Jornal Estado de Minas

DESINFORMAÇÃO

TSE combate fake news de "segunda geração" nas campanhas presidenciais

 

Bernardo Estillac

 

O segundo turno acirrou ainda mais a polarização da disputa presidencial. A pouco mais de duas semanas da nova votação, a Justiça Eleitoral manifesta preocupação com a disseminação de informações falsas nas campanhas de Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em decisão tomada ontem para a remoção de conteúdos das redes sociais, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, disse que “a desinformação em sua segunda geração” é uma das marcas da atual corrida ao Palácio do Planalto.





 

O plenário do TSE decidiu suspender dois conteúdos divulgados nas campanhas que foram considerados prejudiciais ao petista e ao presidente. Sobre o o chefe do Executivo federal, os magistrados votaram de forma unânime pela manutenção da decisão que proibiu a veiculação de uma antiga entrevista do atual presidente ao New York Times, em que ele manifesta interesse em participar de um ritual indígena que envolvia a antropofagia. A propaganda petista, veiculada na TV, foi considerada ofensiva à imagem do candidato e um risco à integridade do processo eleitoral.

 

Por placar mais apertado, 4 a 3, o TSE também decidiu pela retirada do ar de conteúdo que atacava a candidatura petista. Vídeo divulgado pela produtora Brasil Paralelo apresentava matérias jornalísticas que acusavam Lula de casos de corrupção noticiados quando ele era presidente. Os casos, no entanto, não são imputados ao candidato, o que foi pesado como fator para a remoção do material das redes sociais da empresa. “Estamos diante de um fenômeno novo, o fenômeno da desinformação, que vai além da fake news. O eleitor não está preparado para receber esse tipo de desordem informacional” disse o ministro Ricardo Lewandowski.

 

Alexandre de Moraes tratou sobre os tipos de desinformação com as quais o TSE está lidando nestas eleições. “A primeira é a manipulação de algumas premissas verdadeiras, que junta várias informações verdadeiras que aconteceram chegando a uma conclusão falsa. A segunda é a utilização de mídias tradicionais para plantar fake news e, a partir disso, as campanhas replicam essas fake news, dizendo que ‘isso é notícia’”.





 

Para o diretor e cofundador do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio), Carlos Affonso Souza, é necessário entender que o segundo turno é campo propício para que a desinformação escale na frequência e intensidade, por ser uma indução natural da polarização. Nesse contexto, ele destaca que a “segunda geração da desinformação” citada por Moraes não é um conceito típico das eleições brasileiras, mas algo que já se percebe por pesquisadores do tema.

 

“É um tipo de desinformação específico que não é inédito. Utiliza uma matéria de um veículo de imprensa e, nessa matéria, eventualmente, não existe contextualização mais ampla, não são oferecidas certas informações que permitem contrastar aquilo que é dito e isso vira estopim para a desinformação. O que peguei da mensagem do ministro é que na primeira fase se viam fake news originais da internet, por assim dizer, e que agora a gente vê os veículos de imprensa sendo usados como ponta de lança das desinformações. Isso faz parte do conjunto de ferramentas da desinformação. Essa estratégia funciona porque a pessoa já conhece o jornal, recebe já a interpretação da notícia e, às vezes, nem acessa a notícia como um todo, ela tem acesso a um print da notícia, ou só ao título”, explica.

 

Notícias fora de contexto

 

O uso de notícias fora de contexto ou de recortes de trechos de reportagens feitos de forma pensada para causar confusão no eleitor é o foco da atuação da Justiça Eleitoral. Na análise de Moraes, os casos aumentaram no segundo turno. Levantamento divulgado pelo G1, ontem, mostrou que casos classificados como fake news são mais de um quarto das 372 representações recebidas pelo TSE no ano. “Não se pode admitir mídia tradicional de aluguel, que faz suposta informação jornalística absolutamente fraudulenta para permitir que se replique isso. Esses casos cresceram muito a partir do segundo turno, e devem ser combatidos para garantir a informação de verdade”, disse o ministro.





 

Para o pesquisador e doutor em comunicação social pela UFMG, Gregório Fonseca, embora os veículos tradicionais tenham seu trabalho descontextualizado e manipulado para interesses antidemocráticos, há uma contribuição do jornalismo na propagação da desinformação.

 

“Com relação à parte do uso da mídia tradicional, o que vejo bastante é um jornalismo declaratório que não se preocupa muito com o que a pessoa está dizendo. Isso é uma forma de informação perigosa. A gente vê, na época da pandemia, por exemplo, algum político dizer que a vacina não funciona e o veículo simplesmente reproduz aquilo. É uma informação que foi dita por alguém, mas a forma como a imprensa tratou a informação ajuda a desinformar. Não há tratamento, é apenas uma reprodução. Ou ele até se posiciona no decorrer da matéria, mas em muitos casos a pessoa para no título, ou só um trecho é usado nas peças que buscam causar a desordem informacional”, avalia.

 

Premissa verdadeira para conclusão falsa

 

A desinformação que utiliza premissas verdadeiras para chegar a uma conclusão falsa, que tira informações de contexto, utiliza linguagem jornalística ou até trechos e recortes de veículos de imprensa, é mais sofisticada e, portanto, exige um trabalho mais elaborado para determinar uma mentira, exagero ou falsa relação. Para o pesquisador Gregório Fonseca, a atuação do TSE em contexto eleitoral precisa entender, sobretudo, uma intencionalidade de contaminar a discussão eleitoral para determinar se um material deve ou não ser retirado do ar.





 

“Essa maneira de produzir conteúdo é estratégica. Quando uma equipe faz um vídeo utilizando conteúdos verdadeiros para uma conclusão falsa ou até cita fatos para criar dúvidas no eleitor, cabe ao TSE identificar esse tipo de postura. Nesses casos, acredito que a decisão do tribunal foi correta, porque o contexto foi analisado e chegou-se à conclusão de que os vídeos foram produzidos com o objetivo de desinformar. A intencionalidade e o resultado esperado também têm que ser pesados, além de que tipo de conclusão pode ser tirado a partir de um conteúdo”, aponta.

 

Para Carlos Affonso Souza, é preciso entender que as decisões do tribunal que envolvem a retirada do ar de conteúdos que usam material jornalístico como elementos de sua construção não significam uma ação de censura ou de restrição da liberdade da profissão.

 

“O período eleitoral já é um período de enorme excepcionalidade na maneira como se tratam certas informações e se procura preservar, antes de mais nada, um debate saudável nas discussões ligadas à disputa eleitoral. As notícias são protegidas pela liberdade de expressão e elas não são apagadas, o conteúdo continua disponível. O que se evita aqui é a manipulação desses fatos, reportagens e entrevistas, dentro de um contexto da campanha eleitoral. Esse é o grau de excepcionalidade que é preciso ter em vista. Trata-se de uma proteção para que essas notícias sejam utilizadas com objetivo de prejudicar o debate eleitoral”, aponta o diretor do ITS Rio.





 

Os especialistas concordam que o TSE acerta em agir com celeridade e em evitar que os conteúdos sigam sendo reproduzidos, mas o impacto da desinformação eleitoral é difícil de ser remediado pela velocidade da reprodução de conteúdos no ambiente digital. A forma como autoridades eleitorais devem atuar para proteger o debate da desinformação ainda é uma incógnita e esbarra em limitações técnicas, como aponta Souza.

 

“É importante fazer com que o canal do TSE com as plataformas funcione para que as redes utilizem suas ferramentas de controle de conteúdo. É difícil agir de forma preventiva, porque aí, sim, haveria a discussão sobre infringir a liberdade de expressão. A própria inteligência artificial das plataformas também ainda não consegue identificar quando o conteúdo proibido está sendo usado com má-fé, com o objetivo de causar efeitos negativos, ou quando faz parte de uma peça educacional, para conscientizar, por exemplo”, explica.

 

Além de já ter determinado a retirada de conteúdos que associavam Lula com a perseguição religiosa, de Bolsonaro com o canibalismo, e outros materiais que atacavam os candidatos, o TSE também atua nas redes sociais desmentindo boatos pontuais que circulam na internet. Ontem, horas após a sessão em que Moraes fez declarações sobre a desinformação no segundo turno, o tribunal divulgou no Twitter uma checagem sobre o boato de que a validação da prova de vida do INSS estava atrelada ao voto em um presidenciável específico. “Qualquer boato de que é obrigatório votar em alguém para não perder uma pensão ou benefício social é falso”, aponta o perfil da corte. O TSE também compartilha publicações de jornais e agências de checagem de fatos nos seus perfis na internet.





 

Variedade de formatos

 

A fala do ministro Alexandre de Moraes também levanta uma discussão terminológica sobre o tema. Especialistas concordam que o termo fake news utilizado de forma abrangente desde as eleições norte-americanas de 2016, quando Donald Trump foi eleito presidente, não abarca todos os conceitos de desinformação que circulam atualmente e podem ter efeito nocivo ao sistema democrático.

 

“O termo fake news passou a ser discutido porque a versão que se tinha era só de um conteúdo que se disfarçava de conteúdo real, mas era essencialmente falso. O que a gente vê hoje é uma variedade de formatos, muito pouca coisa circula no formato de uma notícia disfarçada e o termo fake news fica, de certa forma, limitado. Por isso se usa mais ‘desinformação’”, analisa Gregório Fonseca. Fonseca ainda analisa que a diferença entre as eleições no Brasil entre 2018 e 2022 não se dão apenas pela variação no formato da desinformação, como também na exposição prolongada a conteúdos sem compromisso com os fatos e sua contextualização. 

 

“A desinformação foi construída ao longo de quatro anos ou mais por determinados discursos que foram repetidos com recorrência, de forma a sedimentar esse tipo de informação falsa na cabeça das pessoas. Não é um vídeo ou um texto que vai fazer a pessoa mudar de ideia ou trocar de candidato de uma hora para outra, é uma coisa que foi construída. A gente viu a desinformação moldando perfis de eleitores desde a última eleição.”