Jornal Estado de Minas

POLARIZAÇÃO

Por que as eleições levaram artistas a um ringue jurídico

Num dos melhores shows do último Rock in Rio, em setembro, Ludmilla repetiu um gesto que já tinha trazido problemas para ela meses antes. "Faz o 'L'", pediu a cantora à plateia, depois de anunciar que o festival ia virar um baile de favela.

 





Foi por causa desse mesmo "L" com as mãos que o vereador paulistano Fernando Holiday, do Novo, tinha entrado com uma representação na Justiça para suspender o cachê dela na Virada Cultural, em São Paulo, em maio. Ludmilla disse que o gesto se referia à inicial do próprio nome, mas ele é associado de modo inequívoco ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, candidato à Presidência neste ano.

Ela não foi a única a ter um posicionamento político questionado. Desde que a corrida eleitoral começou, Nando Reis, Daniela Mercury, Juliette, Manu Gavassi e Maria Gadú foram alvos de ações, acusados de infringir normas eleitorais.

As denúncias não recaem só em atos pró-Lula. O presidente Jair Bolsonaro, do PL, também teve sua participação na festa Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, no interior paulista, enquadrada como showmício pelo PDT, o partido de Ciro Gomes.





Mas até onde os artistas podem, de fato, se posicionar politicamente e participar de campanhas políticas? Essas ações judiciais intimidaram cantores mesmo ou tiveram efeito contrário? E será que esse tipo de processo pode ser considerado uma tentativa de censura?

Essa onda contra artistas nas eleições de 2022 começou no Lollapalooza, em março. O PL, partido de Bolsonaro, acionou o Tribunal Superior Eleitoral contra a organização do festival em São Paulo por suposta propaganda eleitoral irregular em benefício de Lula depois que Pabllo Vittar levantou uma toalha com o rosto do petista no palco.

O ministro Raul Araújo acatou parte do pedido e proibiu qualquer tipo de manifestação política nos shows sob pena de multa de R$ 50 mil. Logo depois do evento, Bolsonaro ordenou que o presidente do PL retirasse a ação contra o festival.

"Essa decisão criou um dilema", afirma Mônica Galvão, advogada que tem entre seus clientes a T4F, produtora do Lollapalooza. "O artista no palco é dono da sua performance, e não existe uma determinação prévia do que pode ou não ser dito, do que pode ou não ser objeto de manifestação pública.





"Do ponto de vista jurídico, não faz sentido acusar o Lollapalooza de ser um evento político, diz Galvão. Primeiro porque se trata de um festival internacional, sem nenhum viés com esse caráter. Mas há ainda um segundo motivo. "A vedação a manifestações políticas não se dirige aos artistas. Ela se dirige aos políticos, aos partidos que não podem contratar showmícios", afirma.

A avaliação de advogados e especialistas que acompanham os casos é de que processos como o do Lollapalooza têm por objetivo intimidar os artistas, mas que o efeito acaba sendo contrário.

A voltagem política do festival foi às alturas depois da decisão, com artistas se posicionando a favor de Lula. Até Anitta, que só tinha uma participação na apresentação da americana Miley Cyrus, chegou a postar um vídeo falando que pagaria a multa de quem se posicionasse durante os dias de shows.

Ainda assim, um artista que preferiu não se identificar afirmou à reportagem que enfrenta processo por ter se manifestado e que, até a poeira baixar, decidiu evitar posicionamentos em cima dos palcos.

A Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos foi outro caso de evento privado acusado de ter um viés político. Bolsonaro foi ao estádio onde aconteceu o evento, em agosto, acompanhado de apoiadores. Ele chegou a apresentar o jingle da campanha no ato, que teve ainda xingamentos a Lula.





O PDT afirmou numa representação ao TSE que o que o presidente fez no festival foi showmício —e essa ação trouxe um apoio um tanto inesperado para Bolsonaro. Paula Lavigne, coordenadora do movimento 342 Artes e crítica notória do atual mandatário, se manifestou contrária à atitude do partido.

"Olha a que ponto eu cheguei. Estou defendendo o Bolsonaro", disse ela, sobre a ação, à coluna de Malu Gaspar, no jornal O Globo.

O advogado Lucas Lazari, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, assinou um parecer com Lavigne contra esse processo e argumentou que uma decisão contra o presidente seria "um enorme retrocesso".

Ele diz que há uma mudança na forma como a classe artística entende o posicionamento político. O advogado avalia que, depois da proibição das apresentações pagas por campanhas, os tais showmícios, em 2006, os artistas passaram por um processo de autocensura até entenderem que há outras formas de se manifestar politicamente, sem que isso seja proibido pela lei.





Isso, segundo Lazari, ainda acontecia em 2018. Apesar de artistas terem declarado voto e se posicionado contra candidatos, o ato de se manifestar em shows não era tão recorrente. Quem marcou essa virada naquele ano foi um artista internacional, Roger Waters, ex-integrante do Pink Floyd, que enquadrou Bolsonaro entre os líderes mundiais que ele chamou de neofascistas durante uma apresentação em São Paulo.

Essa mudança de postura também acontece numa corrida marcada pela aproximação de candidatos com o setor. Lula, que lidera as pesquisas de intenção de votos, resgatou o jingle "Sem Medo de Ser Feliz", de 1989, que juntou gente como Chico Buarque, Gal Costa e atores da Globo e regravou a música com Martinho da Vila, Pabllo Vittar, Duda Beat, entre outros artistas contemporâneos.

Já Bolsonaro, que está em segundo lugar nas pesquisas, angariou o apoio de artistas do sertanejo, gênero mais ouvido do país, apesar de o grupo estar fazendo pouco barulho em prol do presidente nas redes sociais, em contraste com os que se mobilizam a favor de Lula.





Ainda assim, as interpretações do que é um showmício são usadas para tentar cercear manifestações políticas. A festa em Barretos e o Lollapalooza são eventos privados, mas outros artistas têm sido questionados por declarar apoio a candidatos em apresentações bancadas com dinheiro público.

Foi o caso da cantora Maria Gadú, que declarou apoio a Lula segurando uma toalha com o rosto do candidato estampado, assim como havia feito Pabllo Vittar. O cachê da artista foi suspenso pela associação responsável após pedido da prefeitura de São José dos Campos, no interior paulista, onde ocorreu o show.

A tensão desse ringue jurídico com artistas já mobilizou o alto escalão da Justiça. A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, chegou a se posicionar sobre o assunto.

"Não é possível que, a poucos dias da eleição, os artistas sejam ameaçados, censurados, e o Supremo já disse que censura não pode existir nos termos expressos da Constituição", disse ela. "O que eu faço aqui é um apelo de respeito absoluto ao artista brasileiro."





De acordo com o texto constitucional, censura ocorre quando algum conteúdo é impedido de vir a público em função de um filtro prévio feito pelo Estado.

Guilherme Varella, consultor da Artigo 19 e do projeto Mobile, o Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística, lembra que era comum, nas décadas de 1960 e 1970, que o governo impedisse a circulação de obras de arte e reportagens jornalísticas que julgasse inapropriadas. Por isso, com a redemocratização do país, era importante enfatizar a proibição dessa prática.

Mas muito mudou de lá para cá. A censura ganhou outros contornos, às vezes nas entrelinhas burocráticas. Varella exemplifica que cortes orçamentários na pasta da Cultura ou em editais voltados para as populações negras ou LGBTQIA+ podem ser interpretados como um tipo de censura.

Nesses casos, não há um censor dizendo o que pode ou não pode ser produzido ou veiculado, mas a falta de dinheiro ou de projetos próprios para atender certas populações acabam inviabilizando que esses grupos produzam arte. "Então decretos, portarias, instruções normativas, mudanças de regulamento, de documentos, tudo isso vai sendo usado para ir corroendo as instituições e as políticas públicas", diz.





Embora as tentativas de calar artistas tenham aumentado sensivelmente durante o governo Bolsonaro —dados do Mapa da Censura mostram que houve mais de 220 casos do tipo desde 2019 ante 16 no governo Temer—, elas não surgiram com ele.

Cinco anos atrás, por exemplo, houve a polêmica da exposição "Queermuseu", em Porto Alegre. Durante o governo Dilma, foram os próprios artistas que se juntaram para tentar proibir a publicação de biografias não autorizadas.

"O posicionamento político dos artistas hoje nas eleições não é uma novidade porque eles estavam sendo feitos desde o começo da gestão Bolsonaro. Eles já estavam mostrando que eram perseguidos", diz Varella. "A questão é que ela é parte de uma estratégia mais ampla, que encontra no período eleitoral uma forma de radicalização da perseguição."