Crítica do "toma lá, dá cá" e da distribuição de recursos sem transparência, a senadora e candidata à Presidência Simone Tebet (MDB) indicou para cidades de seu estado, Mato Grosso do Sul, R$ 28 milhões de uma cota criada pelo governo Jair Bolsonaro (PL) para beneficiar aliados no Congresso.
Os repasses destinados por Tebet para 29 municípios aconteceram em julho de 2020. À época, como mostrou a Folha de S.Paulo, o governo Bolsonaro havia oferecido até R$ 30 milhões para que parlamentares alinhados enviassem para as suas bases recursos para o enfrentamento da COVID-19.
O dinheiro inicialmente seria repassado diretamente pelo Ministério da Saúde aos municípios, levando em conta as demandas existentes e a situação da pandemia em cada região. Mas parte do montante acabou partilhada entre parlamentares, que direcionaram a verba a diferentes municípios do país sem a exigência de critérios técnicos. Partidos da oposição e independentes foram excluídos da divisão.
Procurada, Tebet reconhece que indicou os repasses, mas nega irregularidades e a prática de "toma lá, dá cá". A emedebista diz que a negociação com o governo foi feita pela liderança do MDB no Senado e que apenas atendeu à solicitação de "designação dos municípios a serem atendidos em Mato Grosso do Sul".
O líder do MDB, Eduardo Braga (AM), confirma que a oferta dos recursos foi feita pela liderança do governo no Senado e, depois, levou a possibilidade de indicação aos parlamentares emedebistas. Braga nega que interesses políticos tenham sido uma condição para que os senadores tivessem direito à verba.
"Isso não nos foi colocado em qualquer momento, até porque, como líder do MDB, jamais aceitaríamos tal condição. O que ficou claro, na época, foram os critérios técnicos para o repasse dos recursos, de acordo com as necessidades emergenciais dos serviços de saúde", declarou o senador.
Recursos para aliados
Em 2020, surgiram denúncias de que o governo usava parte dos recursos contra a COVID para fidelizar sua base no Congresso. Senadores puderam indicar, sem critério técnico, aonde os recursos iriam. As indicações também eram feitas sem transparência. Os autores das indicações, por exemplo, não tiveram seus nomes divulgados em nenhum canal oficial do Executivo ou do Legislativo.
Os municípios beneficiados pelos parlamentares foram incluídos numa portaria do Ministério da Saúde. A publicação continha a relação dos valores e as cidades contempladas -tanto os definidos por critérios técnicos da pasta como os indicados pelos parlamentares.
Recentemente, senadores passaram a lembrar nos bastidores que Tebet foi contemplada nesse processo, para criticar suas declarações na campanha. Um parlamentar relata que ela está sendo "hipócrita" ao dizer que muitos senadores foram comprados pelo chamado orçamento secreto -enquanto ela mesma fez uso de outra verba articulada nos bastidores, sem transparência e distribuída seletivamente.
No Senado, ela acompanhou o governo na maior parte das votações, em particular na pauta econômica.
Ao se lançar à presidência do Senado, no início de 2021, contra um candidato apoiado pelo Planalto, evitou ataques a Bolsonaro e disse que buscaria "independência harmônica". Ao ser abandonada pelo próprio partido, subiu o tom. Depois, na CPI da COVID, tornou-se adversária ferrenha do Planalto.
Senadores apontam que era largamente conhecido que a partilha de recursos só privilegiava aliados e excluía parlamentares de Podemos, Rede e PT. Outro banido do processo foi o senador Alessandro Vieira (PSDB-SE). "Nunca recebi qualquer oferta de recursos dessa natureza", afirma Vieira.
O líder da oposição, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), membro da campanha de Lula (PT), também afirma que todos sabiam que a verba era apenas para aliados. "Todos sabemos que os recursos foram oferecidos e para quais bancadas e quais senadores. Nunca fui procurado e nunca me foi oferecido nada", afirma.
O senador Major Olímpio (PSL-SP), morto em março de 2021 em decorrência do coronavírus, denunciou publicamente a distribuição por critérios políticos de recursos contra a COVID. Em julho de 2020, revelou ter recebido a oferta, mas a recusou porque que nem todos os parlamentares foram contemplados.
Em julho daquele ano, mês em que o parlamentar indicou que os pagamentos foram feitos, Tebet viajou a algumas cidades de seu estado para anunciar os repasses. Em Dourados, entregou um cheque simbólico no valor de R$ 5 milhões para o combate à COVID. Ela também participou de evento em sua cidade natal, Três Lagoas, onde anunciou o repasse de R$ 5 milhões ao Hospital Nossa Senhora Auxiliadora.
"Consegui reforço de caixa de cerca de R$ 29 milhões a municípios-polo de MS gastarem com remédios, testes rápidos de COVID, equipamentos, contratação temporária de pessoal, treinamento etc. Hoje fui a Três Lagoas anunciar a liberação de R$ 5 milhões ao Hospital Auxiliadora", escreveu nas redes sociais.
Compra de kit COVID
Como não havia critérios técnicos e eram os congressistas que definiam o destino das verbas, houve direcionamento de dinheiro, por exemplo, para remédios sem eficácia comprovada para tratar a COVID.
A Folha obteve ofício enviado pelo bolsonarista Marcos do Val, o único do Podemos a ser contemplado na partilha, à Secretaria de Saúde do Espírito Santo detalhando o destino dos R$ 24 milhões que repassou.
A planilha mostra que quase metade dos recursos enviados para Vitória se deu com a compra de medicamentos do chamado kit COVID: R$ 5 milhões para a compra de ivermectina, R$ 1,5 milhão para hidroxicloroquina e R$ 4,1 milhões para azitromicina.
Tebet informou via assessoria de imprensa que os repasses aconteceram em um momento em que a "situação estava caótica", pois não havia ainda conhecimento do impacto da pandemia no mundo. "Aprovamos medidas provisórias com recursos extraordinários para salvar vidas. Aquilo foi bem no ápice da pandemia, e o Congresso ajudou a distribuir esses recursos para os hospitais em todo o país", afirmou.
A emedebista diz ainda que nunca negociou os recursos. "Neste caso específico, o meu gabinete foi procurado pela liderança do MDB no Senado, com a solicitação de designação dos municípios a serem atendidos em Mato Grosso do Sul. Isso ocorreu em maio, e a portaria só foi publicada em julho."
A candidata acrescenta que a obtenção dos recursos nunca esteve relacionada a eventual apoio ao governo. "A minha atuação na CPI da COVID é prova concreta de que não houve nenhuma tentativa de toma lá, dá cá entre o meu mandato e o governo federal."