Damares dá diferentes versões sobre o surgimento das supostas denúncias, citando como origem CPIs (comissões parlamentares de inquérito) já encerradas, a ouvidoria do ministério e depoimentos de moradores da Ilha de Marajó (PA).
Após ser questionada diversas vezes por mais detalhes, a ex-ministra passa a dizer que os casos estão em um inquérito sigiloso, e, por isso, não poderia dar mais informações. "Eu vou pagar o preço por muito tempo ainda de acharem que eu menti, mas é para preservar as investigações. Aguardem", afirmou à reportagem.
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No vídeo, Damares continua o discurso dizendo que o presidente Jair Bolsonaro (PL) determinou que o governo fosse atrás de todas essas crianças e que o "inferno se levantou contra ele" —citando em seguida, sem uma ligação clara, a imprensa, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso como agentes que agem em uma "guerra" contra o presidente.
Damares disse que as denúncias foram devidamente encaminhadas às autoridades, como o Ministério Público.
O Ministério Público Federal, por sua vez, afirma que atuou em inquéritos sobre supostos casos de tráfico internacional de crianças desde 1992 no arquipélago do Marajó e que, em 30 anos, nenhuma das denúncias mencionou nada semelhante ao citado pela ex-ministra.
Os promotores aguardam esclarecimentos sobre as declarações para que o caso seja investigado. "A gente vai ter que entender", respondeu Damares sobre a solicitação do Ministério Público.
O relator da CPI da Assembleia Legislativa do Pará, Arnaldo Jordy (Cidadania), já disse ao jornal Folha de S.Paulo que também nunca ouviu falar nos casos citados pela ex-ministra.
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PERGUNTA - A senhora pode explicar melhor o que sabe sobre o caso?
DAMARES ALVES - Se você assistir ao vídeo todo, eu falo de fronteiras. Claro que a gente começa cuidando das crianças de Marajó. Nós temos duas CPIs da Câmara [ambas já encerradas], que já apontavam o tráfico de crianças naquela área. E temos a própria CPI da Assembleia Legislativa do Pará que mostrava a exploração sexual de crianças. Então só de CPI, só de encaminhamento para Ministério Público, tinha três já. Fora as denúncias. Agora, todas as denúncias que chegaram na nossa ouvidoria foram encaminhadas para as autoridades competentes.
P - Por que a senhora não falou sobre esses casos antes?
DA - Sempre falei. Só estou achando estranho estar sendo divulgado agora em período eleitoral.
P - Mas como a senhora recebeu a denúncia?
DA - Populares. Por isso que a gente cria o Disque 100 dentro de barcos. A gente quer as pessoas possam se empoderar, ter coragem de denunciar. Como elas iam ligar para denunciar se nem energia elétrica tinha? Se nem conectividade tinha? Então a minha resposta imediata foi colocar barcos em região ribeirinha e nossa equipe da ouvidoria andar de cidade em cidade. Todas as denúncias que chegaram na ouvidoria foram devidamente encaminhadas.
P - O que significa encaminhar? Seria repassar a denúncia para o Ministério Público?
DA - Quando eu assumi, fizemos termo de parceria e cooperação com CNJ [Conselho Nacional de Justiça], com Conselho Nacional do Ministério Público e com os Ministérios Públicos estaduais. Os acordos são para que toda denúncia que chegasse até nós fosse para o Ministério Público.
P - Em relação às denúncias que a senhora citou sobre a Ilha de Marajó. A senhora se lembra de quando recebeu essa denúncia e o que fez?
DA - Conversei com todas as autoridades locais. Minha equipe esteve dentro da Ilha de Marajó conversando com as autoridades locais, com o Ministério Público, com juízes, conselheiros tutelares e promotores. As pessoas falam mais abertamente com o Ministério dos Direitos Humanos do que com a polícia. Então as pessoas têm mais acesso aos conselheiros tutelares. Tudo isso que foi colhido foi encaminhado às autoridades.
P - Então o Ministério Público já tem o material sobre essas denúncias na Ilha de Marajó?
DA - Não é só Ilha de Marajó. No vídeo eu falo do programa Abrace Marajó, mas nós vamos levar para todas as áreas de fronteira. Se você assistir o resto do vídeo, eu falo fronteiras. Eu não tenho fronteiras só no Marajó. Tenho fronteira em todo lugar.
P - Mas o Ministério Público do Pará pediu para que a senhora dê mais explicações sobre essas denúncias.
DA - Pois é… a gente vai ter que entender.
P - Eles já tinham essas informações?
DA - O tráfico de crianças e de mulheres no Brasil não é novo. Já tivemos até novela sobre isso. O que eu trouxe de novidade? Que as crianças são machucadas. Você acha que uma criança traficada é tratada com flores e pérolas? Eu só trouxe o que populares, o que todo mundo fala no Marajó. Não é só no Marajó. São nas áreas de fronteiras.
As pessoas estão chocadas com a crueldade que eu falei? Ou estão chocadas porque eu trouxe à tona algo que ninguém quer falar? Em 2019, quando eu falava de estupro de recém-nascido, todo mundo achava que eu estava exagerando. E aí todo dia vocês estão noticiando um estupro de um bebê. Eu agora não estou denunciando tráfico de crianças, isso é denúncia antiga. Eu só trouxe à memória quão cruel é o tráfico de crianças. Não houve omissão. O melhor seria entrevistar a relatora da CPI de 2013, a ex-deputada Liliam Sá. Quando ela vai ao meu ministério e me entrega o relatório da CPI e quando ela registra que tentou ir ao Suriname e Guiana e a CPI foi interrompida; ela é a voz de tudo isso.
P - As CPIs não mostraram casos como o que a senhora citou. O Ministério Público arquivou denúncias semelhantes. Então há a dúvida sobre a origem dessas denúncias citadas no vídeo.
DA - As denúncias que chegam na ouvidoria eu não tenho acesso porque são dados sigilosos. Por lei, eu não posso ter acesso aos dados da ouvidoria, mas tudo que a ouvidoria coletou a ouvidoria encaminhou. Eu tenho a garantia do atual ouvidor e do anterior de que tudo foi encaminhado.
P - Encaminhado para quem?
DA - Para o Ministério Público, para a polícia, para os órgãos competentes. Os conselhos tutelares também recebem as denúncias.
P - Acho que ainda não está claro. Essas denúncias são de 2010, que resultaram em CPIs, ou são denúncias recentes?
DA - Do mesmo jeito que eu andava nas aldeias e as pessoas falavam com a gente, e todo mundo dizia que era mentira e eu demorei para chegar a fatos e evidências. Quando a gente anda nas ruas do Marajó, as pessoas falam no seu ouvido sobre essas crianças. E o medo do povo? Então a ouvidoria dos direitos humanos foi para colher as denúncias e encaminhar para a polícia, ao Ministério Público. Nós não temos poder de polícia. O Ministério só recebe a denúncia.
P - Mas e sobre o caso que veio à tona no sábado [O vídeo foi gravado no sábado, mas foi propagado na segunda-feira]?
DA - O caso que veio à tona no sábado lá no vídeo.... por que está todo mundo querendo saber desse caso? Por que eu falei que os dentinhos são arrancados?
P - A senhora disse também ter fotos e vídeos disso.
DA - Há coisas que eu não posso falar. Eu já passei pela quarentena [período que sucede a saída de cargo público], mas há coisas que eu não posso falar. Mesmo porque estão sob investigação. Eu vou pagar o preço por muito tempo ainda de acharem que eu menti, mas é para preservar as investigações. Aguardem.
P - Mas onde estão as imagens dessas crianças que a senhora citou?
DA - As imagens que eu falo são dos estupros de recém-nascidos. As imagens de crianças dopadas também foram encaminhadas pela ouvidoria [no vídeo do culto, porém, ela cita imagens dos outros casos também].
P - O discurso no vídeo foi baseado em denúncias de CPIs antigas apenas? Ou há informações novas?
DA- Não. A gente tem. Aguardem. Busque os inquéritos abertos na região. Tem tanto inquérito aberto já.
P - Há informações sobre como e onde estão essas crianças citadas?
DA - Não. Não sabemos. Está todo mundo querendo que Damares dê respostas de coisas que Damares não tem acesso. Eu não posso ter acesso a inquéritos sigilosos, denúncias sigilosas. Eu tenho acesso ao que o povo me fala na rua e que a gente manda o povo encaminhar para a ouvidora.
P - A senhora diz que tudo foi encaminhado às autoridades. Qual sua avaliação sobre a reação dessas autoridades?
DA - No Pará? Num estado que é totalmente oposição a nós? Politizando? Que pena que politizaram isso quando eu queria um clamor social.
P - A senhora depois publicou um vídeo dizendo que estava sofrendo ameaças. E que pessoas se "levantaram" contra o Bolsonaro. Por que a senhora publicou logo depois?
DA - Esse vídeo já estava pronto antes. Essas pessoas não estão preocupadas com as crianças. Eu não vi nenhuma petição para cuidar das crianças da fronteira, ou pedindo investigação do Ministério Público.
As pessoas estão pedindo para cassar a Damares. A preocupação é com Damares ou é com as crianças? Isso me deixa muito triste. Você acha que toda a perseguição contra nós é porque somos de direita e religiosos? Você não acha que o crime organizado todo é contra Bolsonaro? É contra Damares? Eu tenho ameaças de mortes há anos. Por essa causa, eu dou a minha vida. Que pena que pegaram o vídeo de dentro de uma igreja e politizaram.
P - A divulgação do vídeo sobre o tráfico de crianças está sendo usado pelo Flávio Bolsonaro para fazer campanha. Foi planejado pela campanha?
DA - Eu não sei quem vazou esse vídeo. A igreja estava transmitindo. E a imprensa deu repercussão. Eu não respondo por ele [Flávio]. Mas foi só ele que usou? Ou a esquerda está usando de forma inversa? A morte violenta de crianças e adolescentes no Brasil caiu 53% em três anos e meio. E ninguém fala disso.
P - A religião entrou na pauta da campanha presidencial. Isso é algo proposital da campanha? É algo que favorece Bolsonaro?
DA - Isso favorece o presidente Bolsonaro. As pessoas estão com medo de a esquerda voltar ao poder.
P - Já houve CPI no Congresso sobre tráfico de crianças. O que a CPI que a senhora e o senador eleito Magno Malta propõem pode fazer de novo?
DA - Aumentar o Orçamento da União para aumentar os efetivos nas fronteiras, capacitar nossos policiais, mais equipamento, mais helicóptero. Eu vou para o Senado para a gente rever o Orçamento da União.
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RAIO-X
DAMARES ALVES, 58
Nascida em Paranaguá (PR), é pastora evangélica e foi assessora no Congresso. Assumiu o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo Bolsonaro. Formou-se em 1986 em pedagogia (Faculdade Pio X, de Aracaju) e, em 1992, direito (Faculdades Integradas de São Carlos)