A pandemia de covid-19 produziu efeitos intensos de deterioração da qualidade de vida dos brasileiros. Prova disso é que o número de casos na Justiça relacionados a violações de direitos humanos teve um salto sem precedentes na série histórica que acompanha, desde 2014, a evolução das disputas nos tribunais. Em 2020, o número de novas ações para ter acesso a direitos fundamentais triplicou em relação ao ano anterior. Foram 64.978 registros em tribunais do País, um aumento de 342% na comparação com os 18.992 processos de 2019.
Os dados são da pesquisa "Justiça em Números 2021", do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base nas informações repassadas por todas as instâncias, incluindo o Superior Tribunal Militar.
Entraram na lista ações relacionadas a direitos de migrantes, refugiados, minorias étnicas e indígenas, ao acesso à comunicação, alimentação, moradia e anistia política. A alta no número de casos foi puxada por demandas de assistência social, que correspondem a 71% dos registros, com 46.303 ações computadas.
Moradora de Planaltina, no Distrito Federal, Eliene Aparecida de Freitas Jesus é mãe solteira de cinco filhos, dois deles com deficiência física, e está entre as pessoas que precisaram acionar a Justiça para ter acesso a benefícios sociais garantidos por leis, segundo ela, fundamentais para sobreviver à crise econômica causada pela pandemia. Ela é mãe da Maria Isabela, de 2 anos e 6 meses, que desde o nascimento tem uma prótese biológica no coração por causa de erros médicos e complicações na gestação.
Logo que a filha nasceu, Aparecida acionou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para solicitar o Benefício de Prestação Continuada (BPC) garantido a idosos e pessoas com deficiência. Após três tentativas, o pedido foi negado devido a erros cadastrais. Com o agravamento da pandemia, a saída encontrada foi recorrer ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal - segunda instância do Poder Judiciário. "Durante a pandemia, a única coisa que não me deixou passar fome foi o auxílio do governo e a ajuda das pessoas. Eu não trabalho. Fez muita falta o benefício da Maria", disse Eliene.
O caso da Maria Isabela figura entre as duas categorias de direitos humanos definidas pelo CNJ que mais tiveram ações novas na Justiça: assistência social e pessoas com deficiência - este último com 4.173 registros, o equivalente a 9% da primeira colocada. Fecham a lista de casos mais recorrentes os de benefícios negados a pessoa idosa (2.934), intervenção nos Estados/municípios (2.729) e alimentação (2.346).
Em relação aos tribunais que recebem essas demandas, a Justiça Federal - que é acionada em casos que envolvam o governo federal - é a líder disparada. O Tribunal Regional da 4.ª Região (TRF-4), responsável pelos Estados do Sul do País, recebeu 34.675 ações de direitos humanos no último ano. O segundo colocado TRF-2, que engloba o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, teve 6.665 casos.
Observatório
Em setembro de 2020, o presidente do CNJ, ministro Luiz Fux, criou o Observatório dos Direitos Humanos no Judiciário, com o objetivo de garantir a proteção a esses direitos. Dentre as principais competências do grupo está a iniciativa de "municiar a atuação do Poder Judiciário na formulação de políticas, projetos e diretrizes destinados à tutela dos direitos humanos".
Frei David, fundador da Educafro e militante histórico do movimento negro, integra o colegiado. Para ele, o crescimento acentuado do número de casos de direitos humanos está ligado à atuação do presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia. "O que fez crescer esses dados foi a postura determinada do governo federal de combater direitos", disse ele.
O religioso franciscano cita, por exemplo, o veto do presidente, em agosto deste ano, ao projeto de lei que proibia despejos e desocupações de imóveis urbanos até o final de 2021. A demanda por acesso à moradia na Justiça foi o sexto item mais registrado nas cortes do País, dentro da categoria de direitos humanos.
De acordo com os dados reunidos pelo CNJ, foram 1.804 casos no último ano. A lei contra as desapropriações na pandemia entrou em vigor apenas na sexta-feira passada, dia 8, após o Congresso derrubar o veto presidencial.
Apesar de a judicialização do direito à assistência social puxar o aumento no número de ações, os demais casos de direitos humanos sob análise da Justiça também tiveram crescimento expressivo. Ao desconsiderar o primeiro assunto do ranking, as demais demandas relativas aos direitos humanos tiveram aumento de 46,8% entre 2019 e 2020.
Para Elisa Cruz, professora de processo Civil da FGV-Direito do Rio, a concentração de ações na esfera federal revela a perda de direitos sociais no contexto da pandemia. "A partir do momento em que o relatório registra que o aumento é na Justiça Federal, significa que as pessoas foram buscar acesso a algum direito", afirmou Elisa. "Elas foram aos tribunais especiais porque precisavam ter acesso a alguma condição de humanidade para a sua vida."
Já o especialista em direitos humanos Jefferson Nascimento, coordenador de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil, atribui a alta tanto à pandemia quanto às dificuldades que as pessoas em situação de vulnerabilidade social enfrentam para ter acesso a benefícios nesse período: "A solicitação de benefícios casa com esse cenário de aumento da fome e da miséria no período da pandemia".
Insegurança alimentar
O relatório do CNJ destaca a busca de pessoas pelo direito à alimentação. Em 2020, foram 2.346 ações desse tipo, quinto no ranking de principais demandas sobre direitos humanos. Os casos incluem processos para garantir auxílio alimentação a estudantes e pessoas em situação de pobreza extrema, entre outros. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, indica que 55,2% das famílias no País, cerca de 116,8 milhões de pessoas, tiveram algum grau de insegurança alimentar em 2020. Os dados mostram ainda que 19 milhões de pessoas passaram fome nesse período. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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