Nos últimos dias, uma das principais discussões em torno do relatório final da CPI da Covid no Senado foi: o presidente Jair Bolsonaro poderia ser acusado de genocídio?
As versões preliminares do documento elaborado pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL) sugeriam pedir o indiciamento de Bolsonaro pelo genocídio de povos indígenas.
A ideia causou um racha no grupo majoritário da comissão. Após intensas negociações, o termo foi retirado do relatório final e Renan sugeriu indiciar o presidente por crimes contra a humanidade.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que genocídio e crimes contra a humanidade são definições bastante parecidas, mas com diferenças que precisam ser observadas para evitar acusações tecnicamente incorretas.
O professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Gustavo Badaró explica que o genocídio é um crime praticado visando o extermínio de uma comunidade seja por motivos raciais, étnicos, religiosos, entre outros. Badaró afirma que nesse tipo de crime, a morte não é um fim, mas um meio.
"O fim é exterminar aquela população por algum motivo", afirma o professor.
Os crimes contra a humanidade, por sua vez, são uma expressão que se originou no direito penal de guerra e que estão previstos no Estatuto de Roma, de 1998, que estabeleceu a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI), que funciona em Haia, na Holanda. O Brasil é signatário desse tratado.
De acordo com o estatuto, há 11 "sub-tipos" de crimes contra a humanidade tais como: homicídio, escravidão, extermínio, deportação ou transferência forçada de população, agressão sexual, desparecimento forçado de pessoas, perseguição, atos desumanos que causem sofrimento intencional, entre outros.
No relatório final, a CPI sugere o indiciamento de Bolsonaro por crimes contra a humanidade por: extermínio, perseguição e atos desumanos para causar sofrimento intencional.
Badaró explica que a principal diferença entre genocídio e crimes contra a humanidade é a de que no primeiro, é preciso haver uma intenção clara de liquidar um determinado grupo populacional, enquanto o segundo se trata de uma série de ataques generalizados a qualquer segmento da população civil, e não necessariamente a um grupo específico.
Ataques sistemáticos e generalizados
"A diferença básica é que o crime contra a humanidade não precisa ter uma inspiração racial, religiosa ou étnica. Basta que você identifique uma série de ataques generalizados e sistematizados contra a população civil", afirmou.
Badaró diz que a mudança que retirou as acusações de genocídio de Bolsonaro contra povos originários faz sentido considerando a diferença entre esses dois tipos de crime.
"Talvez faça sentido falar em crimes contra a humanidade se entendermos que atos do presidente possam ter levado à morte em larga escala de uma parte da população brasileira. Porém, seria necessário provar que ele tinha uma inspiração específica para matar um grupo étnico específico, no caso, os indígenas. Talvez por isso não mantiveram essa tipificação", afirmou.
O jurista Miguel Reale Jr., que fez parte de um painel de especialistas consultado pela CPI também concorda com Badaró. Na opinião dele, Bolsonaro pode ter cometidos outros delitos como crimes contra a humanidade, mas não é possível identificar elementos que permitam enquadrá-lo como genocida.
"Genocídio significa estabelecer uma ação de destruição de uma determinada comunidade em razão de características como raça, credo, etnia. O crime contra humanidade significa estabelecer condições de sofrimento a uma comunidade. Não havia a intenção de destruição, mas havia a intenção de causar sofrimento de forma organizada. É uma diferença de grau. Não se caracteriza genocídio de uma comunidade. Não havia esta intencionalidade", diz o jurista.
A tese é semelhante à que o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) defendeu em entrevista no programa Roda Viva, na segunda-feira (18/10), ao se posicionar contra o indiciamento de Bolsonaro por genocídio.
"Temos (discordância) na questão do genocídio, como eu não consigo encontrar uma configuração tão clara no tocante aos povos indígenas, no sentido de impacto e de medidas feitas e direcionadas pra eles", disse.
Dolo eventual
O advogado Ricardo Franco Pinto, que atua em um escritório que trata de casos junto ao Tribunal Penal Internacional (TPI), discorda da tese defendida por Badaró e Reale Jr. Pinto atuou em uma denúncia movida pela Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia (ABJD) que enviou uma denúncia contra Bolsonaro por crimes contra a humanidade à Corte.
Ele afirma, porém, que o presidente poderia, sim, ser indiciado por genocídio porque houve uma combinação de fatores configurando o que ele classificou como "dolo eventual".
"Quando você soma a consciência sobre a fragilidade da saúde dessas populações aos atos que ele praticou no comando do país, você tem o dolo eventual. Por mais que ele não tivesse a intenção explícita de chegar à morte de indígenas, o resultado, pra ele, não fazia diferença. E por isso ele poderia ser indiciado por genocídio", explicou.
Horas depois de o relatório final da CPI ser divulgado, o presidente Bolsonaro criticou a comissão e negou ter responsabilidade sobre o que aconteceu durante a epidemia.
"Como seria bom se aquela CPI estivesse fazendo algo de produtivo para o nosso Brasil. Tomaram o tempo de nosso ministro da Saúde (Marcelo Queiroga), de servidores, de pessoas humildes e de empresários. Nada produziram a não ser o ódio e o rancor entre alguns de nós. Mas nós sabemos que não temos culpa de absolutamente nada. Sabemos que fizemos a coisa certa desde o primeiro momento", afirmou o presidente.
Uma das consequências práticas da mudança no relatório de Renan Calheiros é que enquanto o genocídio é um crime previsto pela lei brasileira, os crimes contra a humanidade não são. Dessa forma, Bolsonaro só poderia ser punido por esse tipo de delito se condenado pelo Tribunal Penal Internacional, um processo que pode demorar diversos anos.
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Mesmo assim, o jurista Miguel Reale Jr. afirma que o rol de crimes identificados pela comissão e que teriam sido praticados por Bolsonaro também preveem punições severas.
"Não tem genocídio (no relatório), mas têm crimes de responsabilidade, por exemplo. Ele pode não ser processado por genocídio, mas poderá responder por crimes correlatos muito graves", afirmou o jurista.
A próxima fase da CPI, agora, é a votação do relatório, marcada para a semana que vem. Se o documento for aprovado, ele será encaminhado à Procuradoria-Geral da República (PGR) e outras instâncias do Ministério Público. Renan também prometeu enviar uma representação contra Bolsonaro ao TPI para avaliar as acusações elaboradas pela CPI.
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