Em atitude inédita desde a redemocratização, o candidato derrotado nas eleições presidenciais demorou dois dias para se pronunciar oficialmente pela primeira vez após o pleito. Jair Bolsonaro (PL) fez pronunciamento dúbio no Palácio da Alvorada nesta terça-feira (1/11), não reconheceu a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e fez aceno a manifestantes que fecham centenas de trechos de estradas pelo país em protesto contra o resultado das urnas.
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Bolsonaro para Ciro Nogueira: 'Vão sentir saudade da gente'Ciro Nogueira é escalado por Bolsonaro para iniciar transição presidencialLeia na íntegra o primeiro discurso de Bolsonaro após derrotaDe Sêneca para o Brasil: Sobre Ganhos e PerdasUm sapo barbudo entalado na garganta do presidente Jair BolsonaroLula receberá raro legado, longe da "herança maldita" de outros temposCom um discurso de poucas linhas, lido do início ao fim e sem espaço para improvisos, Bolsonaro não é assertivo sobre nenhum dos pontos pelo qual seu pronunciamento foi aguardado: não reconheceu a derrota, não garantiu a transição democrática - terceirizando-a para Ciro Nogueira - e não desmobilizou apoiadores que travam o país. Com uma estratégia polifônica, conseguiu, ainda assim, se fazer entendido de formas diferentes e de acordo com o anseio de cada interlocutor.
Bolsonaro não tardou a tratar sobre os protestos que fecham as estradas brasileiras. Ele agradeceu os votos recebidos e já citou o tema. Reconhecendo a legitimidade dos atos, ele disse que os “movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral”.
Ele condenou as obstruções de vias, mas faz a crítica dizendo que tratam-se de ‘métodos de esquerda’, redirecionando a reprovação para um adversário comum entre ele e seus apoiadores. Lideranças dos bloqueios e aliados políticos entenderam a fala como um aceno que autoriza a continuidade dos atos.
Quando chegou mais perto de tratar sobre uma transição ordeira, Bolsonaro diz que sempre jogou “dentro das quatro linhas da constituição”, ao contrário dos que o acusam de antidemocrático. Ele fala que nunca propôs a regulação das mídias, senha a apoiadores que entendem a crítica velada a Lula, que não é citado nominalmente em nenhum momento.
“Ele foi enfático em dizer que não apoia obstrução, mas eu não escutei ele dizer em nenhum momento ‘caminhoneiros, saiam das rodovias’. Eu não escutei em momento nenhum ele dizer, claramente, ‘caminhoneiros, abandonem seu posto’, ‘população, muito obrigado, voltem para suas casas’. Então peço a todos vocês que continuem, que se fortaleçam”, disse Júnior, do Sindicato dos Caminhoneiros (Sindicam), uma das lideranças dos movimentos, minutos após Bolsonaro quebrar o silêncio.
Também logo após o pronunciamento, a instância máxima do Poder Judiciário se posicionou e viu no discurso um posicionamento favorável ao jogo democrático. “O Supremo Tribunal Federal consigna a importância do pronunciamento do Presidente da República em garantir o direito de ir e vir em relação aos bloqueios e, ao determinar o início da transição, reconhecer o resultado final das eleições”, diz nota do STF.
A forma como duas entidades, uma que pretende questionar o resultado das urnas e outra que busca legitimá-lo, entenderam o teor do pronunciamento de Bolsonaro aponta que o fim do silêncio do candidato derrotado esclarece tão pouco sobre a saúde da transição democrática no país quanto a sua mudez.
Mesmo sem o tom raivoso e provocativo de Donald Trump ao perder as eleições americanas em 2020, Bolsonaro tenta manter o clima de incerteza sobre o cenário democrático do país diante de tumultos que já interferem no abastecimento de alimentos, insumos alimentares e em viagens aéreas e rodoviárias pelo Brasil.