrias, com federalismo e mais fragmentação do poder (em relação a outros países atualmente sob líderes populistas, como Hungria e Polônia). E ainda assim Trump tinha um partido (o Republicano). Bolsonaro nem partido tem, (...) não domina o Congresso, nem a Suprema Corte, não tem penetração institucional, só manda no Executivo federal."
De qualquer modo, Lynch e outros pesquisadores opinam que o avanço no populismo e do nacionalismo deverá ir além dos governos de Trump, Bolsonaro e demais governos vigentes atualmente em todo o mundo.
Um futuro possível para Bolsonaro, opina Lynch, caso o presidente não seja reeleito no pleito do ano que vem, é conseguir eleger ao Congresso ou a cargos estaduais alguns aliados importantes - além dos filhos, nomes como o ex-ministro Abraham Weintraub ou o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo.
"Ele (Bolsonaro) pode ficar igual a família (francesa da direita radical) Le Pen, atazanando por décadas a França com um partido fascista familiar. Minha impressão é de que isso é um meio de vida para eles - são menos golpistas do que parasitas, que vivem de explorar a democracia, como faz o parasita do seu hospedeiro. Eles vivem do ódio da democracia, mas não têm nada para colocar em seu lugar. Querem viver às custas dela."
"E o discurso nacionalista voltou, seja com Lula ou com quem vier, porque o mundo inteiro está assim. O cosmopolitismo meio que morreu. Há teorias que dizem que o populismo veio para ficar, não necessariamente para destruir a democracia liberal, mas como estilo de política para acabar com a modorra e a sensação de não representação que existia antes no mundo inteiro. É um estilo que ativa as paixões, mobiliza, mesmo sendo meio irracional - justamente por ser meio irracional. Pode ser um tipo de política que vai ficar aí por um bom tempo, até passar esse ciclo. Mas o meu ponto é que isso não necessariamente é uma ditadura."
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