Jornal Estado de Minas

CONFLITO DE PODERES

Questionar independência do Judiciário faz parte de cartilha autoritária, diz especialista



Nos últimos anos, o Brasil experimentou uma série de conflitos entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o Poder Judiciário, personificado na figura dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). A pouco mais de seis meses das eleições presidenciais, o vice-presidente de programas da organização sem fins lucrativos Freedom House, Gerardo Berthin, alerta que os questionamentos sobre a independência do Judiciário fazem parte de uma espécie de "cartilha" usada em regimes autoritários.





"Questionar a independência e a neutralidade do Judiciário faz parte da cartilha quando você está fortalecendo um regime mais autoritário", disse Berthin em entrevista à BBC News Brasil.

Berthin é especialista em governança democrática e atua na Freedom House, em Washington, DC (EUA). A instituição é uma organização não-governamental de viés liberal que faz o monitoramento do ambiente democrático em 185 países. Um dos seus produtos mais conhecidos é o relatório "Liberdade no Mundo", divulgado anualmente.

O relatório analisa quão livres são os países, com base em critérios como direitos civis e políticos e liberdade de expressão. As notas vão de 0 a 100 - quanto maior a pontuação, mais livre é o país.

Os dados da Freedom House são usados por acadêmicos e instituições ao redor do mundo como indicadores sobre a saúde da democracia em países governados tanto por políticos de esquerda quanto de direita.





Para o Brasil, no entanto, as notícias não são boas. Desde 2016, a nota do país vem caindo. Naquele ano, o Brasil atingiu a nota 81, o que o colocava no grupo das nações consideradas livres.

Em 2022, a nota chegou a 73, somente três pontos acima do mínimo para que um país seja considerado livre. Abaixo de 70, os países são classificados como "parcialmente livres". Nesta categoria, estão nações como Bolívia, Colômbia e Mauritânia.

À BBC News Brasil, Berthin afirmou que a queda no ambiente democrático no Brasil é uma das mais acentuadas nas Américas, comparável à da Venezuela, que não é considerado um país livre pela organização. Ele diz que as críticas feitas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) ao sistema eleitoral e as avaliações de alguns de que ele poderia não aceitar o resultado das eleições caso saia derrotado em outubro são motivo de preocupação.


Gerardo Berthin é vice-presidente de programas internacionais da Freedom House. Ele é especialista em governança democrática (foto: Freedom House)

Ele diz que as eleições brasileiras serão monitoradas de perto e afirma ainda que uma possível ruptura democrática no país teria efeitos não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.





Confira os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - A Freedom House é famosa pelo ranking sobre a democracia no mundo. De acordo com ele, a pontuação do Brasil está ficando cada vez menor desde pelo menos 2016. Em 2017, era 79 e agora é 73. Por que isso aconteceu?

Gerardo Berthin - O Brasil ainda é classificado como um país livre pela Freedom House, mas se você olhar comparativamente, ele está lá atrás, muito perto dos países considerados parcialmente livres das Américas. Estamos preocupados, principalmente, com questões relacionadas à liberdade de expressão online, que tem diminuído consistentemente nos últimos anos, particularmente no que diz respeito a ativistas e jornalistas. Eles estão enfrentando cada vez mais investigações criminais, particularmente por criticar o atual governo

Neste ano em particular, a nota caiu um ponto por causa das restrições à liberdade acadêmica Há vários relatos que surgiram sobre instituições federais e universidades públicas sendo ameaçadas para demitir pesquisadores depois que eles questionaram e criticaram o governo. O ato mais notável ocorreu no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Eles demitiram o diretor, Ricardo Galvão, provavelmente, por ter desafiado o presidente Bolsonaro.

BBC News Brasil - O Brasil terá eleições neste ano. A comunidade internacional está preocupada com a forma como esse processo ocorrerá aqui?

Gerardo Berthin - Temos duas eleições cruciais sendo monitoradas. Uma delas é na Colômbia, em maio. A outra é no Brasil. E há algumas preocupações sobre se Bolsonaro e seus aliados ou seus apoiadores voltarão a inundar o ambiente online com desinformação, como fizeram em 2018. Isso pode ameaçar a integridade da eleição.

Além disso, por muitas vezes, o regime de Bolsonaro também deu a entender que não reconhecerá o resultado das eleições se ele perder, mais ou menos como Donald Trump fez em 2020. Estamos observando isso de perto. Não vamos esquecer que Bolsonaro atacou a legitimidade das instituições eleitorais. Ele enviou uma emenda constitucional sobre o voto impresso e assinou um decreto que proibia as redes sociais de remover informações relacionadas a eleições. Mesmo que essas tentativas tenham falhado, sabemos que essas medidas teriam dado legitimidade a alegações infundadas de fraude e poderiam aumentar o potencial de intimidação dos eleitores.





BBC News Brasil - Quão fortes são as preocupações sobre uma possível ruptura democrática no Brasil a depender dos resultados das eleições?

Gerardo Berthin - Estamos vendo tendência global de mudança para regimes mais autoritários. Acho que o Brasil faz parte dessa tendência. Se você olhar a análise da Freedom House na última década, há dois países na América do Sul que realmente perderam pontos em relação aos direitos civis e políticos. Um deles é a Venezuela, que é considerada não-livre pela Freedom House. O outro é o Brasil. É claro que existem outros países na América do Sul que são considerados parcialmente livres: Bolívia, Colômbia e Paraguai, por exemplo. Mas esses dois países, Venezuela e Brasil, estão mostrando os declínios mais profundos nos direitos civis e políticos da última década. É preocupante ver o que está acontecendo.


Bolsonaro durante discurso para apoiadores em Brasília em ato de 7 de setembro (foto: REPRODUÇÃO/FACEBOOK)

BBC News Brasil - Na sua opinião, o presidente Bolsonaro já fez algum tipo de ameaça às instituições democráticas do país durante o seu mandato?

Gerardo Berthin - Acho que sim. Desde 2019, nossos relatórios têm documentado isso, particularmente em relação à restrição de direitos políticos e liberdades civis. Isso se reflete nesse declínio da pontuação do país. Como mencionei antes, existe essa a questão da liberdade de expressão, particularmente em relação aos defensores dos direitos humanos, ativistas e jornalistas. Também há as restrições à liberdade acadêmica e essa tentativa de limitar as empresas de mídia social em sua capacidade de fazer cumprir seus próprios termos de serviços. Se você analisar esses incidentes e essas evidências, há um risco de que Bolsonaro talvez não entenda totalmente que as eleições precisam ser livres e transparentes. Há uma demonstração de que talvez ele possa não estar disposto a apoiar eleições justas e transparentes que virão em outubro.

BBC News Brasil - E quais seriam as consequências para o Brasil se os resultados das eleições não fossem respeitados?

Gerardo Berthin - Essa é uma pergunta interessante. O jogo geopolítico será importante. Talvez essa seja uma das razões pelas quais há alianças sendo feitas com a Rússia. Lembre-se que o presidente Bolsonaro visitou o presidente Vladimir Putin algumas semanas antes da invasão da Ucrânia. O outro fator geopolítico é a China. O Brasil também tem relações crescentes com a China. Existem alguns instrumentos regionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), que pode aplicar a Carta da Democracia se isso acontecer. Certamente, os Estados Unidos reagiriam. Isso seria muito preocupante porque o Brasil não é apenas um líder regional por seu tamanho e sua história, mas também é um líder global. E o que quer que aconteça no Brasil, não só afetará seus vizinhos, particularmente aqueles que já estão tendo alguns problemas como Bolívia, Peru e talvez Colômbia, mas também afetaria fatores geopolíticos em todo o mundo. A ONU também será outro ator muito importante na reação se de fato algo assim acontecer.





BBC News Brasil - Considerando as últimas décadas, este é o momento de maior preocupação em relação à saúde da democracia brasileira? Essas eleições são um momento decisivo?

Gerardo Berthin - O que aprendemos é que o retrocesso da democracia, a menos que seja feito por um golpe de estado, é um processo gradual e incremental. O que estamos vendo no Brasil são os primeiros indícios de que há um retrocesso sustentado da democracia desde 2016. O que irá acontecer a partir de agora dependerá de quão fortes são as instituições que defenderão a democracia como, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, os órgãos eleitorais, etc.

Se esse é o último respiro da democracia no Brasil? Ainda não é possível dizer porque ainda existem algumas forças boas por aí. Há forças democráticas que podem impedir que essas eleições sejam as últimas. Mas, como eu disse, as democracias tendem a morrer muito gradualmente e, por conta de todas as indicações e evidências que eu mencionei, o Brasil está lentamente recuando em seu progresso democrático.

BBC News Brasil - Alguns analistas afirmam que o presidente Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva são radicais e que uma vitória de qualquer um deles colocaria a democracia no Brasil em perigo. O senhor vê os dois como radicais?

Gerardo Berthin - Eu diria que mais do que radicais, eles estão na extremidade oposta do espectro político. Uma das coisas que vimos em todo o mundo é que essa classificação entre esquerda e direita não faz mais sentido. Basta ver que, na França, muitas das posições da extrema direita também estão presentes nas respostas apresentadas pela esquerda. No Brasil, eles (Bolsonaro e Lula) são dois pontos que estão polarizando e não há nada no meio. Muito provavelmente, muitos países estão sofrendo com isso porque não há um centro forte. Ambos os candidatos precisam se pronunciar mais ativamente a favor dos valores democráticos. Se eles não forem capazes de fazer isso, certamente a polarização vai continuar e sabemos que ela não é boa.





BBC News Brasil - Falamos bastante sobre o papel desempenhado pelo presidente Bolsonaro, mas a nota do Brasil no ranking da democracia começou a cair antes de ele assumir o governo. Quais as responsabilidades de outros partidos e atores políticos em relação a isso?

Gerardo Berthin - A dinâmica nacional é importante em todos os países. Certamente, há algumas coisas que eles podem fazer. E uma das maneiras de renovar e reformar nossa democracia é também garantir que os partidos políticos sejam renovados, que eles realmente representem os interesses daqueles que são mais vulneráveis ou marginalizados para evitar termos uma eleição na qual você precisa escolher entre dois males, como foi também o caso do Peru, recentemente. O Brasil e outros precisam proteger eleições livres e justas. A integridade das eleições é muito importante para fortalecer essas instituições. Mas, com certeza, temos que começar a renovar os sistemas e processos políticos que não foram renovados ou melhorados desde que fizemos a transição para as democracias no final dos anos 1980.

BBC News Brasil - O senhor disse que os peruanos tiveram que escolher entre dois males. O senhor acredita que a escolha entre Bolsonaro e Lula é uma escolha entre dois males?

Gerardo Berthin - Provavelmente, não. Eu não usaria isso no caso do Brasil, mas certamente é uma escolha entre dois extremos.

BBC News Brasil - O ex-presidente Lula tem falado sobre a necessidade de regulamentar a mídia no Brasil. Isso lhe preocupa?

Gerardo Berthin - Muitos países estão tratando esse dilema em termos de como lidar com a evolução empoderadora das empresas de mídia social. Acabamos de ver Elon Musk comprando o Twitter. Não há uma solução mágica porque você precisa equilibrar, por um lado, a liberdade de expressão com a proteção dos direitos humanos, mas também precisa ter alguma forma de regulamentação. Esse será o tema da próxima década, já que essas empresas começam a ter mais poder do que muitos estados e estão orientando algumas políticas que estão afetando negativamente as pessoas. Estou feliz que ele esteja falando sobre isso. Espero que ele tenha boas soluções para isso.





BBC News Brasil - Recentemente, o presidente Bolsonaro contrariou uma decisão do Supremo Tribunal Federal e perdoou um parlamentar condenado em um caso que investigava atos antidemocráticos. Como você avalia isso?

Gerardo Berthin - Não estou familiarizado com isso nesse caso em particular. Não sei se eu poderia comentar.


Equipe de segurança do Supremo esteve em peso no prédio, por causa do temor de ataques e invasões durante o último 7 de setembro (foto: EPA)

BBC News Brasil - No Brasil, há muitas críticas sobre o papel desempenhado pelo Judiciário. Alguns aliados de Bolsonaro e até mesmo o presidente dizem que o Judiciário vem interferindo dentro do governo. Na sua opinião, o Judiciário brasileiro vem adicionando mais pressão ao cenário político?

Gerardo Berthin - Em geral, é bom ter poderes independentes. Esse conceito de freios e contrapesos é muito importante para garantir que nem o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário tenham mais poder do que os outros e que eles verifiquem a ação um do outro. O Brasil é um sistema federativo com um presidente muito poderoso. Dessa forma, ter um judiciário que possa interpretar a lei e ser justo e transparente é sempre muito importante.

BBC News Brasil - Como o senhor vê os conflitos entre o atual governo e o Judiciário?

Gerardo Berthin - Questionar a independência e a neutralidade do Judiciário faz parte da cartilha quando você está fortalecendo um regime mais autoritário.





BBC News Brasil - O senhor acredita que o presidente Bolsonaro está se comportando de acordo com essa cartilha?

Gerardo Berthin - Acho que há intenção. Agora, se isso se traduziria em ações nós precisamos ver. Entretanto, minar o estado de direito enfraquece a independência judicial.

BBC News Brasil - O senhor trabalha com a possibilidade de o presidente Bolsonaro não entregar o governo caso ele perca as eleições?

Gerardo Berthin - Bem... ele já falou sobre isso, na verdade. E o que estamos descobrindo, por exemplo, no caso dos Estados Unidos, é que isso era uma possibilidade com Trump. E o que evitou que isso acontecesse foi a força das instituições e a força dos indivíduos que continuam a acreditar nos valores democráticos. Esperamos que mesmo que sua (Bolsonaro) intenção seja fazer isso, que as instituições brasileiras estejam à altura da ocasião, que os verdadeiros democratas estejam à altura da ocasião e defendam a democracia contra alguém que não concorda com os resultados da eleição.

BBC News Brasil - O senhor classificaria o presidente Bolsonaro como um democrata?

Gerardo Berthin - Ele mostrou muitos traços autoritários, em certo sentido. Se ele fizer outro movimento, a opção nuclear (se negar a aceitar o resultado das eleições) então, provavelmente, ele se revelaria. Até agora, ele está caminhando sobre uma linha tênue e esperamos que ele continue sobre essa linha até depois das eleições.





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