Genocida, portanto, seria aquele que participou desse crime: seja governante, funcionário público ou da membro da sociedade civil. Essa participação inclui o genocídio em si, o conluio para cometê-lo, a incitação direta e pública, a cumplicidade e a tentativa de praticar esse crime.
Mas por trás dessa definição há um emaranhado jurídico sobre o que constitui de fato um genocídio e quando o termo pode ser aplicado.
E, para além das questões legais, o termo vem se tornando cada vez mais popular no debate político no Brasil. Em 2021, genocídio chegou a ser o termo mais popular do ano no dicionário brasileiro online Dicio, com mais de 4,5 milhões de buscas.
Genocídio também foi citado em pelo menos 1.500 discursos no Plenário da Câmara dos Deputados desde 1967, ano em que o deputado federal Cunha Bueno (Arena-SP) defendeu a extradição do austríaco Franz Stangl, oficial nazista que comandou campos de extermínio de judeus na Polônia e foi capturado no Brasil.
Tanto no Congresso quanto nas redes sociais e na imprensa utiliza-se os termos genocida ou genocídio, por exemplo, para falar sobre assassinatos de negros ou pobres, sobre perseguição e morte de indígenas e, por vezes, sobre as mortes decorrentes da pandemia de covid-19 durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL).
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O presidente, aliás, foi acusado formalmente de genocídio no Tribunal Penal Internacional (TPI) — ele nega ter cometido qualquer crime na pandemia ou contra indígenas.
E para entender todas essas disputas em torno da palavra genocida, primeiro vale explicar como surgiu o crime de genocídio e quantos de fato aconteceram ao longo do século 20. Depois, vamos analisar as principais acusações de genocídio específicas contra Bolsonaro e o que ele diz sobre elas. E por fim, falaremos das críticas a um suposto uso exagerado desses termos ou ao uso como arma política contra adversários.
As origens dos termos genocida e genocídio
O termo "genocídio" foi cunhado em 1943 pelo jurista judeus polonês Raphael Lemkin, que combinou a palavra grega genos (raça ou tribo) com o termo em latim cide (matar). Após testemunhar os horrores do Holocausto, no qual foram mortos quase todos os membros de sua família, Lemkin passou a defender o reconhecimento do genocídio como um crime na lei internacional.
Seus esforços foram fundamentais para a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. O texto entraria em vigor em 1951, sendo depois ratificado pelos países.
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O artigo 2º da convenção define o genocídio como "qualquer um dos seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, parcial ou totalmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como":
- Assassinato de membros do grupo;
- Dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
- Submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial;
- Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
- Transferência forçada de menores de idade do grupo atingido para um outro.
Há, no entanto, grandes divergências sobre como definir um genocídio e, por extensão, sobre quantos genocídios ocorreram no século 20.
Para alguns, só houve um genocídio no século passado: o Holocausto, durante o qual foram mortos mais de 6 milhões de judeus, além de adversários políticos, negros, homossexuais, pessoas com deficiência, comunistas, testemunhas de Jeová, integrantes da etnia roma e outras minorias.
Outros afirmam que houve, além do Holocausto, pelo menos outros dois genocídios segundo os termos da convenção da ONU de 1948: o assassinato em massa de armênios por turcos otomanos entre 1915 e 1920, uma acusação que a Turquia nega; a morte em Ruanda de cerca de 800 mil pessoas (Tutsi, Twa, e Hutus moderados) em 1994.
Mais recentemente, outros casos foram acrescentados a essa lista por alguns especialistas. Um deles é o massacre de Srebrenica, na Bósnia, em 1995, que foi considerado um genocídio pelo TPI para a Antiga Iugoslávia.
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Outros casos considerados por parte dos especialistas são a Grande Fome da Ucrânia causada pela União Soviética (1932-33); a invasão do Timor Leste pela Indonésia (1975) e os assassinatos cometidos pelo Khmer Vermelho no Cambodja nos anos 1970, quando estima-se que 1,7 milhão de cambojanos morreram por causa de execuções sumárias, fome e trabalho forçado.
Em relação ao último, há divergências sobre o fato de que muitas vítimas do Khmer Vermelho eram alvo por causa de questões sociais ou políticas, o que os deixaria de fora da definição de genocídio aprovada na ONU.
Além desses casos, em 2010, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu um mandado de prisão contra o presidente do Sudão, Omar al-Bashir, sob acusação de genocídio. Ele liderou uma campanha contra cidadãos da região sudanesa de Darfur na qual 300 mil pessoas foram mortas ao longo de sete anos de conflito.
Mais recentemente, em março de 2016, os Estados Unidos classificaram o grupo jihadista Estado Islâmico de promover genocídio contra minorias yazidi, xiita e cristãs no Iraque e na Síria. "(O Estado Islâmico) é genocida por
autoproclamação, por ideologia e por suas ações, no que diz, no que acredita e no que faz", disse à época John Kerry, então secretário de Estado americano.
Em 2017, a Gâmbia acusou formalmente, na CIJ, o governo do Mianmar de cometer genocídio contra população da minoria rohingya, com "operações amplas e sistemáticas de limpeza étnica". Centenas de milhares de pessoas fugiram para a vizinha Bangladesh, e estima-se que milhares tenham sido mortos. Mianmar nega a acusação.
Em 2021, os governos de EUA, Canadá e Holanda acusaram a China de cometer genocídio contra o povo da minoria uighur, na região autônoma de Xinjiang, no noroeste do país.
Há evidências de que o governo chinês submeteu uigures à esterilização forçada, ao trabalho forçado, a detenções em massa e torturas e estupros sistemáticos, ações que muitos afirmam que se enquadram no critério de genocídio. A China nega a acusação.
O TPI, por sua vez, rejeitou o pedido de uigures para investigar formalmente a China sob acusação de genocídio porque o governo chinês não é signatário do tribunal.
Acusações de genocídio contra Bolsonaro
No fim de 2019, duas entidades de direitos humanos apresentaram uma representação contra o presidente Jair Bolsonaro perante o TPI, pedindo uma "investigação preliminar" das ações do presidente sob acusação de "incitação ao genocídio e ataques sistemáticos contra populações indígenas". Outras entidades, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), também apresentaram acusações semelhantes contra o presidente no TPI.
O documento da Comissão Arns e do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, por exemplo, pretendia alertar o TPI sobre violações que, segundo eles, estariam colocando indígenas em perigo. Cabe ao próprio tribunal decidir se o caso deve ser oficialmente investigado num inquérito.
Na nota informativa entregue pelas entidades de diretos humanos à Procuradoria do TPI, os autores afirmam haver "atividades específicas de desmantelamento de políticas públicas protegendo direitos sociais e ambientais, junto a processos de demarcação de terras indígenas". O texto cita também a "perseguição e demissão de servidores de departamentos sociais e ambientais por advertir contra políticas de desmantelamento ou por questionar versões oficiais dos fatos".
"Este documento mostra como o discurso sistemático do governo, minando as leis de proteção ambiental e desdenhando as populações indígenas, (...) está incentivando a violência contra essas populações e os defensores de direitos sociais e ambientais", dizem as entidades.
O documento cita o Artigo 15 do Estatuto de Roma, documento de 1998 que embasou a criação do TPI, pedindo "responsabilização por incitação ao cometimento de crimes contra a humanidade e apoio para o genocídio contra os povos indígenas e comunidades tradicionais do Brasil".
Há pelo menos três representações relacionadas contra Bolsonaro em tramitação no TPI com acusações de crimes contra indígenas brasileiros. O caso tem avançado, o que é algo inédito na história do país, mas o tribunal ainda não decidiu se o presidente será investigado formalmente.
Organismo internacional criado em 2002, esse tribunal está encarregado de julgar indivíduos acusados de quatro crimes graves: crimes contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra e, desde 2018, crimes de agressão — em que políticos e militares podem ser responsabilizados por invasões ou ataques de grandes proporções.
O que diz Bolsonaro?
O presidente Jair Bolsonaro e seus auxiliares têm negado reiteradamente qualquer tipo de crime do governo federal contra indígenas ou em ações na pandemia de covid-19.
As acusações de genocídio contra Bolsonaro voltaram à tona durante as discussões sobre o relatório final da CPI da Covid no Senado, em 2021. Afinal, o presidente poderia ser acusado desse crime ou não?
As versões preliminares do documento elaborado pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL) sugeriam pedir o indiciamento de Bolsonaro pelo genocídio de povos indígenas. "Todo um conjunto de agressões, negligências e atos que deixam os indígenas mais vulneráveis à pandemia convergem para a ocorrência do crime de genocídio […] Assim, como já dito, o impacto da covid-19 sobre os povos originários foi grave e desproporcional, situação que exige a responsabilização dos respectivos culpados", dizia um trecho do texto.
Mas a proposta causou um racha no grupo majoritário da comissão porque parte dos senadores não identificou elementos suficientes para justificar a acusação desse crime (como provas de que o presidente teve a intenção de promover a morte de indígenas). Após intensas negociações, o termo foi retirado do relatório final. O texto aprovado, no entanto, pediu o indiciamento do presidente por crimes contra a humanidade.
Os crimes contra a humanidade são uma expressão que se originou no Direito Penal de guerra e estão previstos no Estatuto de Roma. O Brasil é signatário desse tratado.
De acordo com o estatuto, há 11 subtipos de crimes contra a humanidade, tais como: homicídio, escravidão, extermínio, deportação ou transferência forçada de população, agressão sexual, desparecimento forçado de pessoas, perseguição, atos desumanos que causem sofrimento intencional, entre outros.
"A diferença básica é que o crime contra a humanidade não precisa ter uma inspiração racial, religiosa ou étnica (como no caso do genocídio). Basta que você identifique uma série de ataques generalizados e sistematizados contra a população civil", explicou Gustavo Badaró, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) à BBC News Brasil.
Além do pedido de indiciamento por crimes contra a humanidade, Bolsonaro foi acusado também de crimes comuns e crimes de responsabilidade. Para a CPI, por exemplo, em vez de proteger a vida dos brasileiros da covid-19, o presidente teria contribuído para o agravamento da pandemia ao demorar a comprar vacinas, incentivar o uso de medicamentos sem comprovação científica, promover aglomerações, entre outros comportamentos.
Em declaração sobre as acusações da CPI da Covid, Bolsonaro afirmou que os senadores "nada produziram a não ser o ódio e o rancor entre alguns de nós. Mas nós sabemos que não temos culpa de absolutamente nada. Sabemos que fizemos a coisa certa desde o primeiro momento."
Em discurso no Plenário da Câmara dos Deputados, o parlamentar Bibo Nunes (PSL-RS) criticou aqueles que "durante meses chamaram o presidente Bolsonaro de 'genocida'" sem qualquer embasamento. "Eles não têm noção do que é um genocida! Genocida é quem extermina uma raça, uma religião, uma etnia. Até hoje no Brasil morreu 0,3% da população. Isso está muito distante de ser um genocídio, e o culpam — culpam! —, como se ele fosse culpado por todas as mortes. Isso representa a divina decadência do bom senso da esquerda brasileira."
Em agosto de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou a retirada do ar de um vídeo em que o ex-presidente Lula chama Bolsonaro de genocida. O partido do atual presidente alegava discurso de ódio e ofensa à honra e à imagem de Bolsonaro.
Ao longo de dois anos de pandemia, mais de 660 mil pessoas morreram no Brasil em decorrência da covid-19.
Críticas a acusações de genocídio
Desde a sua adoção, a convenção da ONU sobre genocídio enfrentou duras críticas de todos os lados, principalmente por pessoas frustradas com a dificuldade de aplicar o termo a casos específicos.
Alguns analistas afirmam que a definição de genocídio é tão estreita que nenhum dos assassinatos em massa cometidos desde a adoção da convenção seria enquadrado nela.
Entre as principais críticas e objeções à Convenção do Genocídio estão: a convenção exclui grupos sociais e políticos; a definição é limitada sobre atos diretos contra pessoas, e exclui atos contra o ambiente em que elas se sustentam ou preservam sua cultura; provar a intencionalidade é extremamente difícil; países-membros da ONU hesitam em acusar outros países ou intervir neles, como foi o caso de Ruanda; não há um corpo de legislação internacional que esclareça os parâmetros da convenção (ainda que isso esteja mudando à medida que o TPI decide sobre acusações de genocídio); é difícil definir o que é "destruição parcial", e determinar quantos assassinatos configuram um genocídio.
Mesmo com todas as críticas, muitos juristas defendem que dá para reconhecer quando ocorre um genocídio.
Em seu livro Ruanda e Genocídio no Século 20, o ex-secretário-geral da organização Médicos Sem Fronteiras Alain Destexhe diz que "o genocídio é um crime em uma escala diferente de todos os outros crimes contra a humanidade e implica uma intenção de exterminar completamente um determinado grupo. O genocídio é, portanto, o maior e mais grave dos crimes cometidos contra a humanidade".
Destexhe se mostra preocupado que os termos genocídio ou genocida se tornaram vítimas de uma "espécie de exagero verbal, algo muito parecido ao que ocorreu com a palavra 'fascista'", transformando perigosamente esses termos em "lugar-comum".
Michael Ignatieff, ex-diretor do Centro Carr para Políticas de Direitos Humanos da Universidade Harvard, concorda com a avaliação de Destexhe. Para ele, o termo "genocídio" passou a ser usado como uma "validação de todo tipo de vitimização".
"A escravidão, por exemplo, é chamada de genocídio quando, mesmo sendo uma infâmia, é mais um sistema de exploração do que de extermínio", afirmou Ignatieff em palestra sobre o tema.
Para além das acusações jurídicas baseadas em evidências ou não, na política o uso da palavra genocídio carrega uma estratégia política parecida com o que ocorre com outros termos, como comunista, fascista ou nazista.
"A função política é a satanização do outro. Você transforma o adversário, em termos discursivos, em uma posição inaceitável de um ponto de vista moral", diz Wilson Gomes, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor do livro Crônica de uma Tragédia Anunciada: Como a Extrema Direita Chegou ao Poder.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62520987
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