Jornal Estado de Minas

FILOSOFIA EXPLICADINHA

Como não formar um fascista



Por Renato de Faria*

Não é difícil formar um fascista. Basta apenas deixar aflorar o instinto, o narcisismo, o dever egóico de sempre ter certeza e hostilizar todo apreço pelo diálogo, pela interlocução democrática e pela construção de uma subjetividade que se sabe incompleta, passível de caminhos errantes ao longo da vida.



O fascista tem uma autoimagem infantil de si, cheio de vilões e heróis, acreditando que o mundo é dividido entre bem e mal, estando a maldade sempre fora dele e a bondade sempre como posse si mesmo. 

O mundo fascista é simplista e simplório. Não há complexidade intelectual, interpretações de texto ou musculatura conceitual que sustente um debate por mais de uma hora. É por isso que é sempre mais fácil educar para o fascismo, pois basta deixar o instinto aflorar, compensando tudo com falas de autossuperação, desejo salvacionista, resiliência, superação masculina e outras bobagens que gente fraca inventa quando não dá conta dos caminhos tortuosos da existência. Por isso, o contrário é sempre mais difícil. Investir em um sujeito disposto à vida em sociedade é sempre mais árduo. Não é à toa que o soco exige uma mecânica mais pueril que o ato de pensar. 

Theodor Adorno, um dos maiores filósofos do Século XX, escreveu um texto breve, mas muito profundo, com o título: Educação após Auschwitz. Nele, nosso autor defende que a grande missão da educação (formal ou informal) deve ser evitar que novos campos de concentração existam. Nas palavras do próprio pensador, “a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”.

Não se trata de pensar a educação pós-pandemia, pós-analógica, pós-adulta, pós-verdade ou pós-conhecimento. O negócio é muito mais sério que isso. A proposta é pensar um processo formativo que ensine ao homem que ele precisa se humanizar para receber essa alcunha. E isso consiste, basicamente, em reprimir seu desejo originário e natural de eliminar qualquer outro que pretenda se interpor diante de seu desejo e seu caminho. 



Se conseguirmos, ao longo de nossa curta existência, formar sujeitos que não deem vazão ao desejo de eliminar o outro, já cumprimos a maior parte de nosso papel de professores, pais, mães, tios, amigos, avôs e avós. A tarefa de não formar um fascista exige de nós atenção constante, dizendo, muitas vezes, muito mais não do que sim.

Por isso essa é uma construção árdua, incompleta e não pode ser assumida somente pela escola. Todo o tecido social deve se comprometer para que Auschwitz (e seus congêneres tupiniquins) seja apenas uma referência história de um passado triste que não deve se repetir. 

Para isso, algumas humildes dicas: 

1. Faça uma previdência para seus pequenos. Mas uma previdência de livros. Só os textos nos previnem do mal. Tem muita gente aí juntando dinheiro para investimento da prole. Isso é bom e razoável, mas não basta. Tenha uma biblioteca. Sem essa de ficar culpado em comprar livros que não leu ainda. Você está se prevenindo para um dia de solidão em que precisa dialogar com alguém que aponte caminhos simbólicos. Caso você não consiga usá-los, não se chateie, seus filhos terão a oportunidade de herdar uma biblioteca. Geralmente, esse tipo de herança salva vidas. 





2. Valorize sempre o diálogo. Somente uma cultura fundamentada na palavra é capaz de interromper a violência física. O elemento da fala, a construção de conceitos, a interpretação das vozes, nos faz tolerantes e toleráveis. 

3. Convide amigos que pensam diferente de você, vestem-se de outra forma e tenham outra opção ideológica. Os filhos, quando percebem que a diversidade não é um problema, mas ao contrário, que ela se transforma em elemento de alegria e boas conversas, não vai crescer como um sujeito obtuso e ignorante, pronto para ser o dono da razão, apontando armas e verdades para alguém. 

4. Faça festas em sua casa. Coloque músicas e dance com os ritmos mais variados. Um ambiente alegre e melódico é um ótimo lugar para crescer gente do bem, disposta a encarar a vida com coragem e arte, valorizando a cultura como forma de expressão humana. Nessas casas, a angústia sempre é criativa e promove boas conversas, poesias e partilhas profundas. 





5. Permita que as crianças se interessem por um time de futebol, uma atividade esportiva, uma coleção de cascas de cigarra ou qualquer outra coisa que mostre a elas a bondade em se constituir como um ser desejante, e que a vida é um eterno convite a bancar a ânsia por um interesse que nos move. 

6. E deixe bem claro, com firmeza e cuidado, para aqueles que chegam ao mundo: só o afeto salvará uma pessoa de uma vida vazia e sem sentido, pois somos construídos por histórias, contatos, relações, acertos e desacertos. E que nenhum algoritmo será capaz de medir a intensidade de um beijo apaixonado, a emoção de um telefonema de desculpas, a beleza de um encontro após anos de distância e a saudade que temos daqueles que partiram. 

Por que escrevi esse texto? Na semana passada presenciei duas crianças brigando, de soco e tudo. Elas tinham cerca de oito anos e entraram em conflito por motivação política. O que aconteceu? De repente, alguém falou do candidato alheio e o outro não gostou. No mesmo instante ambos estavam no chão, trocando impropérios e pancadas. 

Qualquer adulto, independentemente do espectro político, que não se assustar com essa cena e não desejar uma educação que interrompa esse tipo de comportamento, já ultrapassou todas as barreiras da civilidade e deve ser visto como uma ameaça à construção de um mundo cada vez mais humanamente fraterno, consistentemente livre e socialmente igual. 

*Professor e filósofo, buscando as problemáticas da vida diante das solucionáticas do mundo