A radicalização política no Brasil vai aumentar com a proximidade das eleições presidenciais e, mesmo que o presidente Jair Bolsonaro seja derrotado nas urnas, em outubro próximo, a extrema direita permanecerá forte no país. Na avaliação do professor Angel Alonso Arroba, vice-decano da IE School of Global and Public Affairs, com sede em Madri, na Espanha, enquanto a insegurança, a corrupção e as desigualdades sociais não forem enfrentadas com rigor, essa corrente política continuará sendo alimentada.
"O que vemos no Brasil é o esgotamento de um líder no poder, não o fim das bases, das ideias e dos valores que o levaram ao Palácio do Planalto", diz.
Para ele, o atual descontentamento com Bolsonaro tem a ver com a erosão do padrão de vida da sociedade e com a forma desastrosa com que o presidente lidou com a pandemia do novo coronavírus, permitindo que muitas vidas fossem perdidas. "Em 2018, os brasileiros estavam fartos de políticos e partidos tradicionais, após um período de turbulências. Hoje, estão fartos de Bolsonaro", enfatiza. Ele não descarta, porém, a recuperação do chefe do Executivo até o fim das disputas pela Presidência da República.
O professor reconhece que a imagem do país no exterior está péssima. E há razões de sobra para isso. "Em um momento em que os valores que o Brasil sempre encarnou no imaginário do resto do mundo eram mais necessários do que nunca, a liderança do país tem projetado mensagens e valores muito preocupantes: antivacinação, negacionismo das mudanças climáticas, populismo, ataque à diversidade e às instituições democráticas", frisa.
Alonso acredita que uma possível volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao poder resultará na retomada de políticas importantes, como o combate à pobreza, além de questões climáticas. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio.
O Brasil vai viver a mais polarizada de suas eleições presidenciais. Como vê esse processo e por que chegamos a tal grau de radicalização?
Os processos eleitorais devem ser sempre uma fonte de otimismo e celebração: é o momento em que os cidadãos elegem seus líderes, expressão máxima da soberania popular. É verdade que estamos testemunhando uma crescente radicalização nas campanhas, não somente no Brasil, mas em todo o mundo, e isto é preocupante, porque uma eleição deve ser o momento em que a comunidade nacional se junta e expressa suas preferências, em vez de aprofundar a divisão. Então, eu recomendaria que nós nos coloquemos acima dos barulhos diários e nos concentremos na beleza do debate, de confronto de opiniões e respeitando os resultados das urnas.
A questão não é tanto a polarização, que reflete as crescentes divergências sociais, econômicas e ideológicas em nossos países, mas a segurança de que o sistema resista a essas divergências e elas não afetem a robustez das nossas instituições e do processo eleitoral. É verdade que temos testemunhado importantes desafios em recentes anos em alguns países, incluindo o desafio dos resultados ou a relutância em facilitar uma suave transição do poder. Mas, no fim das contas, a ordem constitucional democrática prevaleceu. Estou esperançoso de que nós veremos o mesmo com os resultados das eleições no Brasil, não importa o barulho que vejamos ao longo da campanha.
O senhor disse que o processo de polarização não é exclusividade do Brasil. É possível voltar a tempos de normalidade?
Para começar, vivemos isso nos Estados Unidos, que têm sido um farol da estabilidade democrática. Nós também vemos isso em outros países, inclusive na Europa, onde certos líderes usam o endosso da vitória nas eleições para atacar as instituições democráticas, as liberdades civis e a imprensa livre, além de estimular a divisão de poder. É possível voltarmos ao que chamamos de "tempos de normalidade"? Não e sim. Não, porque existe o que eu chamaria de tempos normais: todos os períodos têm os seus desafios e as suas especificidades. Não há volta ao passado. Então, temos de repensar as políticas e os contratos sociais que mantêm a população unida em uma era com diferentes desafios do que tínhamos antes. Mas, ao mesmo tempo, sim.
Eu espero que nós possamos recuperar alguma "normalidade" no sentido de reduzir decibéis da raiva, da polarização e da divisão que nós vemos na atual arena política. No entanto, isso requer políticas ousadas e a transformação de nossas economias, dos nossos sistemas de produção, dos nossos padrões de consumo... Essa transição não será fácil. Para entregar inclusão e sustentabilidade, para reconstruir a cola que une nossas sociedades, aqueles que estão no topo precisarão fazer sacrifícios, e os que estão na base da pirâmide deverão fazer o exercício da paciência.
Muito desse processo de radicalização se deu por conta do crescimento da extrema direita. Esse processo é irreversível? Por quê?
Temos testemunhado o crescimento da extrema direita no Brasil e em muitos países da América Latina, assim como na Europa. Na Espanha, onde muitos pensavam que nós estávamos imunes a esse movimento, um partido político como o Vox emergiu no cenário político. O que devemos notar é que também vimos o avanço da extrema esquerda, e isso polarizou o espectro político, dando como resposta a ascensão da extrema direita. Não acredito que nenhum processo seja irreversível. O curso da história é marcado por oscilações desse tipo.
A questão-chave é quanto dano essa radicalização causará em nossos países, como vimos no crescimento da extrema direita na Europa nos anos de 1930 e na América Latina durante os anos de 1960 e 1970, por meio de golpes militares. O que está claro é que o melhor caminho para reverter essa tendência é não focar nos efeitos, mas atacar as causas profundas que nutrem a extrema direita: medo, decepção, insatisfação, desafeto...
Como o senhor avalia o governo de Jair Bolsonaro?
A avaliação final de qualquer governo deve ser baseada em fatos: contribuiu para melhorar a vida das pessoas? É verdade que a pandemia e seus efeitos disruptivos na economia mundial tiveram um impacto tremendo na habilidade dos governos para navegar nos anos recentes, mas já podemos determinar quais fizeram um trabalho melhor. O Brasil viu uma erosão no padrão de vida: o Produto Interno Bruto (PIB) caiu, o desemprego está em níveis semelhantes de quando o presidente Jair Bolsonaro assumiu o governo (tendo aumentado consideravelmente durante a metade do mandato), a inflação está alta...
E, mais preocupante, a reversão da tendência de queda da pobreza que vínhamos vendo, resultado das mudanças de políticas. Nós todos também vimos as respostas iniciais de Bolsonaro à COVID-19, com políticas erráticas, que resultaram em perdas desnecessárias de muitas vidas. Foi um período difícil para muitos países? Sim. Tem sido agravado no Brasil pelas políticas do atual governo? Sim. Além disso, Bolsonaro falhou na execução de várias reformas estruturais que ele havia prometido. Mais: estamos vendo um declínio das liberdades civis, um ataque aos Poderes constitucionais, o questionamento do Judiciário... E o que dizer de sua política de preservação ambiental? Então, temo que não seja um balanço positivo o que será deixado nesses últimos quatro anos.
O fato de as pesquisas eleitorais mostrarem uma enorme rejeição ao governo Bolsonaro indica um arrependimento dos brasileiros por terem aberto as portas à extrema direita ou não?
Eu não qualificaria isso como uma rejeição à extrema direita em si, mas, sim, uma rejeição ao próprio Bolsonaro e à incapacidade de seu governo de entregar. Não esqueçamos que ele venceu por mais de 10 pontos percentuais sobre (Fernando) Haddad no segundo turno das eleições de 2018, e ele chegou perto dos 50% do total de votos no primeiro turno. Os brasileiros estavam fartos do estado de políticos e partidos tradicionais, após um período de turbulências.
Hoje, eles estão fartos de Bolsonaro, e ele está atrás de Lula (nas pesquisas) entre 10 e 20 pontos, dependendo do instituto. Mas eu não qualificaria isso como uma rejeição da extrema direita e de suas ideias. Sempre haverá possibilidade de Bolsonaro renascer. O que vemos no Brasil é o esgotamento de um líder no poder, não o fim das bases, das ideias e dos valores que o levaram ao Planalto.
Uma derrota de Bolsonaro significa o fim da extrema direita no Brasil ou veremos se repetir o que ocorre nos EUA, onde Donald Trump continua forte e controlando o Partido Republicano?
Como eu disse, não acho que a potencial perda da eleição significará o fim da extrema direita no Brasil. Pode levar ao fim da vida política de Bolsonaro (ou não, pois políticos podem ter muitas vidas e retornarem), mas a extrema direita continuará forte enquanto não enfrentarmos as questões que a alimentam: desigualdade, insegurança, corrupção... Porém, o caso é muito diferente do de Trump, porque o ex-presidente capturou o aparato político do Partido Republicano, e isso é o que deu a ele força e oxigênio para uma potencial volta ao poder. Eu não vejo Bolsonaro sendo capaz de capitanear uma máquina semelhante se ele perder as eleições.
As pesquisas indicam uma possível vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. O que será a volta da esquerda ao poder no maior país da América Latina?
Se o ex-presidente Lula retornar ao poder, será diferente de seus mandatos anteriores. Ele é um líder experiente, que aprendeu muito com sua experiência no governo e passou por uma jornada pessoal traumática no período em que esteve na prisão. É forte, sábio e está mais resiliente. Serão 20 anos depois da primeira vez em que chegou ao Planalto, e o mundo também será muito diferente. Nós estamos na era do pós-pandemia, não do 11 de Setembro de 2001. Quando Lula chegou ao poder em 2003, ele veio como um heterodoxo, um ex-sindicalista que preocupava um continente profundamente dividido pela onda bolivariana liderada por Hugo Chávez.
Hoje, nós sabemos que ele pode governar com responsabilidade e senso comum, com resultados positivos em termos de avanço do crescimento inclusivo e sustentável, de combate à pobreza e à desigualdade. A esquerda, hoje, na América Latina está mais madura e razoável, está pronta para promover reformas radicais, mas sem defender uma ruptura das instituições ou aprofundamento das divisões sociais. Nós vemos isso com Boric, no Chile; com Fernández, na Argentina; com Arce, na Bolívia.
Acho que um potencial governo Lula vai seguir nessa linha e pode se tornar uma referência para uma nova esquerda na América Latina, cujos discurso e agenda estão mais sintonizados com as expectativas da população do que 20 anos atrás, quando o neoliberalismo ainda não tinha sofrido o impacto da crise financeira de 2008: redução da pobreza e da desigualdade, mudanças climáticas, educação e oportunidades. Lula já puxou essa agenda no passado, e eu estou certo de que ele a recuperaria de forma muito natural e razoável para o Brasil.
Mesmo com todas as incertezas na política e com a economia flertando com a recessão, o Brasil e os principais países da América Latina estão recebendo volumes expressivos de recursos estrangeiros. O que está acontecendo?
Estamos vendo uma recuperação natural após o choque causado pela pandemia, após uma grave interrupção nas cadeias de valor globais e a necessidade de aumentar a oferta global em resposta à reativação da demanda agregada. No entanto, devemos olhar para o quadro maior, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Quantitativamente, a Cepal já alertou que as multinacionais estrangeiras desaceleraram seus investimentos na região e, se olharmos os dados dos últimos meses, o investimento estrangeiro direto (IED) em países como o Brasil ainda é 2/3 do nível pré-pandemia e menos da metade do que era há uma década.
Do lado qualitativo, devemos olhar para onde está indo esse investimento, pois há uma dependência excessiva dos recursos naturais e uma manifesta incapacidade de diversificação. Devemos também olhar para a sua origem e se esse investimento é volátil ou não. O recente Panorama Econômico da América Latina, publicado pelo Centro de Desenvolvimento da OCDE, Cepal, CAF e União Europeia sinaliza que uma recuperação robusta e inclusiva exige maior integração produtiva e investimentos em setores estratégicos. É para lá que o investimento estrangeiro deve ir.
Como a Europa vê o Brasil hoje? Há uma cobrança enorme em relação à questão ambiental, com ameaças de embargo a produtos brasileiros. Até que ponto as ameaças podem se tornar realidade?
Acho que a Europa está em uma posição de "esperar para ver" em relação ao Brasil, ciente dos meses importantes que se avizinham e do ciclo político que o país já está entrando, com a aproximação das eleições. A relação passou por momentos mais difíceis, principalmente em 2019, com as fortes tensões bilaterais entre Paris e Brasília, que adquiriram um tom muito pessoal entre os dois presidentes, Macron e Bolsonaro.
Mas, sem dúvida, o cenário global mudou, e a mudança de liderança em Washington também privou Bolsonaro de um forte aliado que alavancou em sua relação com Bruxelas (sede da UE). Ele podia desafiar a Europa em áreas como política ambiental e preservação da Amazônia, porque sentia que tinha o apoio do presidente Trump.
Agora, as coisas mudaram: Bolsonaro perdeu esse apoio, e a perspectiva de uma mudança de liderança no Brasil é percebida positivamente na maioria das capitais europeias. Ao mesmo tempo, a Europa tem que mostrar progressos em áreas como a ratificação do acordo UE-Mercosul, e não fazê-lo pode manchar ainda mais as relações bilaterais no futuro, independentemente de quem seja o próximo presidente brasileiro.
Acredita na reconstrução da imagem do Brasil no mundo?
Acredito que o Brasil pode recuperar sua posição no mundo, assim como a imagem de otimismo, frescor e alegria que sempre o caracterizou. Líderes vêm e vão, mas o espírito de um país e de seu povo é resiliente. Os últimos quatro anos também coincidiram com um período difícil e obscuro para a humanidade, marcado pela pandemia.
Infelizmente, num momento em que os valores que o Brasil sempre encarnou no imaginário do resto do mundo eram mais necessários do que nunca, a liderança do país tem projetado mensagens e valores muito preocupantes: antivacinação, negacionismo das mudanças climáticas, populismo, ataque à diversidade e às instituições democráticas...
O país tem todos os elementos para recuperar sua imagem no mundo: pessoas talentosas, uma economia com força e potencial extraordinários, recursos naturais e dotes únicos. Tem, ainda, alguns dos mais respeitados, profissionais e eficientes serviços estrangeiros no mundo. E pouquíssimos países têm uma marca global tão facilmente reconhecível e percebida positivamente. Só precisa capitalizar todos esses pontos fortes.
Estamos diante de iminente guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Que impactos isso pode ter sobre a economia mundial?
Estamos brincando com fogo, e as consequências de uma guerra na Ucrânia são imprevisíveis. Quem sofreria mais? Obviamente, os ucranianos, que teriam uma guerra em seu solo, mas também a Rússia, que enfrentaria os EUA e a Europa. No entanto, em última análise, não se trata de quem sofre mais: em um conflito, todas as partes acabam perdendo, incluindo o resto do mundo. É claro que os efeitos na economia global seriam enormes, num momento em que estávamos nos recuperando da pandemia. Mas eu me preocupo ainda mais com a segurança humana básica.