A possibilidade levantada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, de bloquear o Telegram poderá motivar uma disputa jurídica sobre a legalidade da operação do aplicativo no país.
O órgão eleitoral brasileiro fez contatos com o diretor-executivo da empresa, Pavel Durov, para discutir estratégias de combate à desinformação e à propagação de boatos e notícias falsas no app de troca de mensagens durante a próxima eleição brasileira. Nunca obteve uma resposta ou mesmo um contato.
Em novembro do ano passado, o Ministério Público Federal (MPF) também instaurou um inquérito civil público em São Paulo para investigar o que as principais plataformas em operação no Brasil têm feito ou deixado de fazer diante de práticas organizadas de desinformação em geral e violência no mundo digital.
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"O Telegram, até agora, foi a única plataforma que não respondeu", diz o procurador da República Yuri Corrêa da Luz.
Ele afirma que segue tentando um diálogo com a empresa.
A BBC News Brasil tentou contato com o Telegram por meio de um canal no serviço que aceita solicitações da imprensa, mas não obteve resposta.
"Os responsáveis deveriam responder aos questionamentos feitos, tal como as demais plataformas vêm fazendo. A legislação brasileira é expressa ao indicar que todas as plataformas que operam no país devem observá-la, e atender aos órgãos de controle é um dos deveres básicos que precisam ser cumpridos", disse o procurador.
O ministro Barroso, em entrevista ao jornal O Globo publicada no domingo (13/02), declarou que "nenhum ator relevante no processo eleitoral pode atuar no país sem que esteja sujeito à legislação e a determinações da Justiça brasileira. Isso vale para qualquer plataforma".
"O Brasil não é casa da sogra para ter aplicativos que façam apologia ao nazismo, ao terrorismo, que vendam armas ou que sejam sede de ataques à democracia que a nossa geração lutou tanto para construir", disse.
Barroso deixa mais uma vez claro que o bloqueio da plataforma é um dos caminhos nesse processo: "Como já se fez em outras partes do mundo, eu penso que uma plataforma, qualquer que seja, que não queira se submeter às leis brasileiras deva ser simplesmente suspensa. Na minha casa, entra quem eu quero e quem cumpre as minhas regras."
O mandato de Barroso à frente do TSE termina no dia 22 de fevereiro. Assumem os cargos de presidente e vice-presidente do tribunal os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes, respectivamente.
Mas Fachin fica na presidência até o dia 17 de agosto porque se encerra o seu período limite de dois anos dentro do TSE.
Moraes será empossado a seguir como presidente da corte. Ele é o relator do "inquérito das fake news" que investiga a divulgação de notícias falsas e ameaças a integrantes do STF. O ministro é um dos principais alvos dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.
O Telegram não tem sede nem representante legal no Brasil. Apesar de ter sido criada na Rússia, a empresa hoje tem sede em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Segundo o telejornal SBT News, a carta enviada pelo TSE ao endereço no país foi devolvida e não chegou ao destinatário.
O funcionamento do Telegram também foi colocado em xeque na Alemanha depois de ameaças de morte a políticos feitas por grupos antivacina e pela circulação de discurso de ódio por facções neonazistas em espaços do aplicativo.
Mas, diferentemente do Brasil, a plataforma respondeu aos apelos das autoridades locais, segundo o jornal Süddeutsche Zeitung. Foram bloqueados 64 canais alemães no aplicativo, incluindo um proeminente teórico da conspiração, disse a publicação, que citou fontes do departamento de segurança do governo.
No vácuo do WhatsApp
O aplicativo ganhou muitos usuários no Brasil durante o apagão operacional sofrido pelo WhatsApp em outubro de 2021, e nos episódios de anos anteriores em que o app de propriedade da Meta, ex-Facebook, foi bloqueado pela Justiça brasileira por não prestar informações.
O Telegram atinge 53% dos celulares do Brasil, segundo pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box de setembro último. Esse número é citado pelo ministro Barroso para dar dimensão da relevância do serviço no Brasil.
Uma das principais características do Telegram é a disseminação de mensagens em larga escala.
Para efeito de comparação, o WhatsApp limita os grupos a um total de 256 pessoas enquanto o concorrente permite uma capacidade máxima de 200 mil usuários.
O WhatsApp tem adotado nos últimos anos restrições para o encaminhamento de mensagens e uma postura de cooperação com autoridades diante de crises de desinformação em lugares como Brasil e Índia.
Em ambos os países foram registrados casos de linchamento por causa de notícias falsas propagadas dentro do serviço. A família de uma mulher inocente assassinada por uma turba em Guarujá (SP) está processando o WhatsApp.
Para o procurador Yuri Corrêa da Luz, há providências que podem ser adotadas para regular comportamentos indevidos.
"Soluções que diminuam a viralização de conteúdos potencialmente desinformativos ou violentos, que tragam alertas aos receptores sobre cuidados que devem ter diante de determinados temas, que suspendam contas que fazem disparos em massa são apenas alguns exemplos", diz.
"Caso o Telegram siga sem responder, ainda estão sob análise que certamente devem abarcar um sopesamento adequado de diversos aspectos da discussão sobre regulação de plataformas", complementa.
O proprietário do Telegram foi tema de um grande perfil pela revista especializada em tecnologia Wired, publicado nos últimos dias. A reportagem destaca vozes que criticam o que chamam de falta de transparência nos negócios de Pavel Durov e a atitude avessa do empresário a decisões e medidas de poderes públicos pelo mundo.
Uma de suas apostas para um modelo de financiamento com maior independência para o Telegram é a criação de uma criptomoeda própria, que teria como base os mais de 500 milhões de usuários na plataforma.
Mas a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos impediu o andamento de um primeiro projeto em 2019. Durov anunciou que vai insistir em uma nova criptomoeda para o futuro.
Batalha jurídica
Yasmin Curzi de Mendonça, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio (CTS-FGV), considera possível uma batalha jurídica à frente caso haja o banimento do Telegram no Brasil.
Segundo a pesquisadora, diversas entidades consideram que deve haver "o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção".
"Em outras palavras, se houver meio de se atingir um fim específico que não justifique a adoção de medidas mais graves, a decisão mais grave é desproporcional", diz Mendonça.
Quando o WhatsApp foi suspenso por determinação judicial, um dos argumentos contrários a medida apontava para pessoas que dependiam do aplicativo para fins profissionais e comerciais e foram prejudicadas pela suspensão total do serviço.
Outra questão que aumenta a possibilidade de um imbróglio jurídico, afirma a pesquisadora, é a falta de uma lei que estabeleça o banimento de um aplicativo no país.
O projeto de lei 2630/2020, conhecido como "PL das fake news", estabelece deveres para empresas de mensageria privada e redes sociais. Um dos pontos é a obrigação de uma representação formal no Brasil. Proibição do serviço está entre punições previstas para eventuais faltas das empresas.
O texto foi aprovado pelo Senado em junho de 2021 e ainda precisa ser votado pelos deputados federais. Depende da decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de colocar o projeto na pauta da Casa.
Segundo a assessoria do relator do texto, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), ele "está esperançoso de que possa ser apreciado em plenário" na Câmara ainda em 2022.
O ministro Barroso declarou considerar a decisão sobre o bloqueio "preferencialmente" um papel do Congresso e que também conversou com Orlando Silva sobre a importância de as plataformas terem representação no país.
Afirmou, no entanto, que "o tribunal não pode deixar de decidir por supostamente inexistir uma lei específica".
Impacto político
A pesquisadora da FGV-RJ afirma que, além das disputas nos tribunais, poderá haver impacto político forte se o Telegram for bloqueado no país.
"A campanha de candidatos que já tem uma base estabelecida na plataforma pode potencialmente ganhar ainda mais força, tendo em vista que já fazem uso da retórica de que sofrem 'perseguição por instituições corrompidas'. O mote da 'censura' ganha ainda mais tônus."
O canal do presidente Jair Bolsonaro no Telegram ultrapassou 1 milhão de inscritos no fim do ano passado e tem sido promovido nas suas lives semanais. Canais são diferentes de grupos. São listas de transmissão em que apenas o proprietário faz suas divulgações e não há limite de inscrições.
Bolsonaro fez um breve comentário sobre o caso. Em conversa perto do Palácio da Alvorada no fim de janeiro, foi questionado por um apoiador: "E o Telegram?".
"É uma covardia o que estão querendo fazer com o Brasil", respondeu ele, sem entrar em detalhes. Logo depois afirmou: "A gente está tratando disso", segundo relato do jornal Folha de S.Paulo.
Soluções além do banimento
Para Yasmin Curzi de Mendonça, da FGV-RJ, o banimento do Telegram pode trazer "um efeito de curto prazo de interrupção da cadeia de desinformação, mas no longo prazo, pode inclusive dar mais força à retórica que sustenta determinados grupos políticos e alimentar a radicalização de grupos".
Sobre soluções, a pesquisadora afirma que "não há bala de prata. A desinformação, como todo problema social complexo, talvez nunca seja resolvida por completo".
"Precisamos entender que nem sempre as pessoas vão agir racionalmente. Pessoas são movidas por ideologia e a desinformação, de qualquer campo político, tem a ver, em algum grau, com seus interesses pessoais e com sua formação psicossocial."
Ela sugere "políticas de redução de danos" como aumento dos trabalhos de checagem de notícias, educação digital nas escolas, colaboração das plataformas para pesquisa e fiscalização e o estabelecimento da legislação que regule esse campo.
O procurador da República Yuri Corrêa da Luz vai em caminho parecido e defende o "incentivo à informação qualificada - tanto pela sociedade civil quanto pelo jornalismo profissional - e, finalmente, educação digital da população, em favor de uma cultura de cuidado na obtenção de conteúdos confiáveis na rede".
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