Mas, para a pesquisadora Adriana Marques, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a interferência militar em "assuntos que não são de sua competência" e o espaço ocupado por eles em outras instituições são construções de longo prazo que a categoria vai lutar para manter independentemente de quem seja eleito em 2022.
"Eles já estão atuando para não perder o espaço que conquistaram. Inclusive essas escaramuças contra o TSE também são uma maneira de dizer: 'Olha, estamos aqui, e vocês terão que negociar' (sobre o espaço e o poder que têm). Qualquer que seja o novo governo, eles querem estar em uma boa posição para negociar", afirma Marques, que é coordenadora do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa (LESD).
O número de militares em cargos civis teve um aumento de 70% governo Bolsonaro, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado em maio deste ano.
No total, os militares na cúpula do Executivo foram de 680 em 2018 para 1085 em 2021. É um processo de militarização que já vinha de antes, mas se intensificou no atual governo. Segundo o Ipea, a tendência de expansão foi observada em todo o período desde 2013, "mas o maior aumento proporcional foi entre 2018 e 2019".
O número cresceu ainda mais com novas nomeações neste ano, mas os dados de 2022 não foram contemplados na pesquisa.
A presença militar e sua influência é maior nas áreas consideradas estratégicas pelo governo, segundo o Ipea, como Economia e Educação. Isso ficou evidente também com a colocação do general Eduardo Pazuello na chefia do Ministério da Saúde no auge da pandemia de covid-19.
Na Educação, o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares é uma das principais vitrines do governo. Feito em parceria entre o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério da Defesa, visa aplicar no país todo elementos da gestão dos colégios militares.
No Meio Ambiente, ao mesmo tempo que congelou ações do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o governo fez grande propaganda de ações militares para combater o desmatamento na Amazônia, feitos sem apoio e expertise de especialistas na área.
Marques afirma ainda que diminuiu também a intermediação civil entre o governo e as Forças Armadas.
"O cargo de ministro da Defesa, que nos governos desde a redemocratização era ocupado por civis, agora é ocupado por militares da reserva recém-saídos do serviço. O ministério da Defesa virou o Ministério das Forças Armadas."
Questionado pela BBC News Brasil sobre a ampliação do número de cargos que militares ocupam, o Ministério da Defesa afirmou que "os militares, dentro ou fora do governo, ocupam cargos conforme a qualificação requisitada para o desempenho das respectivas funções e de acordo com a legislação que rege a ocupação de cargos de natureza civil e de natureza militar".
Sobre o envolvimento das Forças Armadas na eleição, a pasta afirmou que os militares "atuam estritamente dentro da legalidade" e estão "colaborando com o TSE para o aperfeiçoamento da segurança e da transparência do processo eleitoral, de forma a fortalecer a democracia".
"As Forças Armadas foram definidas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) como integrantes da Comissão de Transparência das Eleições e como uma das entidades legitimadas a fiscalizar o sistema eletrônico de votação, ao lado de outras entidades fiscalizadoras."
Projeto de longo prazo
Segundo Marques, os militares não enxergam esse envolvimento como excessivo ou um desvio de função. A mentalidade mais difundida seria de que as Forças Armadas são mais competentes do que outras instituições.
"Pensam que são uma instituição que pode atuar em qualquer área e resolver qualquer problema. Nem a passagem mal-sucedida do ministro Pazuello pelo Ministério da Saúde abalou essa certeza", afirma.
O pesquisador Piero Leirner, antropológo da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) que estuda militares brasileiros, vai além.
Leirner diz que suas pesquisas apontam que houve um grande esforço dos militares junto a outras instâncias de poder não só para ocupar cargos, mas para viabilizar seus próprios projetos indiretamente.
"Eles passaram a fazer lobbies e infiltrações em vários setores, do Congresso ao Judiciário, de organizações empresariais à setores da imprensa. Militares vão para órgãos de auditoria, desembargadores vão dar aulas em Escolas Militares, por exemplo. Isso sem falar em laços de parentesco, amizade, etc."
Assim como Marques, Leirner afirma que essa militarização da política vai continuar mesmo caso Bolsonaro não se reeleja. Para o pesquisador, o questionamento das urnas faz parte de uma articulação para "se manter a longo prazo como um 'centro de governo'".
"Depois de Bolsonaro - seja em curto prazo ou longo -, eles continuarão gerenciando o 'sistema operacional' da política", afirma.
Isso significaria que qualquer governo eleito ficaria de certa forma fica "refém" das Forças Armadas, segundo Marques.
"O limite depende do resultado das eleições. Um governo que tem apoio de 80% da população (aprovação de Lula quando encerrou seu segundo mandato) é um governo diferente do que uma governo com 10% de apoio, como era o de Dilma", diz ela, fazendo referência a uma eventual vitória do ex-presidente Lula, que está à frente nas pesquisas de intenção de voto.
"Em um governo fraco, as outras instituições crescem. Não acho que (o crescimento do poder dos militares) seja uma condição incontornável. Depende da conjuntura política. Quanto mais complicada a conjuntura, mais nosso governo vai ser refém das Forças Armadas", diz a pesquisadora.
Leirner defende que mesmo o governo Bolsonaro não tem controle dos militares e que a ideia de que existe uma divisão entre "militares bolsonaristas" e um setor independente seria fabricada.
A estratégia, segundo o pesquisador, seria criar uma percepção de que atuações militares que foram muito criticadas são "bolsonaristas", preservando as Forças Armadas.
"A tática principal é sempre grudar o adjetivo 'bolsonarista' em cada coisa disfuncional. Qual é o efeito disso na percepção? A ideia de que existe um 'outro lado' [dentro das Forças Armadas]", afirma Leirner.
Essa articulação, diz Leirner, teria o objetivo de fazer os militares sempre saírem com uma imagem positiva de uma crise, mesmo que estejam envolvidos nela. "É uma estratégia que prevê vitória em qualquer situação", diz.
Possibilidade remota
Marques avalia que, apesar dos temores de uma interferência direta diante do questionamento das urnas eletrônicas feito pelos militares - isso nunca havia ocorrido desde 1996, quando o sistema foi implantado -, a possibilidade de um golpe de Estado clássico, com militares agindo abertamente para retirar do poder um presidente eleito legitimamente, é muito remota.
"Não seria necessário, seria contraproducente embarcarem em uma aventura dessa, ainda mais com esse presidente", diz.
Em julho, Bolsonaro se encontrou com embaixadores de outros países e fez uma apresentação questionando a confiabilidade das urnas, sem apresentar provas, apresentando um vídeo em que era ovacionado por apoiadores. O presidente também criticou o TSE e o Supremo Tribunal Federal (STF).
O episódio teve reações negativas - segundo o jornal americano The New York Times, diplomatas presentes disseram que causou constrangimento e gerou preocupações.
Isso, diz a pesquisadora, mostra que o quanto o Brasil ficaria isolado internacionalmente com um golpe - fator que deve desestimular a ações nesse sentido.
"Ficou claro que não haveria apoio internacional para um golpe de Estado clássico", afirma Marques.
Lerner não enxerga intenção entre os militares de fazer um questionamento sério sobre o processo eleitoral.
"O interesse deles é se colocar como fiadores finais de um processo que eles próprios ajudaram a desestabilizar. Esse tipo de ameaça é típica de quem está procurando obter vantagem em algum tipo de negociação."
Os pesquisadores avaliam que o comportamento das Forças Armadas é uma ameaça à democracia, mesmo se não houver golpe.
"O que eles estão fazendo é interferir diretamente em um assunto que não é da competência deles, uma interferência que afeta a democracia. Democracia não se restringe à existência de eleições, é preciso que cada instituição cumpra seu papel", diz Marques.
Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62443534.
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