Jornal Estado de Minas

HISTÓRIA

A primeira Carta aos Brasileiros escrita há 45 anos inspirou novo manifesto



“Estávamos em 1977. Vivíamos o 13º ano de chumbo da ditadura militar. Havia em mim um sonho. Um sonho? O que em mim fervilhava era muito mais do que um sonho. Era um almejo ardente, um anhelo dominante. Era uma ideia arrebatadora. Era um projeto: o projeto de uma proclamação desassombrada, incontido desabafo de minha alma, reflexo da alma flagelada de meu país. Era uma conjectura: a conjectura de um manifesto revolucionário, brado carismático por liberdade e pelo Estado de Direito.



Das Arcadas do Largo de São Francisco, do Território Livre da Academia de Direito de São Paulo, eu queria dirigir a todos os brasileiros minha Mensagem de Aniversário, uma alocução veemente, que fosse uma Proclamação de Princípios de nossas convicções políticas. Nós estávamos convictos de que a fonte genuína da ordem pública não era a Força, mas o Poder. Para nossa consciência jurídica, o Poder emana do povo; era produto da manifestação popular. A Força era outra cousa. Era a imposição das armas.”

Registrado em 1997, o depoimento é do jurista Goffredo Telles Jr. (1915-2009), principal redator da “Carta aos Brasileiros”, – veemente repúdio à ditadura militar e ao estado de exceção, movimento civil de denúncia à ilegitimidade do então governo que se seguiu ao golpe militar de 1964.

Lançada com repercussão nacional e internacional em 8 de agosto de 1977, em leitura nas Arcadas do Largo de São Francisco, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), obteve a adesão de dezenas de juristas e catedráticos como José Ignácio Botelho de Mesquita, Fábio Konder Comparato, Modesto Carvalhosa, Irineu Strenger, Dalmo de Abreu Dallari e Miguel Reale Júnior, além desembargadores e intelectuais como Antônio Cândido de Mello e Souza e Dom Cândido Padim, Bispo de Bauru.





Marco, no auge dos anos de chumbo, do enfrentamento à ditadura pela organização da sociedade civil, a “Carta aos Brasileiros” inspira hoje, 45 anos depois, reação às ameaças protagonizadas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) às instituições democráticas, com a nova “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito", que já reúne mais de cinco centenas de milhares de assinaturas e será lida, no próximo 11 de agosto, no mesmo local.

Mentores e signatários há 45 anos da primeira carta, José Carlos Dias, de 83 anos, presidente da Comissão Arns de Direitos Humanos e Flávio Bierrenbach, ministro aposentado do Superior Tribunal Militar, pretendem participar do novo ato em defesa do estado democrático de direito.

Naqueles anos de chumbo, Goffredo Telles conclamava o restabelecimento do estado de direito e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Embora a ditadura militar só tenha se encerrado em 1985, com a eleição indireta de Tancredo Neves à Presidência da República, a “Carta aos Brasileiros” consolidou um marco no enfrentamento à ditadura, particularmente naquele contexto de mortes sob torturas de prisioneiros políticos como o jornalista e dramaturgo Wladimir Herzog (1937-1975), o operário metalúrgico Manoel Fiel Filho (1927-1976) e o líder estudantil aluno de Geologia da USP Alexandre Vannucchi Leme (1950-1973), entre tantos outros desaparecidos nos porões dos Destacamentos de Operações de Informação – Centros de Operações de Defesa Interna (Doi-Codis).




 
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A Carta aos Brasileiros também era uma reação ao chamado Pacote de Abril, de 13 de abril de 1977, instituindo os senadores biônicos e várias novas medidas de restrição às liberdades, baixadas pelo general Ernesto Geisel alterando a Constituição –  que já era ilegítima, porque outorgada pela Junta Militar em 1969.

“Tanto absolutismo, tanto autoritarismo, por tanto tempo, para quê? Pergunta permanente, esta, em nossos espíritos inquietos. Que títulos, que autoridade cultural tinham os generais do governo, para ditar e impor a toda a Nação, por anos e anos a fio, a sua “verdade”, as suas “certezas”, as suas “aversões” e “ojerizas”? Censura rigorosa, exercida severamente nos órgãos da mídia, buscava escamotear, dos olhos do povo, grande parte da realidade”, escreveu em artigo publicado por Goffredo Telles, pouco antes da Carta aos Brasileiros, lembrando que nas eleições para a Câmara e Senado em 1974, a oposição oprimida vencera elegendo fortes bancadas.

Exatamente por isso, dois anos depois, temendo nova derrota nas urnas, o governo militar promulgou a chamada Lei Falcão, de 24 de Julho de 1976, que restringia drasticamente a propaganda eleitoral no rádio e na televisão à publicação de foto e de um minicurrículo do candidato. No ano seguinte, viria o Pacote de Abril.





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Escolha estratégica

O movimento para o lançamento da “Carta aos Brasileiros” surgiu nos primeiros meses de 1977 no âmbito das comemorações dos 150 anos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Os juristas José Carlos Dias e Flávio Bierrenbach não se conformavam com o fato de que a comissão das atividades de celebração da data fosse presidida pelo professor Alfredo Buzaid, ex-ministro da Justiça do governo Médici, defensor do AI-5.

Reunidos com Almino Afonso, Dias e Bierrenbach decidiram organizar um evento alternativo. E estrategicamente, escolheram para protagonizá-lo o professor de Ciência do Direito e de Teoria Geral de Direito da faculdade, Goffredo Telles Jr: integralista, sem vínculos com a esquerda e crítico ao marxismo, acreditava-se ter perfil com menor probabilidade de ser preso pelo enfrentamento à ditadura.

Representando um grupo de advogados da Academia do Largo de São Francisco, Dias, Bierrenbach e Almino Afonso deixaram claro a Goffredo que desejavam ter sacramentado em documento, a expressão de seu repúdio à ditadura militar, não permitindo que algum dia pudessem ser confundidos com omissos ou apoiadores do regime. Nesse sentido, queriam proclamar, em celebração alternativa dos 150 da faculdade, numa inequívoca mensagem aos brasileiros de fidelidade aos ideais da liberdade, da democracia e do estado de direito.





Foi um encontro de escolhas: Goffredo, também queria ser o protagonista do manifesto.

“Pois bem, nós queríamos proclamar nossa insurreição contra essa tutela, esse arbítrio. Sustentávamos que uma nação desenvolvida era uma nação que podia manifestar, e fazer sentir, a sua vontade. Não víamos que razões podiam existir para que comandantes das Forças Armadas continuassem a proferir ameaças contra civis, e a dizer, aos políticos e aos cidadãos em geral, como se deviam comportar. Não víamos o motivo pelo qual os militares, por mais ilustres que fossem, haveriam de ser considerados os melhores cidadãos do país. Que títulos, ostentavam os militares, para que pudessem ser tidos como a mais alta expressão da sabedoria política e do civismo? Além da força de suas armas, que possuíam eles, de que lhes pudesse advir um Poder incontrastável? Aliás, durante os longos 13 anos de chumbo, o que presenciamos no Brasil, foi o suceder ininterrupto de violências inauditas, praticadas pelas autoridades, contra pessoas e direitos”, registrou Goffredo em suas memórias, sobre a gênese da “Carta aos Brasileiros”, 20 anos depois, considerando, em algumas passagens, que subversivos são aqueles que violam a Constituição.