Jacob Mchangama, 44, advogado dinamarquês voltado para liberdade de expressão e autor do livro "Free Speech" (Basic Books, 2022), tem um alerta para os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), às voltas com a defesa e a supressão de informações.
"O problema é que aqueles que definem o que é desinformação também tendem a ter seus preconceitos", afirma. "Quando o Judiciário entra nesses debates, o tiro pode sair pela culatra. Pode comprometer a confiança no Judiciário, essencial para o Estado de Direito."
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A contradição de defender a liberdade para expressar ideias com as quais as pessoas concordam, mas não aquelas de que discordam, percorre a história que ele detalha em seu livro, desde a antiguidade.
Com a escala alcançada pela mídia social, o cancelamento nas plataformas está na pauta do dia, à esquerda e à direita. Por que seu livro vai, para questioná-lo, até a República de Weimar e os esforços de censura contra jornais nazistas? Qual foi a lição, na época?
JACOB MCHANGAMA - Um dos argumentos recorrentes para restringir o discurso online é a necessidade de proteger a democracia contra o ódio e a desinformação. Na Europa, esse argumento é muitas vezes sustentado com referência ao passado totalitário da Europa. Mas, como mostro no livro, a República de Weimar na Alemanha não era uma democracia baseada no absolutismo da liberdade de expressão.
Havia estrita censura política no rádio, jornais nazistas e comunistas eram frequentemente banidos, e nazistas proeminentes como Hitler, Goebbels e Julius Streicher eram punidos ou censurados. Ainda mais preocupante é o fato de que as leis de emergência que deveriam proteger a democracia foram usadas pelos nazistas para abolir a democracia. Sobretudo pela possibilidade de usar as leis da República de Weimar que permitiam a censura e a suspensão da liberdade de expressão.
O senhor pode explicar a Maldição de Milton, que destaca no livro?
J. M. - É a defesa seletiva e sem princípios da liberdade de expressão. Remete ao poeta inglês John Milton, que em 1644 publicou "Areopagítica", seu famoso apelo pela liberdade de imprensa. Milton declarou: "Dê-me a liberdade de saber, proferir e argumentar livremente de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades".
Porém, sua defesa da liberdade de expressão veio com muitos "se" e "mas". Ele enfatizou que, com liberdade de imprensa, "não me refiro ao papado, que, como extirpa todas as religiões, também deve ser extirpado". Tampouco desejava abrigar ideias que fossem "ímpias ou perversas contra a fé ou os costumes". Se livros "maldosos e difamatórios" ainda assim fossem impressos, o remédio de Milton era a queima de livros. Seu objetivo era facilitar o debate das "diferenças próximas, ou melhor, indiferenças" que levaram seitas protestantes a se enforcarem umas às outras, não o discurso livre e igual para todos.
No fim das contas, Milton até se juntou ao corpo de censores sob a ditadura militar de Cromwell. Que Milton, o flagelo dos censores, tenha se tornado um é uma das grandes ironias da história da liberdade de expressão, embora ele não esteja sozinho quando se trata de dois pesos e duas medidas na censura.
E como essa maldição se apresenta agora no debate sobre censura e nas pressões por ela?
J. M. - Hoje vemos isso acontecer no mundo todo. Veja o Brasil. Em 2021, fizemos uma pesquisa sobre atitudes em relação à liberdade de expressão, em 33 países ao redor do mundo. Mais de 90% dos brasileiros dizem que a liberdade de expressão é muito importante tanto para a mídia como para indivíduos e online. Mas apenas 42% dos brasileiros acham que a liberdade de expressão deve proteger discurso ofensivo às religiões, e apenas 38% acham que deve proteger os insultos contra a sua bandeira --reconhecidamente bela.
Portanto, o que nós enxergamos muitas vezes é que as pessoas pensam que a liberdade de expressão deve proteger as ideias com as quais elas concordam, mas não necessariamente ideias ou pessoas das quais discordam fortemente. Mas se você acredita que a liberdade de expressão só deve proteger ideias inofensivas, a liberdade de expressão fica, na melhor das hipóteses, vulnerável. Na pior, inútil.
No Brasil, membros do Supremo são responsáveis pela organização e por decisões imediatas sobre as eleições. E neste ano suprimiram publicações, algumas delas desinformação, mas outras não. Ao mesmo tempo, ajudaram a proteger a cobertura quando órgãos governamentais agiram contra ela. O senhor teria algum conselho ou paralelo histórico para oferecer a esses ministros?
J. M. - Conheço apenas superficialmente os acontecimentos no Brasil, portanto preciso ter cuidado para não fazer declarações sem saber os fatos e a lei, especificamente. Mas pelas eleições e os últimos anos me parece que o Brasil está passando por uma fase de polarização profunda e gradual retrocesso democrático. Nesses casos, muitas vezes é tentador impedir, por meio da lei, a propaganda e a desinformação.
O problema é que aqueles que definem o que é desinformação também tendem a ter seus preconceitos. Além disso, quando se trata de debate político, muitas vezes se torna impossível separar fato de opinião. Quando o Judiciário entra nesses debates, o tiro pode sair pela culatra porque, se eles decidirem que certas ideias podem ser proibidas como desinformação, isso fará com que os juízes pareçam estar tomando partido, censurando um lado e favorecendo o outro. Isso pode não só ser um risco para a liberdade de expressão, mas comprometer a confiança no Judiciário, essencial para o Estado de Direito.
O senhor acha que o poder de polícia é outro passo na direção errada, para o tribunal eleitoral brasileiro?
J. M. - De novo, não sou especialista no sistema constitucional ou eleitoral do Brasil nem conheço o grau de desinformação no ecossistema digital. Mas insistir em remoções muito rapidamente para desinformação parece um sistema em que você cria um perigo claro de que opiniões impopulares sejam removidas e em que órgãos públicos tenham poderes para decidir o que é verdadeiro. É difícil imaginar que os problemas reais de desinformação online possam ser resolvidos por meio de regulamentação e censura online.
Seu livro foi elogiado por conservadores americanos, por questionar a cultura do cancelamento, mas também criticado por dizer a mesma coisa sobre a pressão de direita contra a chamada teoria crítica da raça. Como vê o futuro da liberdade de expressão nos EUA?
J. M. - Por um lado, os EUA têm uma cultura robusta de liberdade de expressão, em comparação com muitos outros países. Mas essa cultura americana parece estar em declínio, devido à polarização e a gerações mais jovens a considerarem garantida.
Preocupo-me que, se essa cultura se deteriorar ainda mais nos EUA, a proteção legal muito forte oferecida pela Primeira Emenda possa ser diluída. E que democratas e republicanos comecem a usar leis restritivas de uma maneira profundamente partidária. É por isso que considero da maior necessidade um compromisso de princípios em defesa da liberdade de expressão, especialmente nas instituições educacionais e de mídia, social e tradicional, pois é onde essa liberdade é exercida na prática.
Em 2020, o New York Post publicou uma reportagem sobre Hunter, filho de Joe Biden, que foi suprimida por Facebook e outras empresas de mídia social. O que deve ser feito para proteger a liberdade de expressão e até de imprensa nessas plataformas?
J. M. - A remoção da reportagem do New York Post foi um exemplo preocupante de moderação que deu errado. Em última análise, talvez tenha ajudado mais os republicanos do que prejudicado, porque a história foi divulgada por tantos meios de comunicação que se tornou um exemplo do Efeito Streisand . Mas quantas reportagens menores, com impacto potencial a eleições democráticas, serão abafadas sem essa divulgação, pela moderação arbitrária de conteúdo? Impossível saber.
O livro explora altos e baixos da liberdade de expressão na história, mesmo em alguns lugares inesperados, do Império Persa do século 6 AEC aos mosteiros católicos medievais, ao mesmo tempo em que revela o impacto também negativo, não só positivo, da imprensa de Gutenberg. O senhor vê a liberdade de expressão como uma luta permanente?
J. M. - Deixe-me citar, da conclusão do meu livro: a liberdade de expressão ainda é um experimento, e ninguém pode garantir o resultado de se fornecer voz livre e instantânea para bilhões. Mas é um princípio baseado em milênios de experiência, muitas vezes sangrenta, com as consequências de sua supressão.
Raio-x
Jacob Mchangama, 44
Fundador e diretor-executivo do instituto Justitia, baseado em Copenhague, o advogado dinamarquês é autor de "Free Speech - A History from Socrates to Social Media" (liberdade de expressão - uma história, de Sócrates às mídias sociais). Em 2018, foi professor visitante no Global Freedom of Expression Center, da Universidade Columbia, em Nova York.