É da ordem política e não econômica ou de qualquer outra natureza a mãe de todas as tarefas de Luiz Inácio Lula da Silva. O futuro governo será confrontado pelo desequilíbrio fiscal; pela inflação persistente; pelo ainda maior enfraquecimento do pacto federativo; e por demandas sociais prementes como a disseminação da fome, a devastação de florestas, em meio ao desmonte dos órgãos ambientais e ataques por atividades ilegais aos povos indígenas; a desintegração da educação pública fundamental e média, o sucateamento das universidades federais e da pesquisa em ciência e tecnologia. São investimentos vitais que não cabem no Orçamento da União, engessado pela medida constitucional do teto de gastos, solenemente ignorada por Jair Bolsonaro para implementar às vésperas da eleição políticas com potencial de melhorar o seu desempenho.
Tantos problemas são agravados pelo contexto político: o Brasil está perturbado por uma militância de extrema-direita barulhenta e armada; um Congresso Nacional que sequestrou o Orçamento da União e cobrará o preço para pactuá-lo com o Executivo; pela resistência militar em devolver a gestão do país aos civis; além da politização e aparelhamento de órgãos de controle. Um cobertor tão curto para acolher tal dimensão de desafios setoriais só pode ser solucionado pela política, em pacto nacional alinhavado em torno de valores democráticos, sociais e ambientais. Em seu favor, Lula, que conta com apoio de governantes que combatem, em vários países, a ascensão da extrema- direita, tem a reconhecida habilidade para a articulação política. Ao longo da campanha, já antevendo o que o espera, assim como também processando a baixa tolerância a desvios do chamado “mercado” com eleitos de imagem colada mais à esquerda, reordenou o seu núcleo político de apoio em amplo espectro ideológico da esquerda à direita.
Após a experiência com um presidente da República que, em quatro anos, dedicou-se a atacar as instituições democráticas e a proferir declarações desastrosas com impacto em várias dimensões da vida brasileira, é na política que vão se resolver os problemas da economia. “Lula é experiente, construiu uma frente ampla durante a campanha, não se trata apenas de uma frente eleitoral, mas, antes, sinaliza as condições de governabilidade”, afirma o economista Paulo Nogueira Batista Júnior, que foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), estabelecido pelos Brics, em Xangai (2015-2017) e diretor-executivo pelo Brasil e outros países no FMI, em Washington (2007-2015). Opinião semelhante manifesta o economista Benito Adelmo Salomão Neto, doutor pela Universidade Federal de Uberlândia e um dos organizadores do livro “Retomada do desenvolvimento” (Fundação Astrojildo Pereira, 2022). “Lula abriu diálogo já na campanha com forças políticas fora de seu espectro partidário, reunindo apoios que vão de Luciana Genro e Guilherme Boulos a Geraldo Alckmin e Henrique Meirelles. Esta é a maior demonstração de sua habilidade”, acrescenta.
No curto prazo, há boas e más notícias para o futuro governo. As boas notícias apontam para um PIB que deve crescer em 2023 mais do que o previsto pelos analistas no início do ano; e o desemprego, embora continue alto, menor em relação ao pico. “No setor externo, a balança de pagamentos é favorável e as reservas internacionais caíram, mas continuam altas”, afirma Paulo Nogueira Batista. Mas há problemas conjunturais graves: a começar pela inflação persistente, contida à véspera das eleições pela concessão de subsídios para o combustível, telefonia, transporte público e a energia, distorcendo o IPCA. “A inflação caiu nos últimos meses por medidas temporárias, de contenção de certos preços como combustível e energia elétrica. Mas a inflação subjacente continua alta”, considera Paulo Nogueira Batista. Em articulação com Arthur Lira, Bolsonaro aprovou a emenda constitucional com subsídio para a energia suja, o que também gera um desequilíbrio federativo, pois tira recursos dos estados, com a intervenção sobre o principal tributo com o qual contam governadores, critica Benito Adelmo Salomão Neto. Estados e municípios perderam receitas de ICMS para financiar serviços básicos de segurança, educação e saúde e a consequência foi a judicialização do problema, com ação de 11 estados junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), que estimam perdas de R$ 87 milhões, além de pedido de compensação.
Piorado nos últimos dois anos pelo governo Bolsonaro, bate à porta em 2023 também o problema fiscal. “A situação fiscal do setor público continua problemática. E há várias pressões latentes, estourando na mão do governo, que foram apenas postergadas”, sustenta Paulo Nogueira Batista Júnior. A lista é longa. São demandas sociais, da saúde, da educação, da ciência e tecnologia, esta, em particular, atingida pelo desmonte das universidades públicas federais e setores de pesquisa. “É preciso retomar uma política para a ciência e tecnologia que não existiu neste governo. As próprias universidades públicas federais e centros de pesquisa estão em modo de sobrevivência, sofreram cortes em mais de 90% dos recursos. Não há concurso para reposição de pessoal há muitos anos, materiais e equipamentos estão ficando obsoletos. Estamos perdendo a infraestrutura, a força conquistada ao longo de 60 anos. Falta tudo. Então, primeiro estamos no módulo sobrevivência, respirando quase que por aparelhos. Num primeiro momento, é voltar a respirar”, assinala Marcelo Knobel, ex- reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular de física e divulgador científico. Knobel prevê longos anos para a recuperação dos danos provocados sobre o setor de ciência e tecnologia. “Um próximo governo Lula herdará anos e anos sem aumentos nas universidades e outros setores. Possivelmente, vai enfrentar mais greves, dadas as dificuldades que o país enfrenta”, acrescenta.
Congresso Nacional
Para programar as políticas de governo e investimentos, o governo Lula terá de se articular com o Congresso Nacional, dominado pelo Centrão, cooptado, nos últimos anos, pelo governo Bolsonaro. Para se livrar do teto de gastos, regra constitucional advogada por Henrique Meirelles, ex-ministro da Fazenda de Michel Temer, Bolsonaro fez aprovar a Emenda Constitucional do Estado de Emergência, que possibilita ao governo gastar por fora do teto de gastos mais R$ 41,25 bilhões até o fim deste ano. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023, que está no Congresso Nacional, aponta para a dramática compressão dos níveis de investimentos discricionários, por exemplo, em infraestrutura, pesquisa científica e políticas públicas do futuro governo: o teto de gastos primários foi estimado em R$ 1,8 trilhão, sendo que, no âmbito das despesas obrigatórias, as despesas alcançam 92,7% do teto, inclusive sem contemplar a manutenção do atual valor mínimo de R$ 600 para o programa Auxílio Brasil. Também foram cortados pela metade os aportes do Programa Criança Feliz. Para a saúde, a proposta orçamentária representa, em valores reais, o menor nível de investimentos desde 2014: em comparação com o ano passado, quando a dotação somou R$ 162,9 bilhões, a redução prevista é de 10,1%, segundo nota técnica conjunta das consultorias de Orçamento do Senado e da Câmara.No amplo staff de apoiadores lulistas há desde aqueles que defendem a manutenção do teto a economistas que advogam a sua eliminação, dando liberdade ao governo de emitir e instituir as suas políticas de investimentos. Também se faz presente no entorno de Lula o grupo daqueles que propõem a substituição da regra do atual regime fiscal por outra intermediária. “Bolsonaro já não respeitou o teto de gastos e conduziu a política fiscal com emendas constitucionais. O fato é que, tal como posta na Constituição, é uma regra inconveniente, que não tem paralelo no mundo, e precisa ser substituída”, afirma Paulo Nogueira Batista. “Na circunstância atual, o teto teria de ser substituído por outra regra fiscal mais flexível. E acho que o governo Lula tende a caminhar na direção desse meio-termo”, considera ele. Seja qual for a mudança proposta, terá de ser aprovada no Congresso Nacional, com dois terços de apoio exigidos nas mudanças constitucionais.
Além das mudanças constitucionais, o governo Lula precisará repactuar com o Congresso Nacional a construção mais equilibrada do Orçamento da União, inclusive pondo fim a mecanismos pouco transparentes, como o chamado orçamento secreto, instituído no governo Bolsonaro. “O Congresso se agigantou em relação ao Executivo, praticamente sequestrou atribuições orçamentárias que são do Executivo. A razão é conhecida: o governo Bolsonaro, fraco politicamente, nos últimos anos foi cedendo espaço para o Centrão. Então, este é um grande problema: restabelecer as atribuições constitucionais do Executivo para que não fique subordinado à agenda fragmentada do Congresso”, sustenta Paulo Nogueira Batista, assinalando que se o Congresso toma conta do processo orçamentário, este passa a ser conduzido por uma lógica que não é a lógica global, mas de interesses setoriais, regionais.
Desmilitarização do governo
Se com o Congresso Nacional o governo Lula terá por desafio repactuar os termos da governabilidade, com as Forças Armadas precisará negociar a desmilitarização da administração pública. “Uma gestão militarizada contribuiu com a militarização da política. E haverá resistência nas Forças Armadas: o alto oficialato recebeu muitos benefícios, cargos e possibilidades de aumento salarial”, avalia o cientista político Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco, professor associado do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e coordenador do laboratório de Estudos Políticos de Defesa e Segurança Pública. “Apesar de as Forças Armadas terem grupos e tensões internas fortes, há em comum um forte senso de pragmatismo”, acrescenta Castelo Branco. Se por um lado, com o senso de oportunidade, os militares vão querer manter os seus benefícios, por outro, Lula precisará ceder em alguns aspectos para recuperar a presença civil nos ministérios, em particular à frente do Ministério da Defesa, aponta Castelo Branco.Apesar das insinuações e ameaças de Jair Bolsonaro, as Forças Armadas vão reconhecer os resultados das urnas, avalia Castelo Branco. Para isso, contribui o posicionamento do governo Joe Biden, que manifestou apoio público ao sistema de votação eletrônico brasileiro. Na semana passada, o Senado americano aprovou resolução apresentada por Berni Sanders e outros parlamentares democratas, favorável ao rompimento de relações e assistência militar entre países em caso de um golpe. “Acredito que o comando das Forças Armadas vá reconhecer o resultado das urnas, apesar de Bolsonaro e seus seguidores”, observa o cientista político, considerando que não é consenso, no meio militar, o modo bolsonarista de radicalização contra as instituições. “O militar que age corretamente se silencia e se necessário vai ter de reprimir insurgências, pois os custos para as Forças Armadas de se insurgirem, quebrarem a hierarquia, é muito alto. Existe contexto internacional contrário a essa perspectiva”, afirma.
Diferentemente do oficialato, a base militar não teve benefícios salariais no governo Bolsonaro. “O que há é mais uma identificação com os valores, uma adesão ideológica, uma base mais evangélica”, aponta Castelo Branco, indicando três elementos que dão força a Bolsonaro: os evangélicos, os militares e o populismo, nessa relação direta com os seguidores, através das redes sociais. Nessa base militar, os três elementos se entrelaçam. “Quando as Forças Armadas se voltam para a política, acabam fabricando inimigos internos. Por isso não podem participar da política com autonomia, têm de se subordinar. E o populismo tem a mesma lógica. Os líderes populistas sempre se apresentam como antissistema, e quando ascendem ao poder, seguem atacando permanentemente o sistema, tornam-se oposição a si mesmos”, considera Pedro Villas Bôas Castelo Branco.
Para o cientista político, Lula precisará investir muito no fortalecimento da democracia. “Regredimos. Por isso, Lula vai ter de voltar a fortalecer as instituições, como os partidos políticos, a imprensa, que são filtros importantes numa democracia. São corpos intermediários que têm por missão evitar a chegada de um Bolsonaro ao poder”, conclui o cientista político.