Nem ser eleita deputada federal livrou Talíria Petrone (PSOL-RJ) do racismo. Pelo contrário: a parlamentar diz ter "perdido as contas" das vezes em que foi barrada na entrada da Casa, inclusive em sua própria posse, por causa de suas tranças e de seu turbante. Também já foi chamada de "barraqueira" e "favelada". "A Câmara é um ambiente hostil e violento para pessoas negras", afirma.
Talíria, uma das parlamentares que mais apresentaram projetos contra o racismo nesta legislatura, diz não haver disposição da Câmara para debater esse tema porque não há, segundo ela, reconhecimento de que o problema existe. É o que ela chama "mito da democracia racial", um conceito que nega a existência do racismo para reduzi-lo a uma pauta simplesmente ideológica.
A deputada começou a carreira política como vereadora em Niterói, em 2016. À época, sua candidatura foi encorajada pela amiga Marielle Franco, que se elegeu para a Câmara Municipal do Rio no mesmo ano. Talíria já foi ameaçada de morte e só sai de casa com proteção da polícia legislativa, em veículos blindados.
Leia os principais trechos da entrevista da deputada ao Estadão:
O Estadão identificou que a atual legislatura tem mais proposições com a temática do racismo que a anterior. A que a senhora atribui esse aumento?
Acredito que, embora ainda não haja um número significativo de negros no Congresso, temos, hoje, parlamentares negros, principalmente mulheres, que se elegeram com a pauta antirracista como prioridade. Áurea Carolina (PSOL-MG), eu, por exemplo. No momento em que um parlamentar negro é eleito, isso se reflete na produção legislativa. Há uma bancada antirracista composta por parlamentares que têm esse tema como prioridade.
Pode ser, também, uma reação ao governo Bolsonaro?
Sem dúvida, também é um elemento. No Brasil, ainda temos uma democracia incompleta, que nunca chegou ao território de favela e periferia. Essa frágil democracia tem levado golpes ainda mais duros nos últimos anos. Sabemos que quando a democracia caminha para trás, os corpos negros são os que ficam pelo caminho. Isso gera uma reação.
A senhora vê essas pautas como uma defesa apenas da esquerda?
São pautas dos Direitos Humanos, não deveriam ser unicamente da esquerda. O racismo não é uma questão de conjuntura política, foram mais de 300 anos de escravidão no País. Acredito que não tem como superar o racismo sem superar as desigualdades sociais, e quem encampa essa luta, hoje, é a esquerda.
Projetos que tratam sobre esse tema são apensados ou ficam muito tempo à espera de um parecer. Há uma demora excessiva em relação a esse tipo de matéria?
Infelizmente, no Brasil, convivemos com o mito da democracia racial. Não há disposição para enfrentar esses temas porque não há reconhecimento de que o racismo existe. Na Câmara, há uma bancada feminina porque se reconhece uma desigualdade de gênero, mas não acontece o mesmo quanto ao debate étnico-racial. Infelizmente, as pautas que envolvem essas questões são invisibilizadas. Isso reflete o racismo estrutural.
É a falta de apoio dos demais partidos que atrasa esse processo?
Sim. Como não se reconhece o racismo, muitos pensam: ‘não vou apoiar essa besteira’.
Um dos projetos apensados de sua autoria é o que tenta proibir monumentos e homenagens a traficantes de escravos. Esse projeto abre um debate sobre a história nacional? O deputado Eduardo Bolsonaro, por exemplo, fez um discurso rebatendo suas críticas a Pedro Álvares Cabral.
Eduardo Bolsonaro não conhece a história do Brasil. Isso é desconhecer a história da colonização, o que é lamentável. Projetos como esse nos ajudam a produzir memória, e sem memória não se produz verdade nem justiça. Você não pode apresentar assassinos, estupradores e traficantes de escravos como heróis.
A senhora sofre racismo no dia a dia da Câmara? Fotos suas mostram que a sra. tem o costume de usar turbante, por exemplo. Isso já foi um problema?
Sem dúvida. Não só o turbante, mas também quando usamos cabelo black, trança, por exemplo. Há um olhar de estranhamento ou uma caracterização como exótico. Não é exótico, somos a maioria do povo brasileiro. Já perdi as contas de quantas vezes fui barrada (na entrada da Câmara), mesmo com broche de deputada, porque não tenho uma aparência considerada de parlamentar. Geralmente, são homens brancos. Fui barrada na minha própria posse. Eu estava com vestido colorido, cabelo cheio, e a segurança me perguntou: ‘Está indo para a posse de quem? Cadê o convite?’. Falei algumas vezes que era a minha posse, que eu sou deputada, mas ela não estava entendendo, até que veio uma assessora minha, branca, e milagrosamente ela ouviu. Isso, para mim, foi um marco do que eu passaria a viver na Câmara. Já fui barrada no elevador, na porta da Câmara, do plenário. Não é culpa dos trabalhadores, dos agentes de segurança, mas sim estrutural. É preciso haver treinamento antirracista nas instituições. Também já fui chamada de louca, barraqueira, favelada.
Quem te chamou dessas coisas?
Foi na CCJ em 2019, mas não vou me lembrar quem foi.
A senhora considera, então, que a Câmara é um ambiente hostil?
Sim. Hostil, violento e não seguro. O presidente da Casa (Arthur Lira), quando os indígenas estavam protestando, disse que eles estavam usando drogas e que iam invadir o Congresso. Eles estavam fazendo rituais largamente documentados pela antropologia. Dizer que indígenas querem invadir é atribuir a eles uma característica de selvagens. Isso não é racismo? Ele, inclusive, não gostou quando apontei. As pessoas se incomodam quando são apontadas como racistas, mas não precisa xingar alguém de macaco para ser racista. Isso é a expressão explícita, gritante, mas o racismo está nos atos mais simbólicos, como descrever o uso de tranças como exótico, como chamar um ritual indígena de uso de drogas.
A senhora já sofreu ameaças, inclusive.
É um horror. Não vou à padaria sem escolta. Essa foi a vida que acabou sendo necessária diante dos diferentes níveis de ameaça que sofri. Já faz um tempo, então acabo tentando me adaptar. Antes, quando era vereadora em Niterói, podia ir de bicicleta para a Câmara Municipal. Hoje, para sair de casa, saio com a polícia legislativa, em carro blindado.
Há apoio da população sobre o tema do racismo?
Acredito que, cada vez mais, cresce a luta antirracista. Isso vai ganhando força no conjunto da sociedade. Infelizmente, está muito longe de ser algo que mobilize todo o mundo. Como pode um bebê de um ano e meio ser vítima de uma bala perdida, que sempre acha o corpo preto? E a vida segue normal, o Brasil não para por isso. Episódios como esse deveriam mobilizar de forma incansável a população.
Cresce apoio, mas também resistência sobre essas pautas.
Lamentavelmente, sim. Temos um governo que autoriza e legitima a violência racista, não apenas ao não enfrentar o racismo, como também ao praticá-lo desde a campanha. Isso tira do armário, destranca o porão do racismo. Antes, as pessoas tinham vergonha de serem racistas.
Talíria, uma das parlamentares que mais apresentaram projetos contra o racismo nesta legislatura, diz não haver disposição da Câmara para debater esse tema porque não há, segundo ela, reconhecimento de que o problema existe. É o que ela chama "mito da democracia racial", um conceito que nega a existência do racismo para reduzi-lo a uma pauta simplesmente ideológica.
A deputada começou a carreira política como vereadora em Niterói, em 2016. À época, sua candidatura foi encorajada pela amiga Marielle Franco, que se elegeu para a Câmara Municipal do Rio no mesmo ano. Talíria já foi ameaçada de morte e só sai de casa com proteção da polícia legislativa, em veículos blindados.
Leia os principais trechos da entrevista da deputada ao Estadão:
O Estadão identificou que a atual legislatura tem mais proposições com a temática do racismo que a anterior. A que a senhora atribui esse aumento?
Acredito que, embora ainda não haja um número significativo de negros no Congresso, temos, hoje, parlamentares negros, principalmente mulheres, que se elegeram com a pauta antirracista como prioridade. Áurea Carolina (PSOL-MG), eu, por exemplo. No momento em que um parlamentar negro é eleito, isso se reflete na produção legislativa. Há uma bancada antirracista composta por parlamentares que têm esse tema como prioridade.
Pode ser, também, uma reação ao governo Bolsonaro?
Sem dúvida, também é um elemento. No Brasil, ainda temos uma democracia incompleta, que nunca chegou ao território de favela e periferia. Essa frágil democracia tem levado golpes ainda mais duros nos últimos anos. Sabemos que quando a democracia caminha para trás, os corpos negros são os que ficam pelo caminho. Isso gera uma reação.
A senhora vê essas pautas como uma defesa apenas da esquerda?
São pautas dos Direitos Humanos, não deveriam ser unicamente da esquerda. O racismo não é uma questão de conjuntura política, foram mais de 300 anos de escravidão no País. Acredito que não tem como superar o racismo sem superar as desigualdades sociais, e quem encampa essa luta, hoje, é a esquerda.
Projetos que tratam sobre esse tema são apensados ou ficam muito tempo à espera de um parecer. Há uma demora excessiva em relação a esse tipo de matéria?
Infelizmente, no Brasil, convivemos com o mito da democracia racial. Não há disposição para enfrentar esses temas porque não há reconhecimento de que o racismo existe. Na Câmara, há uma bancada feminina porque se reconhece uma desigualdade de gênero, mas não acontece o mesmo quanto ao debate étnico-racial. Infelizmente, as pautas que envolvem essas questões são invisibilizadas. Isso reflete o racismo estrutural.
É a falta de apoio dos demais partidos que atrasa esse processo?
Sim. Como não se reconhece o racismo, muitos pensam: ‘não vou apoiar essa besteira’.
Um dos projetos apensados de sua autoria é o que tenta proibir monumentos e homenagens a traficantes de escravos. Esse projeto abre um debate sobre a história nacional? O deputado Eduardo Bolsonaro, por exemplo, fez um discurso rebatendo suas críticas a Pedro Álvares Cabral.
Eduardo Bolsonaro não conhece a história do Brasil. Isso é desconhecer a história da colonização, o que é lamentável. Projetos como esse nos ajudam a produzir memória, e sem memória não se produz verdade nem justiça. Você não pode apresentar assassinos, estupradores e traficantes de escravos como heróis.
A senhora sofre racismo no dia a dia da Câmara? Fotos suas mostram que a sra. tem o costume de usar turbante, por exemplo. Isso já foi um problema?
Sem dúvida. Não só o turbante, mas também quando usamos cabelo black, trança, por exemplo. Há um olhar de estranhamento ou uma caracterização como exótico. Não é exótico, somos a maioria do povo brasileiro. Já perdi as contas de quantas vezes fui barrada (na entrada da Câmara), mesmo com broche de deputada, porque não tenho uma aparência considerada de parlamentar. Geralmente, são homens brancos. Fui barrada na minha própria posse. Eu estava com vestido colorido, cabelo cheio, e a segurança me perguntou: ‘Está indo para a posse de quem? Cadê o convite?’. Falei algumas vezes que era a minha posse, que eu sou deputada, mas ela não estava entendendo, até que veio uma assessora minha, branca, e milagrosamente ela ouviu. Isso, para mim, foi um marco do que eu passaria a viver na Câmara. Já fui barrada no elevador, na porta da Câmara, do plenário. Não é culpa dos trabalhadores, dos agentes de segurança, mas sim estrutural. É preciso haver treinamento antirracista nas instituições. Também já fui chamada de louca, barraqueira, favelada.
Quem te chamou dessas coisas?
Foi na CCJ em 2019, mas não vou me lembrar quem foi.
A senhora considera, então, que a Câmara é um ambiente hostil?
Sim. Hostil, violento e não seguro. O presidente da Casa (Arthur Lira), quando os indígenas estavam protestando, disse que eles estavam usando drogas e que iam invadir o Congresso. Eles estavam fazendo rituais largamente documentados pela antropologia. Dizer que indígenas querem invadir é atribuir a eles uma característica de selvagens. Isso não é racismo? Ele, inclusive, não gostou quando apontei. As pessoas se incomodam quando são apontadas como racistas, mas não precisa xingar alguém de macaco para ser racista. Isso é a expressão explícita, gritante, mas o racismo está nos atos mais simbólicos, como descrever o uso de tranças como exótico, como chamar um ritual indígena de uso de drogas.
A senhora já sofreu ameaças, inclusive.
É um horror. Não vou à padaria sem escolta. Essa foi a vida que acabou sendo necessária diante dos diferentes níveis de ameaça que sofri. Já faz um tempo, então acabo tentando me adaptar. Antes, quando era vereadora em Niterói, podia ir de bicicleta para a Câmara Municipal. Hoje, para sair de casa, saio com a polícia legislativa, em carro blindado.
Há apoio da população sobre o tema do racismo?
Acredito que, cada vez mais, cresce a luta antirracista. Isso vai ganhando força no conjunto da sociedade. Infelizmente, está muito longe de ser algo que mobilize todo o mundo. Como pode um bebê de um ano e meio ser vítima de uma bala perdida, que sempre acha o corpo preto? E a vida segue normal, o Brasil não para por isso. Episódios como esse deveriam mobilizar de forma incansável a população.
Cresce apoio, mas também resistência sobre essas pautas.
Lamentavelmente, sim. Temos um governo que autoriza e legitima a violência racista, não apenas ao não enfrentar o racismo, como também ao praticá-lo desde a campanha. Isso tira do armário, destranca o porão do racismo. Antes, as pessoas tinham vergonha de serem racistas.