Ao menos 33% dos eleitores brasileiros – mais de 50 milhões de pessoas – nunca votaram em cédulas de papel e, portanto, não conheceram de perto a realidade desse período da nossa história que o recém-empossado presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, classificou como “fase nefasta”. A partir de hoje, o Estado de Minas recorda aqueles tempos em série de reportagens com personagens que atuaram nos pleitos da segunda metade do século 20, especialmente os dos anos 1980 e 1990, que precederam as urnas eletrônicas.
Não é preciso fazer uma longa viagem no tempo para mostrar a fragilidade das eleições manuais. Basta dar uma espiada em jornais da década de 1980 e início dos anos 1990 para entender como eram comuns as denúncias de fraudes eleitorais, a ponto de denúncias graves sequer merecerem grandes destaques na imprensa. Um exemplo é o que aconteceu nas eleições para prefeito de Belo Horizonte em 1985.
Há quase 37 anos, o Estado de Minas chegava às bancas com a notícia de que Jorge Carone Filho, candidato do PDT à Prefeitura de Belo Horizonte, exigia a anulação dos votos daquela eleição após ter amargado o quarto lugar no resultado final. As alegações de fraude do pedetista incluíam o sumiço de 45 boletins de apuração e urnas fechadas com fita-crepe.
A denúncia, que hoje poderia soar bombástica, ocupava um pequeno espaço no canto inferior direito de uma página do caderno de Política do EM. Junto de várias outras informações sobre as eleições municipais de 1985, o pouco destaque para o pedido de cancelamento do pleito denuncia como as eleições com voto em papel nunca acabavam dentro dos prazos. Os pedidos de impugnação de votos e urnas, de recontagem de cédulas e de análises de possíveis fraudes eram comuns, especialmente ao longo dos vários dias pelos quais a contagem se estendia.
Memória
A lembrança do cenário tumultuado das eleições manuais no país é remota ou quase não existe para a maior parte do eleitorado atual. A eleição é 100% informatizada no país desde 2000, ou seja, quem tem menos de 38 anos certamente nunca votou em cédulas. Mas as urnas eletrônicas já foram usadas em 1996 em cidades com mais de 200 mil eleitores e, em 1998, o novo modelo foi ampliado também para os municípios com mais de 40 mil votantes. Ao todo, cerca de 85 milhões de eleitores brasileiros, mais da metade do total atual, só começaram a escolher seus candidatos quando as experiências com a urna eletrônica no Brasil já haviam iniciado.
Com as eleições manuais, a abertura para irregularidades começava já no preenchimento da cédula e no depósito do voto na urna. O coordenador eleitoral do MPMG, Edson de Resende, conta um pouco de sua experiência atuando nas eleições antes da urna eletrônica e lembra os problemas mais comuns no momento da votação.
“Eu comecei a fazer eleição como promotor de Justiça e promotor eleitoral em 1992, em Janaúba (Norte de Minas). Na votação em cédulas de papel, durante todo o dia a gente tinha muito problema. Acontecia de o eleitor errar na hora de escrever, rabiscar a cédula, ter que pedir outra cédula para o mesário, enfim, uma série de problemas. Acontecia de o eleitor sair da cabine com a cédula aberta e chegar lá no mesário para perguntar algo e acabar revelando o voto dele, o que é uma questão séria nesse momento”, conta.
Morosidade
As fragilidades apresentadas no dia da votação eram completamente expostas durante o período de apuração. Eleições gerais ou mesmo as municipais em grandes cidades não raramente só tinham os resultados finais divulgados após mais de uma semana de contagem. Era neste momento de apuração que o cenário se apresentava mais caótico, com mais atores, possibilidades de impugnação de votos e vulnerabilidade para fraudes.
“Depois de fechadas as urnas começava a apuração. Eu me lembro bem que eram aquelas mesas enormes colocadas num clube. Nas mesas ficavam os escrutinadores, os fiscais de partido ficavam em volta. Aí jogavam os votos de uma urna em cima da mesa, aquela montoeira de papel, e os escrutinadores começavam então a desdobrar e separar o voto do candidato A pra lá, o do B pra cá. E era aquela confusão, com os fiscais falando na cabeça dos escrutinadores. Por exemplo, como foi o caso da eleição para prefeito: havia lá três candidatos e o eleitor, em vez de marcar o ‘X’ no nome do candidato A ou do B, marcava no meio dos dois, nem para um nem para outro. Então ficava aquela luta: ‘ah, mas o X tá mais perto do candidato A do que do B’, ‘ah, o X foi marcado aqui mas puxou um traço que foi lá em cima do outro candidato’, era uma disputa voto a voto”, recorda Edson Resende.
Fragilidade
O professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e membro do Observatório das Eleições, Carlos Ranulfo, também recorda de momentos tumultuados durante a apuração da votação manual. O pesquisador aponta que o cenário era tão frágil, que o resultado de uma eleição poderia ser alterado diante das discussões e disputas corriqueiras no momento da leitura e contagem das cédulas.
“Eu participei de muita apuração, não como analista político, mas como fiscal de partido. Nesse processo eu vi essa briga por voto. Ficava lá todo mundo, aquele ginásio imenso e o pessoal correndo de mesa em mesa. Aquilo era uma doideira, você sabia que podia ganhar ou perder voto ali, né? Então era uma guerra. Essa guerra não existe mais. Era uma briga. E para votos para vereador ou deputado então era o desespero, porque ali é voto a voto. Por um voto, às vezes, o cara está eleito ou não. Do ponto de vista analítico, eu não tenho a menor dúvida que melhorou muito depois do voto eletrônico e qualquer tentativa de colocar isso em dúvida é uma tentativa obscurantista, obscurantismo puro”, analisa.
“Eu participei de muita apuração, não como analista político, mas como fiscal de partido. Nesse processo eu vi essa briga por voto. Ficava lá todo mundo, aquele ginásio imenso e o pessoal correndo de mesa em mesa. Aquilo era uma doideira, você sabia que podia ganhar ou perder voto ali, né? Então era uma guerra. Essa guerra não existe mais. Era uma briga. E para votos para vereador ou deputado então era o desespero, porque ali é voto a voto. Por um voto, às vezes, o cara está eleito ou não. Do ponto de vista analítico, eu não tenho a menor dúvida que melhorou muito depois do voto eletrônico e qualquer tentativa de colocar isso em dúvida é uma tentativa obscurantista, obscurantismo puro”, analisa.
O voto em papel no Brasil
Série especial do Estado de Minas recorda o período das eleições manuais no país, uma realidade desconhecida por boa parte dos eleitores atuais, que já começaram a escolher seus representantes políticos através da urna eletrônica.
Com entrevistas de personagens que atuaram nos pleitos com voto em papel e registros do acervo dos Diários Associados, a reportagem apresenta o cenário de obstáculos no acesso à democracia e de vulnerabilidade a erros e fraudes que tinham o poder de mudar o curso das eleições.
As matérias serão publicadas até a terça-feira (30/8). Leia as outras reportagens da série:
Colaborou: Renato Scapolatempore