No segundo dia da série sobre a história das eleições pré-urna eletrônica no Brasil, o Estado de Minas traz a discussão sobre como o voto em cédula de papel abria possibilidades tão variadas de impugnação e fraudes que, na prática, o eleitor saía da cabine de votação sem saber se, de fato, sua escolha seria contabilizada nos números finais da eleição.
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'Quem não votou na última eleição pode votar nesta?': as respostas para essa e outras perguntas mais buscadasTSE proíbe celular na cabine de votaçãoEleições bate recorde de mesários voluntários, diz TSEPara a servidora aposentada do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG) e ex-chefe de cartório da 31ª Zona Eleitoral de BH, Adriana Fulgêncio, o voto na urna eletrônica significa uma opção mais acessível para que os brasileiros consigam manifestar sua vontade política de forma mais segura.
“Havia a possibilidade de as pessoas mais simples, com menos condições de estudo, não conseguirem preencher corretamente a cédula e aí anulava um voto que eles não queriam realmente anular, por ficarem retraídos na hora de escrever. Mesmo uma pessoa iletrada, ela pode conhecer os números, ela toma ônibus, paga suas contas, seus boletos, né? Então, com a urna eletrônica, basta digitar o número, tem a foto ali do candidato, é mais fácil, não tem como errar”, disse Adriana, que começou a trabalhar nas eleições em 1980.
Pesquisa O relato de Adriana foi comprovado em números por uma pesquisa feita pelo professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e ex- docente do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e da Universidade Yale (EUA), Marcus André Melo. De acordo com o estudo, a urna eletrônica reduziu em 82% a ocorrência de votos inválidos nas eleições. Já na primeira eleição 100% realizada com urnas eletrônicas, em 2000, o número de votos inválidos caiu de 41% – o que fazia do Brasil o ‘campeão’ de votos inválidos na América Latina – para 7,6%, segundo o pesquisador.
Para o professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e membro do Observatório das Eleições, Carlos Ranulfo, a precariedade da educação no Brasil tornava as eleições em papel excludentes. Para além da possibilidade do erro no preenchimento da cédula, o pesquisador aponta como a distribuição dos fiscais de partido influenciava na validação ou impugnação dos votos.
“Os partidos podiam indicar fiscais para acompanhar a apuração nas seções e esses fiscais é que muitas vezes brigavam pelo voto. Então se você está ali por um partido e via um voto que podia ser seu, ou achava alguma irregularidade no voto para um concorrente, você podia brigar pelo voto. Os fiscais podiam alegar que a cédula estava mal preenchida ou que a interpretação correta era essa ou aquela. Você ganhava e perdia votos na mesa de apuração e é claro que nem todos os partidos tinham o mesmo número de fiscais. Esse país é imenso, imagina um país desse tamanho, não tem fiscal para todos os locais, então existia essa disparidade”, ressalta.
Confusão também para os candidatos
Com tantas chances de se ‘perder’ um voto, muitos derrotados nas eleições manuais tentavam pedir uma reconsideração de cédulas impugnadas por motivos que consideravam injustos. A reportagem teve acesso a processos movidos no TRE-MG durante os anos 1990 e as justificativas apresentadas pelos candidatos expõem como era complexo depender de um sistema tão frágil para se eleger.
Uma dessas histórias diz respeito a um candidato a deputado estadual pelo Partido Progressista (PP) em 1994, chamado João da Silva (nome fictício, em respeito à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD). Ele pede a recontagem de votos das zonas eleitorais 30, 31 e 38, em BH, e 90, 91, 92 e 93, de Contagem. Ele alega que fez muitas obras na região durante seu mandato anterior e não tem nenhum homônimo nas proximidades. “(Nas regiões citadas) foi desenvolvido o trabalho do requerente em larga escala, quando nenhum outro João é conhecido nessas zonas”, aponta o processo.
Com esse argumento, o candidato derrotado requereu ao TRE que fosse feita uma recontagem dos votos e que as cédulas preenchidas com os nomes ‘João’ ou ‘dr. João’ fossem computadas a ele, mesmo que estas variações não tivessem sido previamente registradas na Justiça Eleitoral. O tribunal indeferiu o pedido.
Outro caso curioso aconteceu nas eleições municipais de 1988, em Belo Horizonte. Um candidato a vereador do Partido Liberal (PL) – legenda antiga, dissolvida em 2006 – , chamado aqui de Antônio José (em respeito à LGPD), abriu um processo contra um ‘meio-xará’.
Antes das eleições, o candidato registrou as variações ‘Antônio’, ‘Antônio José’ e ‘Antônio José da Silva’ na Justiça Eleitoral. No entanto, ele era mais conhecido em sua área de atuação por ‘José’, por ter uma empresa na região de nome ‘Conservadora José LTDA.’,
Sabendo da existência de outro candidato a vereador conhecido pelo mesmo nome, o membro do PL alegou no processo ter feito um acordo para que nenhum dos dois usassem o nome mais conhecido, mas o trato não foi cumprido. Antônio José então pediu que o TRE transferisse a ele todos os votos designados para ‘José’, em detrimento do concorrente, ou que todos os votos com esse nome fossem anulados.
O voto em papel no Brasil
Série especial do Estado de Minas recorda o período das eleições manuais no país, uma realidade desconhecida por boa parte dos eleitores atuais, que já começaram a escolher seus representantes políticos através da urna eletrônica.
Com entrevistas de personagens que atuaram nos pleitos com voto em papel e registros do acervo dos Diários Associados, a reportagem apresenta o cenário de obstáculos no acesso à democracia e de vulnerabilidade a erros e fraudes que tinham o poder de mudar o curso das eleições.
As matérias serão publicadas até a terça-feira (30/8). Continue acompanhando o conteúdo nos links abaixo:
Colaborou: Renato Scapolatempore