Esses são os principais fatores mencionados por especialistas em segurança ouvidos pela Folha de S.Paulo sobre a aparente demora das autoridades em desobstruir as vias bloqueadas em manifestações antidemocráticas de apoiadores de Jair Bolsonaro (PL), que protestam contra o resultado eleitoral e impedem a circulação de pessoas, produtos e serviços.
"Esse caso mostra a urgência de se fazer uma reforma das polícias para que fiquem cada vez mais profissionais, menos ideológicas e menos permeáveis à política da ocasião", avalia Rafael Alcadipani, professor da área de segurança da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da UFF (Universidade Federal Fluminense), enxerga nesses episódios uma janela de oportunidade. "O prejuízo para as polícias e sua perda da credibilidade autoriza uma reforma estrutural que produza governabilidade, e não as gambiarras que o Brasil tem feito nessa área", sugere. "A democracia sai fortalecida desse mico."
Às 20h do domingo (30), foi anunciada a vitória de Luís Inácio Lula da Silva (PT), que teve 60,3 milhões de votos, contra 58,2 milhões de Bolsonaro. Poucas horas depois, já circulavam na internet vídeos de manifestantes bloqueando as primeiras estradas. Até a noite desta segunda (31), foram mais de 300 bloqueios em estradas de 25 estados e no DF. Na noite de terça (1), eram 190 bloqueios em 19 estados, segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF).
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"Estava escrito nas estrelas que algo aconteceria [após um resultado desfavorável ao atual presidente], e os serviços de inteligência da Polícia Federal e do Ministério da Justiça existem para isso", aponta o sociólogo Arthur Trindade, ex-secretário de Segurança Pública do DF e diretor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília.
Ele explica que, ao ter notícia dos bloqueios pelos serviços de inteligência, essas autoridades federais teriam de deflagrar duas ações. "Convocar efetivos para ter meios de intervir e articular com governos estaduais para uma ação coordenada", explica. "Lockdowns e greves de caminhoneiros não são novidade no Brasil, e existe uma central de comando e controle na PRF e no Ministério da Justiça para coordenar esse tipo de operação."
Segundo Trindade, se o governo federal não age, os governadores teriam de agir rapidamente. "Por parte dos estados, há uma descoordenação acrescida de uma certa incompetência. Não vejo corpo mole", afirma.
A exceção é o diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques. A corporação realizou blitzs em pleno domingo (30) de eleição, criando insegurança em relação à votação, em especial no Nordeste, região em que o presidente eleito teve o maior número de votos.
Vasques é agora alvo de pedido de abertura de inquérito por parte do Ministério Público Federal tanto em relação a sua atuação nas eleições como em relação aos bloqueios de rodovias por manifestações antidemocráticas.
Alcadipani não fala em omissão, mas numa atuação "muito mais branda que habitual" por parte das polícias estaduais na lida com os bloqueios ilegais de apoiadores do presidente derrotado.
"Isso pode se dar tanto por um receio de que ocorram abusos policiais e isso prejudique a imagem da Polícia Militar junto à população quanto pelo fato de existir uma identificação ideológica com os manifestantes", diz. "Se fosse uma manifestação de outra matriz ideológica, talvez houvesse maior vontade, na ponta da linha, de debelar logo a situação."
O modo brando ganhou relevo quando cidadãos começaram a enfrentar os bloqueios, por iniciativa própria. Torcedores do Atlético Mineiro desobstruíram a estrada BR-381, em Minas Gerais, e torcedores do Corinthians movimentaram carros de um bloqueio de apoiadores do presidente na marginal Tietê, na capital paulista.
"Esse voluntarismo vai causar problema e alguém pode morrer. O mínimo que se espera é coordenação das ações das autoridades", alerta Trindade.
Para Glauco Carvalho, coronel da reserva e ex-comandante da PM na capital paulista, o tipo de ação da polícia junto aos manifestantes de agora é similar ao que ele testemunhou durante protestos do MST e do MTST: a negociação de uma saída pacífica.
"A democracia exige conversa e a redução do uso da força ao mínimo possível. Não é mais usual assistir a tropa de choque batendo em manifestante. O último descontrole se deu no movimento de 2013", avalia.
Segundo o coronel Álvaro Camilo, secretário-executivo da PM de São Paulo, "não existe conivência ou leniência" por parte da polícia do estado. O governador Rodrigo Garcia anunciou que serão aplicadas multas de R$ 100 mil por hora para cada veículo que obstruir vias paulistas. Além disso, os manifestantes serão fichados e, eventualmente, podem ser presos, informou Dutra.
"Se houve uma demora aqui ou ali é da tentativa de solucionar o bloqueio de maneira pacífica", diz Camilo, citando a complexidade dos casos. "Na rodovia Castelo Branco são mais de 400 caminhões parados", ilustra sobre o caso em que, horas depois, haveria confronto da Tropa de Choque com manifestantes.
Camilo explica que a ordem é negociar, depois multar e, só então, dar início ao uso progressivo da força, que pode, eventualmente, culminar com algumas prisões.
"O direito de manifestação, que é constitucional, foi plenamente exercido. Agora está interferindo demais no direito de ir e vir das pessoas", diz. "Vamos restabelecer a ordem e garantir a democracia. Aqueles que não ficaram felizes com o resultado das urnas, daqui quatro anos, terão a oportunidade de mudar."
Muniz, da UFF, entende que os bloqueios se alongaram porque têm rendimentos políticos. "Todo mundo quer o legado dos votos conservadores e moderados de Bolsonaro. E os governadores, que poderiam intervir imediatamente para liberar as estradas estaduais, pagaram para ver, porque a manutenção das obstruções tinha potencial para desidratar o atual presidente", avalia.
Segundo Muniz, é preciso controlar o potencial de autonomização das forças, delimitar a liberdade decisória dos policiais na ponta e determinar qual é a capacidade coercitiva das forças, alvo de decisão soberana da sociedade. "Isso tudo está nas mãos dos governadores e do presidente e são medidas administrativas."
Para Alcadipani, é importante também que se estabeleça mandato e plano de comando para chefes de polícia, além de criar uma quarentena para candidaturas de policiais e algum controle efetivo do que o policial pode publicar em rede social. "Essa é a grande lição dessa história toda."